As
8 milhões de mutações inéditas encontradas no DNA do povo brasileiro
"Nós
revelamos a notável diversidade genômica dos brasileiros, com a identificação
de mais de 8 milhões de novas variantes."
Essa é
uma das frases que abrem um estudo assinado por 24 pesquisadores de 12
instituições diferentes, que acaba de ser publicado no prestigiado periódico
acadêmico Science.
A
investigação traz os resultados do sequenciamento genético completo de 2.723
indivíduos que representam praticamente todas as regiões do Brasil.
Segundo
os autores do trabalho, a descoberta pode trazer uma série de implicações em
termos de saúde — como a identificação de genes ligados a doenças e testes de
DNA mais confiáveis.
Eles
também destacam que os resultados escancaram a falta de diversidade nos bancos
de dados sobre genética espalhados pelo mundo, que têm uma representatividade
muito maior de povos da Europa e da América do Norte.
Entenda
a seguir todos os detalhes da nova pesquisa e como ela pode inspirar políticas
públicas — e gerar novos diagnósticos ou tratamentos no futuro.
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O livro da vida
O DNA é
o conjunto de informações que determina boa parte de nossas características
físicas e psicológicas, além da propensão a desenvolver certas enfermidades.
Essas
moléculas ficam organizadas nos cromossomos, que estão guardados no núcleo de
todas as células que compõem nosso corpo (com exceção dos espermatozoides e dos
óvulos).
Nas
últimas décadas, a evolução da tecnologia garantiu o surgimento dos
sequenciadores, as máquinas capazes de analisar o material genético e decifrar
esse código de letrinhas que determinam uma grande parcela de quem somos.
A
maioria dos genes são idênticos em todos os seres humanos. Mas há uma parcela
deles que difere de um indivíduo para o outro.
E é
isso que vai determinar de coisas simples, como a altura, a cor dos olhos, o
formato do cabelo, a questões mais complexas, como o risco aumentado ou
diminuído de ter um câncer ou de sofrer com Alzheimer.
Nesse
contexto, o estudo recém-publicado na Science teve como objetivo sequenciar o
genoma de uma parcela significativa e representativa da população brasileira,
para entender quais as características que nos diferenciam de outros povos
espalhados pelo mundo.
Esse
projeto foi anunciado em 2019 com o nome "DNA do Brasil" e contou com
o apoio inicial da Dasa, uma empresa do setor de saúde, e da Google Cloud,
sistema de armazenamento de dados na nuvem.
No ano
seguinte, a iniciativa foi oficialmente abraçada pelo Ministério da Saúde, que
criou o Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão – Genomas Brasil.
"Nesse
meio tempo, ainda precisamos lidar com a pandemia de covid-19, que complicou as
coisas por dois anos", lembra a geneticista Tábita Hünemeier, uma das
responsáveis pelo projeto.
"Foi
um trabalho homérico", complementa a especialista, que atua no Laboratório
de Genômica Populacional Humana da Universidade Pompeu Fabra em Barcelona, na
Espanha.
Vale
destacar que esses 2,7 mil genomas sequenciados representam a primeira leva de
resultados.
Os
cientistas esperam publicar em breve novas análises, que levam em conta as
informações genéticas de cerca de 12 mil brasileiros e ampliam os grupos
analisados ao incluir mais quilombolas, ribeirinhos e caiçaras.
Esse
grande banco de dados — o primeiro dessa magnitude na América Latina — será
controlado pelo Ministério da Saúde e ficará disponível para que outros
cientistas possam fazer estudos independentes nos próximos anos.
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Diversidade única no mundo
A
pesquisa comparou os quase 3 mil genomas brasileiros com outras 270 mil
sequências de DNA colhidas em outras partes do mundo.
E, como
mencionado no início da reportagem, foram encontradas 8.721.871 novas variantes
(ou mutações) entre indivíduos que nasceram no Brasil.
Mas o
que isso significa na prática?
"Por
que será que a gente encontrou tantas variantes novas, que ainda não haviam
sido descritas em outras partes do mundo? Não é porque somos marcianos…",
brinca a pesquisadora Lygia da Veiga Pereira, que lidera o Projeto DNA do
Brasil.
"Isso
acontece porque os bancos de dados genômicos disponíveis até hoje vêm
predominantemente de populações de ancestralidade europeia", responde ela,
que também é professora do Instituto de Biociências da Universidade de São
Paulo (IB-USP).
