Bendegó,
o meteorito que virou crônica de Machado
de Assis e símbolo de sobrevivência nas cinzas do Museu Nacional
O ano
era 1784. Nas proximidades da cidade de Monte Santo, no sertão da Bahia, um
menino pastoreava gado quando algo especial captou a atenção dele.
Ele
acabara de observar uma pedra que parecia diferente das demais. O formato, a
cor e, possivelmente, até o som que ela fazia não se assemelhavam a nada do que
se espera das outras rochas.
Começava
ali a história de um dos objetos mais importantes já descobertos no Brasil.
O
menino alertou as autoridades, até que uma comissão foi enviada para averiguar
essa história.
O grupo
observou que o bloco era composto de ferro, o que levantou suspeitas de que
essa região poderia abrigar jazidas de minérios — algo que foi rapidamente
descartado após alguns levantamentos.
Como o
Brasil ainda era colônia de Portugal, foi determinado que a enorme pedra
deveria ser enviada à Europa.
No
entanto, as tentativas de mover o objeto por longas distâncias se mostraram uma
missão quase impossível.
Afinal,
falamos de um colosso de 2,15 metros de comprimento e 5,3 toneladas.
O bloco
foi colocado numa carreta, que não suportou o peso durante uma descida.
"O
resultado disso é que alguns bois que faziam o transporte foram
atropelados", conta a astrônoma Maria Elizabeth Zucolotto, chefe do Setor
de Meteorítica do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.
A pedra
rolou ribanceira abaixo e foi parar às margens de um riacho chamado Bendegó — o
que inspirou o nome que o objeto ganharia dali em diante.
Um
século depois…
A
descoberta aconteceu num momento em que não se sabia que rochas poderiam
literalmente cair do céu.
"À
época, não se tinha a noção de que existiam rochas e pedras vindas do espaço.
Ninguém acreditava nisso", observa o astrônomo Marcelo De Cicco,
coordenador do projeto Exoss, que está ligado ao Observatório Nacional e faz o
monitoramento de meteoros.
Cerca
de dez anos após a descoberta do Bendegó no interior da Bahia, os cientistas
começaram a aventar essa possibilidade.
Mas a
ideia de que a terra pode ser alvo desses objetos só ficou provada mesmo nas
duas primeiras décadas do século 19.
E é
curioso notar que, após os esforços iniciais para mexer no Bendegó, ele foi
deixado ali, na beira do riacho, por quase um século.
Algumas
missões científicas até foram ao local para retirar amostras, usadas justamente
para comprovar as primeiras observações sobre as tais pedras que vinham do céu.
Mas a
ideia de mover o meteorito novamente só ganhou força mais de um século depois.
Em
1886, o imperador D. Pedro 2° estava na França para participar de um evento da
Academia de Ciências de Paris.
Durante
a reunião, ele conheceu a história do Bendegó e decidiu patrocinar uma
expedição para trazê-lo ao Rio de Janeiro, a então capital do país.
Dessa
vez, o trabalho foi bem sucedido: a equipe conseguiu mover o meteorito pelas
cadeias montanhosas até uma estação de trem localizada no município de Itiúba.
Dali, o
Bendegó viajou de trem para Salvador, a capital do Estado, onde ficou em
exposição por alguns dias.
Depois,
o objeto foi colocado num navio a vapor, que passou por Recife antes de aportar
no Rio de Janeiro em 15 de junho de 1888, onde foi recebido pela Princesa
Isabel — a mesma que dias antes havia assinado a Lei Áurea.
O
Bendegó foi integrado ao acervo do Museu Nacional, que à época ficava no Campo
de Santana, no centro da cidade.
"Ali,
um ano depois, ele testemunharia 'de camarote' outro evento histórico: a
Proclamação da República", lembra Zucolotto.
Afinal,
alguns dos eventos que culminaram na queda de D. Pedro 2° e na ascensão do
Marechal Deodoro da Fonseca como primeiro presidente aconteceram ali no Campo
de Santana, local que hoje também é conhecido como Praça da República.
Alguns
anos depois, em 1892, o Museu Nacional (e o Bendegó) foram transferidos para o
Paço de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, na Zona Norte do Rio de Janeiro.
• Acontecimento cultural
Os
registros históricos revelam que a chegada do Bendegó causou comoção na
sociedade da época.
Na
coluna Bons Dias, que Machado de Assis escrevia sob pseudônimo no jornal Gazeta
de Notícias, o meteorito foi citado em algumas ocasiões.
"Foi
por essas e outras que descri do ofício; e. na alternativa de ir à fava ou ser
escritor, preferi o segundo alvitre; é mais fácil e vexa menos. Aqui me terão,
portanto, com certeza até à chegada do Bendegó, mas provavelmente até à escolha
do Sr. Guaí, e talvez mais tarde. Não digo mais nada para os não aborrecer, e
porque já me chamaram para o almoço", publicou o famoso autor na edição de
5 de abril de 1888.
