Falta
de assistência à saúde permanece após expulsão de garimpeiros na TI Munduruku
“Hoje
em dia a gente está mais doente que antes”. Foi assim que a líder indígena
Hidelmara Kirixi descreveu as condições de saúde nas aldeias Munduruku, apesar
das recentes operações do governo federal para combater a mineração ilegal que
causou contaminação generalizada por mercúrio. “As mulheres grávidas não
conseguem mais ter um filho por parto normal por causa disso”.
Uma
ampla gama de doenças ligadas à poluição e destruição trazidas pelo garimpo
ilegal se espalhou nas terras indígenas do povo Munduruku, no Pará, como
diarreia, coceira, gripe, febre, paralisia infantil e problemas cerebrais,
afirma. “Crianças também nascem com essas doenças,” disse Kirixi, uma das
coordenadoras da Associação de Mulheres Munduruku Wakoborũn, em entrevista em
vídeo à Mongabay.
Em
novembro de 2024, o governo federal lançou uma operação para expulsar
garimpeiros ilegais da Terra Indígena Munduruku. As autoridades destruíram 90
acampamentos, 15 embarcações, 27 máquinas de grande porte e 224 motores de
garimpo, e aplicaram multas de R$ 24,2 milhões.
No
entanto, pouco foi feito para lidar com os problemas de saúde oriundos da
destruição causada pela mineração de ouro, afirmam líderes indígenas e
pesquisadores. “Vem a desintrusão dentro do território, mas não levam políticas
públicas para o território, não levam saúde, não levam alimento, não levam
nada. Simplesmente tiram [o garimpo] e deixam o povo abandonado”, Alessandra
Korap, líder Munduruku e presidente da Associação Indígena Pariri, disse à
Mongabay durante o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas,
em Nova York.
A
atenção primária à saúde para os povos indígenas no Brasil é fornecida pela
Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério da
Saúde. Mas essa assistência diminuiu nos últimos anos, de acordo com Toya
Manchineri, coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (Coiab).
“A
assistência da SESAI já foi bem melhor. Havia equipes que, de 15 em 15 dias,
iam nos territórios. Hoje tem uma demanda grande de equipes e não têm condições
de ir nos territórios. O Ministério da Saúde tem que repassar mais recursos
para a SESAI para que ela possa fazer um bom atendimento nos territórios e
fazer infraestrutura dentro dos territórios”, disse ele à Mongabay por
telefone.
A SESAI
e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) não responderam aos pedidos
de resposta da Mongabay até a publicação da reportagem.
Entre
janeiro e outubro de 2024, 381 casos de efeitos tóxicos de mercúrio e seus
compostos foram registrados nos territórios indígenas Munduruku e Sawré Muybu,
informou o Ministério da Saúde à Mongabay em novembro de 2024. No entanto, o
ministério não respondeu aos pedidos da reportagem por dados atualizados, nem
forneceu informações sobre quaisquer medidas de saúde direcionadas ao povo
Munduruku após a operação de desintrusão.
“O que
estamos ouvindo das lideranças é que ainda se mantém a invasão garimpeira.
Também ouvimos relatos da fome até aumentar em algumas regiões durante a
desintrusão, pois a ação do governo ainda não foi atendida com ações de
serviços sociais”, Ailén Vega, pesquisadora e doutoranda em geografia na
Universidade da Califórnia, Berkeley, disse à Mongabay por e-mail. Vega tem
acompanhado as questões territoriais nas regiões do médio e alto Rio Tapajós
desde 2016, focando nos impactos da exposição e contaminação por mercúrio para
o povo Munduruku.