E, como
a História nos conta, o povo brasileiro é constituído a partir da mistura de
ancestralidades indígenas, africanas e europeias, entre outras.
"Isso
só mostra o quanto a gente tem a contribuir para o conhecimento, até em termos
de biologia humana", defende Pereira.
Hünemeier
confessa que intuitivamente os pesquisadores já esperavam encontrar um grande
número de variantes genéticas entre brasileiros.
"Mas,
quando a gente vê esses números, isso corrobora de maneira espetacular para
essa noção de que há muitas populações que são sub-representadas nos bancos de
dados", reflete a cientista, que também atua no IB-USP.
"A
diversidade africana e indígena é pouco estudada. Mas mesmo alguns povos
europeus que migraram e contribuíram para a diversidade brasileira, como os
italianos, não aparecem muitos nos estudos genômicos maiores, que focam mais em
Reino Unido, Estônia, Finlândia…", contextualiza a geneticista.
"Nosso
trabalho mostra quanta variabilidade existe no mundo que ainda não foi
estudada, porque os genomas captados até agora eram muito similares",
complementa ela.
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Influências na saúde
Mas o
estudo brasileiro deu um passo além: com o auxílio de algoritmos e programas de
computador, foi possível identificar, no universo das 8 milhões de mutações, um
total de 36.637 variantes "com efeitos nocivos e potencialmente
impactantes" em termos de saúde.
Ou
seja, o trabalho identificou dezenas de milhares de sequências genéticas
inéditas, em sua maioria desconhecidas pela Ciência, que têm alguma repercussão
do ponto de vista biológico.
"Em
populações humanas, muitas mutações parecem não ter um efeito deletério e só
são responsáveis por cada um ser um pouquinho diferente do outro", explica
Pereira.
"Mas
essas 36 mil podem ter um impacto clínico, de saúde, na população
brasileira", complementa ela.
Agora,
especialistas podem se debruçar sobre todas essas mutações — a começar pelas
mais frequentes ou impactantes — para entender o papel delas e as possíveis
formas de intervenção por meio de ferramentas de diagnóstico ou novos
tratamentos.
"Temos
que entender todas essas informações, até porque algumas delas devem ter um
impacto grande em termos de saúde", projeta Hünemeier.
Pereira
dá um exemplo de como isso pode gerar resultados práticos.
Há
alguns anos, cientistas identificaram em algumas populações certas mutações no
gene PCSK9, que está relacionado aos níveis de LDL (o colesterol ruim) no
organismo.
E isso
inspirou a criação de um novo tratamento medicamentoso — uma classe de remédios
conhecida como inibidores do PCSK9 — considerada hoje uma das melhores opções
para tratar o LDL acima das metas saudáveis.
De
acordo com os pesquisadores, entender essas particularidades, ou as mutações
genéticas mais frequentes, que geram doenças na população brasileira (e não
aparecem em outros lugares), é importante para lançar estratégias de saúde e
desenvolver novos exames e tratamentos moldados às necessidades do país.
"Ainda
estamos distantes disso, mas no futuro poderemos ter políticas públicas
voltadas a quem tem essas variantes", projeta a pesquisadora Maria Cátira
Bortolini, que também assina o artigo na Science.
"A
partir deste estudo, conseguimos provar que temos uma ancestralidade bem
diferente do que é observado em outros países e talvez precisemos de
tratamentos diferentes daqueles que foram desenvolvidos pela indústria
farmacêutica com base na população europeia ou norte-americana", sugere a
especialista, que também é professora titular do Departamento de Genética da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Seleção natural e propensões
O
estudo recém-publicado detectou no DNA do brasileiro evidências de uma seleção
de genes relacionados ao funcionamento de certos aspectos do organismo.
Ao
analisar a mistura das três principais ancestralidades que formam o país
(indígena, europeia e africana), foram encontrados traços ligados à
fertilidade, ao funcionamento do sistema imune e ao metabolismo.
Em
outras palavras, aqui entra o conceito clássico darwiniano da seleção natural.
Diferentes
características genéticas se mostraram vantajosas num determinado momento do
tempo e do espaço — e foram passadas para as futuras gerações.
