As
universidades públicas brasileiras estão sendo acossadas
Há
tempos, a elite econômica e a política brasileira têm acossado as universidades
públicas de inúmeras maneiras, que são ora mais, ora menos transparentes.
Buscamos elencar algumas dessas formas, sem a pretensão de esgotá-las, mas
referindo-nos igualmente a algumas de suas possíveis decorrências antissociais
e, portanto, nada republicanas.
Embora
talvez pouco explícitas para o conjunto da sociedade, é possível identificar
intervenções diretas desses setores sociais, dos governos que os representam e
de gestões que as adotam, de forma acrítica. São exemplos aquelas que têm a ver
com o subfinanciamento e o contingenciamento de recursos para as universidades;
a infraestrutura exígua; a inadequação do número de servidoras(es); a não
reposição de profissionais que falecem ou se aposentam; a não valorização
dessas(es) profissionais; a insuficiência ou, não raro, a inexistência de
políticas de assistência estudantil; o uso indiscriminado do ensino a
distância; a ocorrência de cursos pagos e de assessorias por meio de fundações
privadas “de apoio”; e a inserção do binômio “inovação-empreendedorismo” ao
lado do tripé ensino-pesquisa-extensão. Enfim, trata-se da normalização da
precariedade como contexto ao qual as universidades públicas têm sido
submetidas no país.
Mas o
que por certo passa despercebido para a maioria das pessoas é o trabalho
ideológico cotidiano que se expressa, por exemplo, no uso de expressões que
buscam desqualificar as universidades públicas, as(os) servidoras(es) que lá
trabalham como docentes ou funcionárias(os) técnico-administrativas(os), as(os)
estudantes que nelas têm sua formação: “torre de marfim”, “antro de
esquerdismo”, “beneficiam apenas a elite”, “abarrotadas de estudantes que não
se esforçam”, “desperdício de dinheiro público”, “não se preocupam com a
formação profissional”, “foco de radicalismo e protesto”, “não interagem com o
mercado”, “não cobram de quem pode pagar”, “locais de balbúrdia” e inúmeras
outras alegações que, repetidas à exaustão, cumprem o papel de tentar soar como
verdades absolutas para parcela significativa da sociedade, estando presentes
entre pessoas de diferentes espectros políticos com alinhamentos à lógica
neoliberal. Uma tarefa não desprezível.
Comecemos,
então, por algumas questões estruturantes às quais também essas universidades
têm sido submetidas. A primeira delas diz respeito à financeirização da vida,
em que tudo, inclusive os direitos sociais, vira mercadoria, sendo que os
instrumentos monetários e o sistema financeiro orientam a lógica de
funcionamento da sociedade e, portanto, da universidade.
Decorrente
da primeira, a segunda refere-se à primazia da austeridade fiscal imposta pela
crença na racionalidade técnica e na neutralidade política, como convém à
reprodução da dependência epistêmica e tecnológica. A terceira tem a ver com a
assunção generalizada, por parte de sucessivos governos, da premissa de que
“Estado e mercado não mais podiam ser vistos como alternativas polares para se
transformarem em fatores complementares de coordenação econômica” (Cadernos
Mare n° 1 da Reforma do Estado, 1997, p. 11), cuja ideia-força é
incorporar/delegar ao mercado parte das funções até então realizadas
diretamente pelo Estado. Uma vertente do Estado mínimo.
Cabe
lembrar que, do ponto de vista histórico, as universidades públicas são
instituições que demandam orçamento público adequado e soberania intelectual
ou, usando a expressão consignada no artigo 207 da Constituição Federal de
1988: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa
e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Diga-se de passagem,
essa concepção tem sido atacada desde então por setores sociais e por
intelectuais que sempre defenderam a dualidade “excelência da pesquisa” e
“excelência do ensino” em contraposição ao que denominam pejorativamente de
“modelo único de universidade que realiza de forma indissociada ensino,
pesquisa e extensão”. Essa tensão extrapola a questão semântica e, tendo forte
recorte de classe, por óbvio permeia a realidade aqui tratada, tanto em termos
gerais quanto em termos das atividades realizadas nas e pelas universidades
públicas.
Observemos
algumas tendências que foram, ao longo do tempo, se entranhando na vida social,
assim como na vida acadêmica. Se a tendência à privatização não é inédita, pois
vem de longa data, nos anos 1990, simultaneamente ao avanço de políticas
neoliberais (garantidas constitucionalmente, diga-se de passagem), ela realiza
um salto qualitativo com a doutrina da Reforma do Estado, cujo tripé
privatização, terceirização e publicização passa a materializar um processo
progressivo de desresponsabilização do Estado, sobretudo quanto a atividades
correspondentes aos direitos sociais.
A ordem
geral passou a ser privatizar; o que não puder ser privatizado deve ser
terceirizado e, por sua vez, o que não puder ser terceirizado – por exemplo,
educação, saúde, equipamentos culturais, entre outras atividades que
anteriormente eram providas diretamente pelo Poder Público – passa a ser
entregue a organizações não governamentais (Ongs) ditas “sem fins lucrativos”,
mas entendidas como constituindo “quase mercados”. E, assim, o Estado é
transformado apenas num grande gerente, com razoável questionamento de sua
possibilidade de gerenciamento.
