Em
Pernambuco, projeto militar e obra viária ameaçam área de conservação da Mata
Atlântica
A
construção da Escola de Sargentos das Armas (ESA), anunciada em 2021, tornou-se
um marco para a Região Metropolitana do Recife (RMR). Por contar com recursos
assegurados pelo Exército Brasileiro na casa de R$ 1,8 bilhão, além de
contrapartidas de infraestrutura do governo estadual, e diante da expectativa
de geração de postos de trabalho, o projeto parecia promissor.
No
entanto, a proposta enfrenta a resistência da sociedade civil e de
ambientalistas devido aos possíveis impactos ambientais no local que abrigará o
empreendimento: a Área de Proteção Ambiental (APA) Aldeia-Beberibe.
Compreendendo oito municípios em seus mais de 30 mil hectares de extensão, a
APA acolhe o maior remanescente de Mata Atlântica no trecho entre os estados de
Sergipe e Rio Grande do Norte. O pouco que sobrou da floresta tropical nesta
parte do mapa é fundamental, uma vez que o bioma já perdeu quase 90% de sua
área original no Brasil, como alertam especialistas.
Para a
área construída do complexo militar, estima-se o desmatamento de 94 hectares de
floresta nativa, consequência de uma estrutura que deve receber 6 mil novos
moradores. A ESA, porém, não é a única grande intervenção prevista: antes mesmo
da escola, já havia no caminho a construção do chamado Arco Viário
Metropolitano, que promete melhorar o tráfego em toda a RMR. O arco também gera
preocupação, já que recortaria toda a área da APA, adicionando um novo fator de
risco à natureza.
Somados,
os dois projetos intensificam a pressão urbana dentro e ao redor da unidade de
conservação. Como resultado, crescem as ameaças a regiões de corredores
ecológicos, fundamentais para conectar os fragmentos da Mata Atlântica — que,
com dificuldade, ainda resistem no nordeste.
No
projeto inicial, a instalação do centro militar previa a retirada de 188
hectares de Mata Atlântica. Após discussões entre o Exército, o governo de
Pernambuco e representantes da sociedade civil, o projeto foi redesenhado,
reduzindo a estimativa de desmatamento. Apesar do recuo, pesquisadores de
universidades pernambucanas se mantêm vigilantes frente a possíveis impactos,
ressaltando que os danos vão além da supressão da área verde.
Segundo
Isabelle Meunier, professora do departamento de Engenharia Florestal da
Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), mesmo diante de uma
diminuição da natureza potencialmente suprimida, a estrutura ainda pode trazer riscos. “Mesmo realizado em uma APA, onde é
possível haver uso sustentável [da floresta], não há justificativa técnica para
o desmatamento, nem respaldo no interesse público”, diz.
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Empreendimentos vão na contramão de princípios da APA
A APA
Aldeia-Beberibe está localizada no Centro de Endemismo Pernambuco, área
biogeográfica que compreende trechos ao norte do Rio São Francisco. Essa região
prioritária de conservação da Mata Atlântica abriga espécies que não existem em
nenhum outro lugar do mundo. Isso aumenta de forma significativa sua
importância ecológica, de acordo com Cecília Costa, doutora em Ecologia e
professora do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE).
“A Mata
Atlântica se estende pelo litoral brasileiro, mas não é homogênea”, ela
explica. “Existem barreiras geográficas, como o Rio São Francisco, que, ao
longo de milhares de anos, provocaram processos de especiação, dando origem a
espécies únicas em determinadas regiões. O sagui Callithrix jacchus que temos
aqui, por exemplo, é diferente do que temos na região sul. Há também aves
ameaçadas de extinção, como o pintor-verdadeiro (Tangara fastuosa). Por sua
plumagem exuberante, o pássaro tem alto valor comercial e é alvo do tráfico de
animais silvestres.”
A
região também conta com uma peculiaridade em sua história evolutiva, o que
amplia a relevância dessa área específica, segundo a pesquisadora. Ela diz que
já houve períodos de conexão entre o local e a Amazônia, o que explica a
presença de espécies típicas dos dois biomas mais biodiversos do mundo em um
mesmo território. Para Costa, essa rara combinação reforça o valor de se
conservar a natureza que vive ali.