Numa
crônica de 27 de maio, Machado de Assis narra uma hipotética conversa entre o
Bendegó e José Carlos de Carvalho, responsável pela comissão que fez o
transporte do objeto da Bahia até o Rio de Janeiro.
O
curioso é que, no texto, o Bendegó é quem faz perguntas e reclamações.
"Lá
em cima, andamos com velocidade de mil raios: aqui, nestas ridículas estradas
de ferro, a jornada é de matar", escreve o cronista ao incorporar o objeto
celeste.
"Enquanto
toda a nação bailava e cantava, delirante de prazer pela grande lei da
abolição, o metereólito de Bendegó vinha andando, vagaroso, silencioso e
científico, ao lado do Carvalho", pontua ele.
À
época, "Bendegó" também virou um termo corrente no vocabulário
popular.
Segundo
o pesquisador e arquiteto Nireu Cavalcanti, ele serviu de inspiração para um
tipo de penteado da moda, com um topete virado para o lado que remetia à ponta
característica do meteorito.
"E
algumas pessoas passaram a usar 'Bendegó' como uma forma de falar sobre algo
grande, pesado, difícil de carregar, tipo um trambolho", acrescenta
Zucolotto.
"Ele
virou quase um personagem popular", complementa ela.
E,
mesmo passados 240 anos desde sua descoberta inicial, o meteorito continua a
gerar novas ideias.
Em
entrevistas recentes no podcast Mano a Mano e no programa Conversa com Bial, o
humorista e ator Paulo Vieira anunciou que deve lançar um álbum de músicas em
breve.
E o
disco já tem nome definido: Bendegó.
• De onde veio esse meteorito
Na
época de sua descoberta, o Bendegó era o segundo maior meteorito já encontrado
no planeta. Atualmente, ele ocupa a 16ª posição.
Mas
como esses objetos vão parar em lugares como o interior da Bahia?
Os
astrônomos ouvidos pela BBC News Brasil explicam que essas rochas vêm de um
cinturão de asteroides localizado entre Marte e Júpiter.
Eles
são pedaços de protoplanetas que não conseguiram se formar completamente
durante o processo que culminou no Sistema Solar.
"A
maioria dos asteroides dá voltas ao redor do Sol. Mas alguns deles têm uma
órbita mais elíptica e eventualmente podem se chocar com o planeta Terra",
detalha Zucolotto.
A
maioria desses objetos são menores e se desintegram quando entram na atmosfera
terrestre, momento em que formam as famosas estrelas cadentes.
Mas
alguns têm um tamanho maior — como o Bendegó — e conseguem atingir o solo.
A
professora Zucolotto estima que o Bendegó caiu na Terra entre 120 mil e 100 mil
anos atrás.
E,
segundo ela, conhecer as particularidades desse objeto é importante para
entender as origens de nosso planeta e do sistema que ele habita.
"Nenhum
meteorito sozinho revela grandes descobertas. Mas todos são pecinhas
fundamentais para montar a história do Sistema Solar", diz Zucolotto.
"O
Bendegó é o testemunho de uma época de formação, no início do Sistema Solar.
Essa rocha vagou pelo espaço interplanetário por bilhões de anos até, em algum
momento, penetrar a atmosfera terrestre e cair no interior da Bahia",
contextualiza De Cicco.
"No
século 19, ele também foi fundamental para definir a classificação da família
de meteoritos pelos cientistas", complementa ele.
• Fogo e resistência
Depois
de um século como uma das estrelas da coleção do Museu Nacional, o Bendegó
testemunhou mais um episódio marcante: o grande incêndio de 2 de setembro de
2018 no Paço de São Cristóvão, que destruiu parte do acervo e é reconhecido
como "o maior desastre da história da instituição".
Quando
as chamas foram controladas e os especialistas puderam entrar nas instalações
novamente, o famoso meteorito continuava ali, do mesmo jeito.
"A
gente sabia que, no dia seguinte ao incêndio, o Bendegó estaria lá. Afinal, ele
é uma massa de ferro muito grande, que não seria destruída pelo incêndio",
confessa Zucolotto.
"Mesmo
assim, ele se tornou esse símbolo de resistência e permaneceu no museu durante
todo o processo de reconstrução", complementa a astrônoma.
O Museu
Nacional, que acaba de completar 207 anos no mês de junho, deve estar em pleno
funcionamento entre 2026 e 2028.
De
Cicco classifica a história do Bendegó como épica.
"Ele
ficou heroicamente postado ali, em meio ao rastro de destruição do incêndio. É
como se ele quisesse comprovar que, apesar de tudo, a Ciência brasileira é
capaz de resistir às piores tragédias", avalia ele.
"Ele
foi a primeira peça a dizer: o museu não acabou. Nós ainda estamos aqui",
conclui Zucolotto.
Fonte:
BBC News Brasil

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