“Lucas
da Feira” (O Filme): quando o baixo orçamento não é o problema
Mais
uma vez me rendi aos mistérios do desconhecido. Entrei na sala escura do cinema
sem qualquer expectativa além daquela que todo amante da sétima arte carrega:
ser atravessado por uma experiência. Acontece que há atravessamentos e...
atravessamentos.
Sou um
entusiasta confesso do cinema amador. Valorizo a estética improvisada, a
rebeldia do som imperfeito, o tosco. O underground no sentido mais cru da
palavra, aquele que se faz com suor, coragem e poucos recursos — me fascina há
tempos. Foi com esse espírito que assisti a Lucas da Feira. Mas confesso: a
experiência que vivi foi muito além do que se pode atribuir ao “baixo
orçamento”. O problema era, e é, outro.Não é a precariedade dos recursos
audiovisuais que compromete o longa. Tampouco as atuações forçadas ou os
figurinos inconsistentes. A falha central está na tentativa de se contar uma
história sem lógica narrativa, sem coesão simbólica e sem compromisso com a
figura histórica que se propõe a retratar. Lucas da Feira, o personagem-título,
é reduzido a um sujeito errante, chupador compulsivo de frutas tropicais, cuja
função narrativa parece ser apenas a de preencher metragens com chupar de
laranjas, mordidas de cajus e descascamento de tangerinas.
Durante
mais de 80% da projeção, vemos um protagonista e coadjuvantes que perambulam
entre árvores e olhares perdidos, sem densidade nem propósito. E quando o filme
decide enfim esboçar algum tipo de
conflito dramático, é tarde demais: a caricatura já foi desenhada e pintada com
tinta permanente.
O que
se segue é um desfile de enquadramentos caóticos, planos abertos que não
comunicam nada, cortes que cortam também a paciência do espectador e tomadas
que mais parecem ensaios de gravação. A fotografia, por vezes promissora,
naufraga sob uma direção indecisa e uma montagem desarticulada, que falha em
costurar até mesmo as cenas mais simples.
A
frustração cresce porque o material de origem é potente. A trajetória de Lucas
da Feira enquanto símbolo de resistência negra e quilombola no Brasil do século
XIX oferece um universo riquíssimo de interpretações, emoções e confrontos. Mas
o filme escolhe, deliberadamente, o caminho da banalização. O que poderia ser
uma narrativa decolonial se converte em um mosaico desconexo, sem arcabouço
histórico nem construção simbólica.
As
falas são repletas de clichês contemporâneos, completamente descoladas do
contexto de época. Em um dos momentos mais estarrecedores, um senhor de engenho
saca, em pleno início do século XIX, uma pistola semiautomática com carregador,
modelo que só surgiria muitas décadas depois. Se fosse apenas um deslize de
produção, talvez passasse despercebido. Mas esse anacronismo é sintoma de algo
maior: a desatenção, a displicência com o rigor narrativo e historiográfico.
Como
historiador, não posso deixar de frisar: essa obra não apenas incorre em erros,
mas assume uma postura negligente frente ao que representa Lucas da Feira. O
pacto mínimo que toda ficção histórica deve firmar com a memória e com o
respeito às lutas do passado é aqui desfeito — e o espectador atento (ou não)
sente o baque.
A
trilha sonora, por sua vez, busca também esboçar certa intensidade, mas em
vários momentos mais se assemelha a vinhetas de noticiário urgente do que a uma
composição imersiva. A atuação de Tony Maravilha oscila entre o apático e o
involuntariamente cômico — o que, somado à falta de direção cênica, contribui
para o naufrágio.
Dito
isso, é importante reafirmar: esta crítica não é contra a estética trash, a
produção independente ou o cinema feito no calor da urgência. Ao contrário,
tenho na minha experiência junto a curadoria do Festival Cine Horror, onde vejo
obras que, mesmo com pouquíssimos recursos, constroem universos ricos e
provocadores. Mas há uma diferença fundamental entre ousadia e desleixo, e
Lucas da Feira escorrega feio para o segundo.
Os
personagens coadjuvantes não ajudam a resgatar o tom. A baronesa, por exemplo,
parece uma vilã de novela mexicana com sotaque incerto e trejeitos caricatos. É
um show de estereótipos e improvisações mal resolvidas.
Sob a
perspectiva historiográfica, o filme presta um desserviço. Ele deturpa os
traços fundamentais da figura histórica que diz retratar e, o que é ainda mais
grave, atribui-lhe condutas moralmente condenáveis de forma
desordenada/aleatória. O que se evidencia, em certos trechos, é a associação de
Lucas da Feira. E é com essa marca que o protagonista permanece até os créditos
finais. Isso, do ponto de vista ético, é imperdoável.
No
campo do debate público, a obra também falha. Poderia ter gerado reflexão,
tensionado memórias, colaborado para o reconhecimento da resistência negra no
Brasil. Mas, em vez disso, mergulha em uma espiral de incoerência narrativa,
escolhas visuais duvidosas e conclusões que desconstroem, de forma
irresponsável, qualquer possibilidade de empatia histórica.
Os 15
minutos finais merecem menção à parte: ao tentar criar uma espécie de
“desdocumentário”, o filme abdica até mesmo da sua pretensão narrativa. O
espectador é convocado a julgar os atos do protagonista sem que tenha lhe sido
entregue, ao longo da projeção, qualquer contexto consistente. É como se o
“duplipensar” — conceito caro aos negacionistas e obscurantistas — guiasse a
proposta final. A obra opta por hostilizar a figura histórica com requintes de
crueldade simbólica.
Ao sair
da sala, ficou a sensação de que acompanhei um projeto que, por mais
bem-intencionado que tenha sido em sua gênese, fracassou em seu
desenvolvimento, em seu discurso e em seu compromisso com a história.
Se o
propósito era provocar reflexão, conseguiu. Mas talvez não da maneira que seus
criadores imaginavam.
TÍTULO
ORIGINAL: Lucas da Feira | Ano de Produção 2025 | Brasil
DIREÇÃO:
Aderaldo Miranda e Joél Áuves
ROTEIRO:
Aderaldo Miranda e Joél Áuves
ELENCO:
Tony Maravilha, Flaviano Oliveira, Joselito Conceição, Camila Gama, Aline
Bastos, Meire Vinhas.
PRODUTORAS:
Tudão Produção e Iau Productions
DURAÇÃO:
73 min
SINOPSE:
Em um
Brasil colonial marcado pela escravidão, um homem se recusa a viver de joelhos.
Lucas da Feira conta a história de um filho de escravizados que, educado por um
padre, se rebela contra um sistema brutal, tornando-se lenda nas matas da
Bahia. Para alguns, um fora da lei. Para outros, um herói da liberdade.
Fonte:
Por Ivan Rios, em Brasil 247

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