Além
dos dois futuros empreendimentos, o crescimento acelerado da região de Aldeia,
na Região Metropolitana de Recife, é outro fator que impõe riscos à Mata
Atlântica. O problema não é novo: em 2010, o decreto estadual que criou a APA
mencionava, entre outros objetivos, a organização do desenvolvimento local,
estabelecendo delimitações geográficas para proteger mananciais e nascentes,
bem como a fauna e flora. A criação da área protegida também estabelecia o
pagamento por serviços ambientais, medida amparada por lei e que busca
incentivar proprietários de áreas de florestas nativas a preservá-las. As duas
obras que estão por vir avançam na contramão desses objetivos.
Segundo
Costa, “infelizmente, os projetos institucionais previstos são incompatíveis
com os objetivos da APA. Em 2020, o governo de Pernambuco inseriu no decreto um
trecho sobre possíveis estratégias para que o Arco Metropolitano respeite a
implantação dos corredores ecológicos. No entanto, isso não encontra nenhum
respaldo técnico-científico. Hoje encontramos animais atropelados, ainda que
haja na região gente sensível e que, muitas vezes, para [o carro com o objetivo
de ajudar]. No caso das preguiças da espécie Bradypus variegatus, [as pessoas]
até ajudam o bicho a atravessar a rua. O que vai acontecer quando uma via de
fluxo rápido atravessar o maior trecho de floresta da região?”.
Atualmente,
Costa coordena um projeto de monitoramento da biodiversidade que analisa os
impactos antrópicos (relacionados aos efeitos da atividade humana) em
território pernambucano. Entre os animais sobre os quais paira o risco de
extinção, ela cita a jaguatirica (Leopardus pardalis), vítima recorrente em
casos de atropelamento. Apenas na Estrada de Aldeia, que conecta o município de
Camaragibe à RMR, três animais foram encontrados mortos entre 2019 e 2023.
“A
presença desse felino é um forte indicativo da existência de uma cadeia
alimentar equilibrada, com abundância de pequenos mamíferos e outros animais
que compõem sua base alimentar”, diz Costa. “Além disso, indica boa qualidade
de habitat e baixa pressão de caça. Esse é mais um sinal da vitalidade
ecológica da área.”
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Projetos podem desatar crise hídrica e comprometer recursos naturais
Por si
só, a presença de fauna silvestre na APA já justificaria a preocupação de
organizações e especialistas. Há, no entanto, outra possível crise adiante: os
novos projetos também podem aumentar ainda mais a escassez hídrica, trazendo
imprevistos ao abastecimento público pelo uso excessivo de recursos naturais e
risco de aterramento das nascentes.
A
Região Metropolitana do Recife, como grande parte dos municípios pernambucanos,
convive há anos com o sistema de rodízio para o abastecimento – a restrição,
que varia de tempos em tempos, é diretamente ligada à falta de água disponível.
Agora, várias cidades estão diante de um novo drama, uma vez que o local
destinado à construção da ESA abriga as nascentes do Rio Catucá, cuja bacia e
afluentes alimentam a Barragem de Botafogo. Essa estrutura é responsável pelo
fornecimento da água utilizada pelos municípios de Olinda, Igarassu, Paulista e
Abreu e Lima, atendendo mais de 700 mil consumidores, segundo dados da
Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa).
“Contamos
com duas áreas de abastecimento público [de água] dentro da APA”, explica
Costa. “Uma delas é a Barragem de Botafogo e outra a Barragem do Prata, que
fica dentro do Parque Estadual de Dois Irmãos. Além disso, a Aldeia-Beberibe
abrange uma importante reserva de água subterrânea que abastece empresas do
setor de bebidas e água mineral. É a água engarrafada que chega à RMR.” Segundo
ela, para manter esse serviço essencial, é necessário priorizar a conservação.
“Por ser uma área de recarga de aquíferos, a APA necessita de baixa densidade
populacional, de modo a permitir a manutenção das florestas. Isso, por sua vez,
possibilita que a água das chuvas se infiltre, recarregando o lençol freático.”
Para a
sociedade civil, representada pelo Fórum Socioambiental de Aldeia, é uma
prioridade garantir que os projetos de instalação do complexo militar estejam a
uma distância segura da margem de rios e de outras áreas de elevada importância
ecológica. A demanda segue o que é previsto no Código Florestal Brasileiro e
levantou discussões que tiveram musculatura para alterar elementos do projeto:
enquanto o local de construção da escola e de um batalhão segue sob análise
técnica, diante de possíveis irregularidades, as vilas militares foram
realocadas para um terreno próximo – já desmatado.