Eis que
o pulo do gato forjado pelo então ministro Bresser-Pereira durante o governo de
Fernando Henrique Cardoso e Marco Maciel, sob a alegação de se contrapor ao
neoliberalismo, toca “corações e mentes” não só de pessoas, mas também de
partidos e governos outrora insuspeitos de tal adesão à Reforma do Estado. E o
fato de não ter força de lei não impede que, em seguida, essa doutrina tenha
seus conteúdos progressivamente positivados em instrumentos legais a partir da
Reforma Administrativa (Emenda Constitucional n° 19, 1998) no governo citado.
Assim,
a Administração Pública Gerencial vai se consolidando ao longo do tempo, sendo
que, apesar de ter havido resistência de parcelas da sociedade, efetivamente
não houve contraposição significativa a ponto de impedir tal consolidação. O
país passou a ser instado a conviver cada vez mais com privatizações, parcerias
público-privadas, terceirizações, contratos de gestão, agências nacionais de
pretenso controle das delegações realizadas e assim por diante. Perspectiva
nada contestada durante os dois primeiros governos de Lula da Silva.
Ao
contrário, a lógica neoliberal avançou nesses governos, sendo um dos exemplos
mais contundentes a reforma da previdência de 2003 (EC n° 41, 2003), com
incentivo à adesão à previdência privada. Os impactos dessa reforma ainda não
foram totalmente compreendidos, uma vez que muitas(os) daquelas(es) que
ingressaram no funcionalismo público após sua instituição ainda não se
aposentaram.
Nos
anos 2015-16, esse projeto político dá um novo salto qualitativo quando a
atenção geral do país estava voltada para o acompanhamento do impeachment da
presidenta Dilma Rousseff. Novas mudanças estruturais são forjadas com a
aprovação da Emenda Constitucional n° 85, em 2015, que atribuiu à inovação o
mesmo status, colocando-a ao lado do binômio ciência e tecnologia nos artigos
da Constituição – um verdadeiro acinte conceitual, mas entronização essencial
para a iniciativa privada, na medida em que a inovação é, sobretudo, de
responsabilidade das empresas. Logo após o impeachment, já no governo de Michel
Temer, aprova-se a Emenda Constitucional n° 95, em 2016, que estabeleceu o Novo
Regime Fiscal, prevendo um teto para as despesas primárias da União, condicionando
os recursos disponíveis à política fiscal pretendida pelo capital fictício
vigente no país.
Em
seguida, a aprovação da Lei nº 13.243/2016, o Novo Marco Legal de Ciência,
Tecnologia e Inovação (MLCTI), e do Decreto nº 9.283/2018, que o regulamenta,
não deixa dúvidas de que, sob a alegação de “busca de segurança jurídica”,
foram regularizadas inúmeras atividades que constituem conflitos de interesse.
Entre elas encontram-se, a título de exemplo, que as universidades públicas
permitam “a utilização de seus laboratórios, equipamentos, instrumentos,
materiais e demais instalações existentes em suas próprias dependências por
ICT, empresas ou pessoas físicas voltadas a atividades de pesquisa,
desenvolvimento e inovação […] e […] o uso de seu capital intelectual em
projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação”. (Lei n° 13.243/2016, artigo
4°, incisos II e III). Se tais permissões não configuram conflitos entre
interesse público e interesse privado, não sabemos o que poderia configurar.
E cabe
lembrar que essa lei alterou dispositivos da Lei nº 8.666/1993 (sobre
licitações), da Lei nº 12.772/2012 (sobre carreira docente) e da Lei nº
10.973/2004 (sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica
no ambiente produtivo). Ou seja, não foram pouco significativas as mudanças
realizadas em momento tão conturbado da política nacional.
O mais
impressionante disso tudo é uma certa rendição, inclusive endógena, ao modelo
neoliberal que acossa a perspectiva de universidade pública que defendemos. A
adesão ao modelo proposto pelo MLCTI é ampla, com envolvimento de
servidoras(es) docentes e técnico-administrativas(os) sem a devida crítica ao
modelo.
A
possibilidade de complementações “salariais” por meio do estabelecimento de
convênios com empresas – o que destrói a perspectiva da dedicação exclusiva,
entre outros efeitos –, o desmonte da política salarial com o pagamento de
abonos e o produtivismo acadêmico, resultante da lógica gerencial mencionada,
são aspectos que reforçam uma disputa ideológica bastante importante, do nosso
ponto de vista.
Portanto,
defender a concepção de uma universidade brasileira verdadeiramente pública,
com financiamento exclusivamente público, alicerçada nos interesses da
sociedade, é uma obrigação daquelas e daqueles que entendem que o modelo
neoliberal de gestão do Estado é algo a ser combatido.
Fonte:
Por Michel Schultz e Cesar Minto, no Correio da Cidadania

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