Em
trabalhos anteriores, Hünemeier e Pereira demonstraram que algumas populações
indígenas da Amazônia possuem um gene que os protege da doença de Chagas, uma
infecção causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, transmitido pela picada e
pelo contato com as fezes do inseto conhecido popularmente como barbeiro.
Esse é
um exemplo de como certas características que aparecem no DNA podem favorecer
um grupo de indivíduos e são passadas adiante.
"Podemos
entendê-los como sinais de que houve alguma seleção natural, ou seja, que as
pessoas que possuíam essas variantes tinham algum tipo de vantagem",
reforça Pereira.
No
artigo publicado na Science, foram encontrados traços genéticos de fertilidade
ligados à espermatogênese (fabricação de novos gametas masculinos), número de
filhos nascidos vivos, idade da menarca (primeira menstruação) e da menopausa.
Já no
metabolismo, os pesquisadores observaram características relacionadas ao peso
corporal, ao Índice de Massa Corporal (IMC), níveis de LDL e duração do sono.
Por
fim, em relação ao sistema imunológico, há elementos como defesa contra
retrovírus, regulação de alguns tipos de células de defesa e a resposta imune
inata (presente desde o nascimento da pessoa).
Bortolini
pondera que a seleção natural de certos genes e a visão de que eles são
favoráveis ou prejudiciais está muito ligada ao lugar e ao contexto da época.
"Isso
se relaciona à história de adaptação de diferentes populações e faz parte de um
arcabouço genético selecionado dentro dos grupos ancestrais. Mas o que isso
implica no mundo contemporâneo é outra conversa", diz ela.
Imagine,
numa situação hipotética, que um desses genes desacelera o metabolismo da
gordura no sistema digestivo.
Há três
séculos, isso era algo excelente e pode até ter garantido a sobrevivência das
pessoas que portavam essa variante. Afinal, a oferta de alimentos gordurosos e
calóricos era bem menor e essa demora na metabolização garantia um aporte de
nutrientes por um tempo prolongado..
O
problema é que o mundo mudou: hoje em dia, é muito mais fácil obter e ingerir
grandes quantidades de comida cheia de gordura. Nesse contexto, uma
metabolização lenta pode levar a problemas como obesidade e doenças cardíacas.
Ou
seja: é possível que um atributo considerado uma benção para as gerações
passadas se transformou numa espécie de maldição para quem vive hoje.
"A
seleção de um gene pode ser positiva ou negativa, a depender como o ambiente em
que aquele sujeito vive se modifica ao longo da História", resume
Hünemeier.
Além
disso, entender todas essas interações — e o que pode ser feito hoje para lidar
com esse perfil genético herdado pela população brasileira atual — se
transforma num caminho para encontrar estratégias preventivas mais eficazes, ou
lançar programas de tratamentos ligados às doenças metabólicas mais comuns, por
exemplo.
Conhecer
porque algumas pessoas são imunes a alguns tipos de infecções também pode abrir
portas para novas vacinas ou tratamentos contra essas moléstias.
Testes
genéticos mais precisos?
Por
fim, compreender mais a fundo a genética do povo brasileiro vai permitir que as
ferramentas que analisam o DNA fiquem mais assertivas, apontam os
especialistas.
Os
testes genéticos se popularizaram bastante nos últimos anos. Há desde as opções
consideradas recreativas, que permitem saber sobre sua própria ancestralidade,
até exames que avaliam as características de um tumor e determinam os remédios
que serão prescritos pelo médico.
Esses
testes fazem uma comparação entre o genoma de um indivíduo e uma base de dados
genéticos de milhares de outras pessoas.
E o
problema aqui é o mesmo citado no início da reportagem: essas bases de dados
genéticos concentram uma maioria de europeus e norte-americanos.
Portanto,
usá-las para fazer a comparação com um DNA que vem do Brasil pode gerar um
resultados um tanto imprecisos, já que até agora não se levava em conta toda a
diversidade genética observada em nosso país.
Nesse
sentido, os futuros testes genéticos que contem com esses milhares de genomas
brasileiros sequenciados estarão, digamos, mais "calibrados" — e
trarão resultados cuja confiabilidade será ainda maior.
"Ter
um banco de dados das variações genéticas representativas do Brasil vai
auxiliar na interpretação de testes, que se tornarão mais precisos para uma
ancestralidade que não é branca ou europeia", conclui Pereira.
Fonte:
BBC News Brasil

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