Os
perigos ao meio ambiente também são observados em um recente estudo disponível
no The Journal for Nature Conservation e produzido por pesquisadores da UFPE,
UFRPE e da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Nele, cientistas dizem que a
ESA e o Arco Metropolitano poderiam provocar a remoção de 335 mil árvores que
fazem parte dos 198 remanescentes florestais compreendidos pela APA.
De
acordo com a pesquisa, é crucial que futuras abordagens estejam amparadas em
critérios científicos, sobretudo nas fases que demandem a supressão florestal
em paisagens já fragmentadas. “Isso se mostra crucial para mitigar os cenários
alarmantes de clima extremo e perda de biodiversidade vistos no Brasil e no
mundo atualmente”, diz o estudo.
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Os desafios que cercam o corredor ecológico
Em um
horizonte de médio e longo prazo, há expectativa de piora na qualidade do
habitat sob a mira dos empreendimentos. Segundo a pesquisa, “a probabilidade de
conectividade [entre os trechos de floresta] diminuirá, restringindo
consideravelmente a mobilidade das espécies dependentes.” O corte de território
promovido pelo Arco Metropolitano (dimensionado no mapa abaixo) também
aumentaria a fragmentação dos remanescentes de Mata Atlântica, colocando
entraves ao desenvolvimento de um corredor ecológico que permita o fluxo de
animais, de sementes e de pólen (também chamado fluxo gênico) na região.
Na
ausência dessa dinâmica natural, há maior incidência de endogamia, nome dado à
reprodução entre indivíduos aparentados. Com o tempo, esse fenômeno pode
aumentar anomalias genéticas e doenças, reduzindo o número de certas espécies.
Garantir
o fluxo gênico por meio do deslocamento adequado é fundamental para alguns
animais, ainda segundo a professora Cecília Costa. Afinal, nem todos se
desenvolvem como os saguis e quatis (Nasua nasua), cujos comportamentos
naturais já funcionam como uma “barreira” à endogamia. Enquanto saguis machos e
fêmeas migram para outros bandos, os quatis machos, ao atingirem a maturidade,
são expulsos de seus grupos e forçados a buscar novos núcleos. Nesse momento, a
conservação volta a revelar sua importância: para que esses animais possam
encontrar novos indivíduos semelhantes, é vital que haja conexão entre grandes
áreas de florestas. Se os espaços estão separados, os animais são impedidos de
atravessar – ou morrem no percurso.
Diante
desse cenário, o governo do estado desenvolveu em 2019 um projeto voltado à
identificação de áreas propícias à criação de corredores ecológicos. A
iniciativa pretende facilitar o deslocamento da fauna e promover a dispersão de
sementes e pólen, dois processos fundamentais para a manutenção dos serviços
ecossistêmicos. Com a ameaça das construções, eventuais entraves a esse
funcionamento são colocados à luz das discussões.
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Falta de licenciamento gera preocupação
Um
outro impasse se soma aos riscos ambientais apontados previamente. Segundo a
professora Meunier, o projeto ainda carece de licenciamento ambiental, o que
impede a sociedade de conhecer as questões de forma ampla. “Não sabemos quais
impactos a obra trará à medida que não há licenciamento. Isso é um retrocesso
enorme. A licença é justamente o instrumento que permite avaliar os danos
ambientais, permitindo a apresentação de medidas mitigadoras e compensatórias.
A sociedade está no escuro.”
Em
parte, a ausência de licenciamento é fruto de uma interpretação da Lei
Complementar 140/2011, que isenta empreendimentos e atividades de caráter
militar de apresentá-lo. “Essa situação se assemelha ao Projeto de Lei
2.159/2021, que tramita no Senado e fere profundamente os instrumentos da
política nacional de meio ambiente”, diz a especialista. No final de maio, em
nota, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima disse que o PL
“representa risco à segurança ambiental e social” no Brasil.
Meunier
diz que estudos e relatórios de impacto ambiental deveriam analisar de forma
detalhada os diferentes aspectos envolvidos na implantação da ESA. Em sua
análise, não se trata apenas da fase de construção, mas também do funcionamento
pleno da obra – incluindo a circulação de pessoas e veículos, o uso das
estradas, o estacionamento dos carros, a poluição gerada e as relações
socioeconômicas que a população desenvolverá nas proximidades.