O
Ministério dos Povos Indígenas (MPI) informou à Mongabay, por e-mail, que a TI
Munduruku é uma das 15 terras indígenas que receberão apoio do projeto Ywy
Ipuranguete para a implementação de instrumentos de gestão territorial e
ambiental. O projeto também visa promover a soberania alimentar, a geração de
renda sustentável e a preservação das culturas e tradições indígenas. Ywy
Ipuranguete significa “terra bonita” em tupi-guarani, em referência à
fertilidade e riqueza da sociobiodiversidade dos territórios indígenas. Com
financiamento total de US$ 9 milhões, o projeto é coordenado pelo MPI com apoio
técnico da Funai. O Território Indígena Sai-Cinza, também lar de comunidades
Munduruku e incluído na operação de repressão ao garimpo ilegal, não foi
incluída no programa.
O MPI
disse que não poderia fornecer informações específicas sobre problemas de saúde
nas terras Munduruku por ser “responsabilidade direta” da SESAI.
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Desintrusão nas TIs Munduruku x Yanomami
Os
territórios Munduruku integram o grupo de sete terras indígenas da Amazônia
onde o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva concentrou os esforços
para a expulsão de invasores. Agentes federais realizaram incursões em quatro
estados, incluindo a TI Yanomami em Roraima e a TI Arariboia no Maranhão. Na
maioria dos casos, os esforços responderam a uma decisão do Supremo Tribunal
Federal que exigia que as autoridades federais protegessem essas comunidades
tradicionais.
A
primeira operação do tipo ocorreu na TI Yanomami em janeiro de 2023, assim que
Lula assumiu o cargo. Além de remover garimpeiros ilegais, o governo também
declarou estado de emergência de saúde pública e fez da prestação de
assistência à saúde e alimentação ao povo Yanomami uma prioridade máxima.
No
período de dois anos desde a desintrusão, mais de 6.200 Yanomami foram tratados
em centros de saúde indígenas dentro do território. Em Boa Vista, 15 das 19
crianças Yanomami hospitalizadas por desnutrição aguda, com idade entre 6 meses
e 5 anos, ganharam peso e melhoraram para uma condição moderada.
As
incursões no final de 2024 no Pará visaram os territórios Sai Cinza e
Munduruku, uma área contínua quase do tamanho do estado de Alagoas, onde vivem
mais de 11 mil indígenas. Localizados nos municípios de Jacareacanga e
Itaituba, conhecidos como o epicentro do ouro ilegal na Amazônia, esses
territórios têm uma presença histórica de garimpeiros.
As
autoridades rastrearam 21 pistas de pouso clandestinas e mais de 7 mil hectares
de minas ilegais que, segundo as autoridades, foram totalmente paralisadas após
as incursões federais. Para evitar o retorno dos garimpeiros, o governo
prometeu manter o patrulhamento e o monitoramento da região.
No
entanto, ao contrário da força-tarefa na TI Yanomami, o povo Munduruku reclama
que a operação em seu território não foi acompanhada de ações focadas na saúde.
. Segundo as lideranças, o descaso do governo com seus pedidos de ajuda ocorre
há vários anos.
Em
abril, líderes Munduruku enviaram uma carta à SESAI exigindo ações para
fornecer assistência à saúde ao seu povo. Assinada pela Associação de Mulheres
Munduruku Wakoborũn, a Associação Indígena Pariri e o Movimento Ipereğ Ayũ
Munduruku, a carta se refere a um documento anterior de abril de 2024. “As
comunidades Munduruku do Alto e Médio Tapajós têm sistematicamente denunciado a
realidade de violações a que estão submetidas”, disseram os líderes na carta. O
documento aponta problemas específicos, como o aumento de doenças, contaminação
por mercúrio ingerido nos peixes, insegurança alimentar e outras formas de
destruição de seus territórios.
Eles
também enviaram uma lista detalhada de ações necessárias para lidar com os
problemas de saúde nos territórios Munduruku, como mais financiamento para
montar estruturas apropriadas para prestar assistência na região e medidas para
combater a contaminação por mercúrio, malária, insegurança alimentar e falta de
água potável. “Gostaríamos de ter respostas dos andamentos destas exigências”,
escreveram as lideranças.