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Projeto enfrenta protesto de moradores e da sociedade civil
Morador
da APA há cinco anos, o autônomo Frederico Silva convive com um sentimento de
indignação. Para ele, tanto o arco quanto a escola resultam de iniciativas que
desconsideram possíveis impactos socioambientais em uma área já fragilizada
pela falta de fiscalização. “O projeto viário foi muito mal elaborado e não
levou em conta as mazelas que o acompanham, como a grilagem da terra e o risco
elevado de acidentes envolvendo animais silvestres.”
Silva
também questiona o desmatamento para a instalação de mais uma representação
militar, uma vez que o Exército já possui estruturas em cidades como Garanhuns,
Olinda e Jaboatão dos Guararapes. “Por que destruir a APA? Fala-se muito da
quantidade de árvores que serão derrubadas para a construção da escola e de
como as Forças Armadas alegam que vão reflorestar [a área] como forma de
‘compensar’. A questão, é: como compensarão a vida de animais silvestres mortos
nesse processo?”.
A
sociedade civil também traz críticas ao projeto. Parte delas vem em forma de
manifestações, como uma passeata convocada pelo Coletivo Inter Religioso em
Defesa da APA Aldeia-Beberibe, na capital Recife, no final de abril. A marcha
contou com a participação da classe artística, ambientalistas, indígenas e
parlamentares sob o lema “Para construir, não é preciso desmatar.”
Baseando-se
em análises técnicas, a ONG Fórum Socioambiental de Aldeia também propôs locais
alternativos para a construção dos dois empreendimentos, sugerindo regiões
próximas, mas fora de pontos sensíveis da Mata Atlântica. Até aqui, no entanto,
todas as propostas foram rejeitadas pelo Exército.
Morador
de Aldeia e presidente da organização, o mestre em gestão ambiental Herbert
Tejo representa diferentes vozes locais em audiências públicas, debates
acadêmicos e reuniões com o poder público para alertar sobre o que está por
vir: “Há inúmeras ameaças ao território de Aldeia – e de toda a ordem. Do ponto
de vista ambiental, pode ser desastroso. Quando se trata da defesa do meio
ambiente, as negociações com o poder público são sempre desafiadoras. Contudo,
temos um arcabouço legal e muitos estudos que visam a proteção dessa área. A
sociedade civil, por meio de um esforço conjunto, formulou propostas
alternativas para a localização das obras. Esperamos que haja bom senso e
respeito à ciência na tomada de decisão por parte de órgãos públicos.”
Tejo
negocia com as entidades competentes para que ao menos a instalação da escola
seja feita em um terreno que se encontra a cerca de 5 quilômetros do local
originalmente escolhido – em uma área que abriga plantações de cana-de-açúcar.
“Estudamos uma área de 1.700 hectares, dos quais 915 são terrenos já desmatados
e de relevo plano. O Exército necessita de apenas 146 hectares para o complexo
[inteiro]”, diz o representante.
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Poder público promete encontrar soluções, mas futuro é incerto
Em meio
a denúncias, alertas e burburinhos, o governo de Pernambuco tem se posicionado
de forma cautelosa diante do impasse ambiental gerado por suas propostas.
Embora reconheça o compromisso institucional assumido em 2022, a atual gestão
da governadora Raquel Lyra criou um grupo de trabalho intersetorial para
discutir o tema. A iniciativa é liderada pela Secretaria de Meio Ambiente e
conta com a participação de universidades e da sociedade civil.
Em
junho deste ano, Lyra assinou termos aditivos do acordo entre o estado e os
militares, ressaltando “melhorias de infraestrutura para a região”, o que
reforça o interesse do atual governo em levar o projeto adiante.
Enquanto
isso, autoridades da área ambiental prometem encontrar um caminho intermediário
que respeite a preservação da natureza. Ana Luiza Ferreira, secretária de Meio
Ambiente, Sustentabilidade e de Fernando de Noronha, projeta uma solução
negociada. “É uma questão muito complexa. O Exército tem, efetivamente, um
papel fundamental na proteção daquela área. Para o governo, também não é
simples [intermediar a alteração do projeto] quando há um compromisso já
firmado entre as instituições. Seguimos comprometidos em buscar a redução do
impacto ambiental.”
A APA e
seus habitantes, humanos ou não, seguem no aguardo dos novos capítulos de uma
história tão arrastada quanto imprevisível.
Fonte:
Mongabay

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