O
Coletivo Audiovisual Wakoborũn produziu o documentário Awaydip Tip Imutaxipi (A
Floresta Doente), que mostra os impactos da mineração ilegal no território.
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Contaminação por mercúrio e doenças ligadas à mineração ilegal
Uma
pesquisa de 2019 encontrou vestígios de mercúrio em amostras de cabelo de todos
os 200 indígenas que participaram do estudo em três aldeias Munduruku no médio
Tapajós. As análises realizadas pela Fiocruz, principal centro federal de
pesquisa em saúde do Brasil, revelaram que seis em cada 10 indígenas
apresentavam níveis de mercúrio acima do limite seguro; peixes também estavam
contaminados.
Nas
áreas mais impactadas pela mineração ilegal, nove em cada 10 participantes
registraram altos níveis de contaminação por mercúrio, segundo a pesquisa. De
acordo com a análise, 16% das crianças menores de 5 anos que foram submetidas a
testes de neurodesenvolvimento apresentaram problemas de coordenação motora e
fala. A pesquisa foi realizada em resposta a uma carta enviada à Fiocruz por
Alessandra Korap Munduruku em 2017.
A
pesquisa foi coordenada pelo pesquisador da Fiocruz Paulo Basta, que, desde
2023, vem liderando um estudo para avaliar a contaminação por mercúrio em
gestantes Munduruku e as consequências para seus bebês. “E a gente tem aí um
contingente de 80 crianças já que nasceram, desde o início do acompanhamento, e
as crianças já nascem com níveis de mercúrio nas amostras de cabelo”, disse
Basta à Mongabay em entrevista em vídeo.
A
pesquisa está em andamento e os resultados preliminares devem ser apresentados
ao povo Munduruku este mês, segundo Basta. Uma pesquisa semelhante foi
publicada em maio, focada na TI Yanomami.
A
proliferação da malária também é uma preocupação nas terras Munduruku, já que a
região é endêmica para a doença. De acordo com o governo federal, o território
Munduruku responde por 60% dos casos de malária registrados no Distrito
Sanitário Especial Indígena Rio Tapajós (DSEI Rio Tapajós), que atende
comunidades de nove grupos indígenas no Pará e Amazonas. O DSEI Rio Tapajós
registrou 4.808 casos de malária em sua área de atuação em 2023, e 3.142 de
janeiro a setembro de 2024, de acordo com um comunicado publicado em dezembro
de 2024. O Ministério da Saúde não forneceu dados atualizados.
“Eu
costumo dizer que o mercúrio é só a pontinha do iceberg. Na base desse iceberg
tem uma série de problemas, às vezes até mais graves do que a contaminação pelo
mercúrio”, disse Basta.
Em
maio, a Fiocruz, o Ministério da Saúde e o MPI lançaram um manual técnico para
o atendimento de indígenas expostos ao mercúrio no Brasil. Segundo Basta, o
objetivo é fornecer orientação para o tratamento adequado, dada a falta de uma
rede de serviços estabelecida para atender a essas pessoas e a falta de
conhecimento entre profissionais de saúde e pacientes.
“Os
profissionais de saúde não estão habituados a lidar com esse tipo de situação.
Os sintomas da contaminação por mercúrio podem se confundir com outras doenças
e, na verdade, os profissionais de saúde nem sequer pensam na contaminação por
mercúrio como um diagnóstico diferencial”, disse Basta. “E os pacientes, por
sua vez, não têm o conhecimento da difusão do mercúrio no ambiente, não têm a
compreensão ampla de que afeta os peixes. E como esse processo de contaminação
é lento e insidioso, os sintomas vão aparecendo discretamente e conforme o
tempo vai passando eles vão se avolumando”.
O
objetivo do lançamento do manual, afirma Basta, é lançar as bases para que o
sistema de assistência a pacientes indígenas seja amplamente implementado,
acompanhado de treinamento de equipes de saúde em áreas prioritárias. Segundo
Basta, se a contaminação já afetou o sistema nervoso central e a pessoa já tem
déficits motores, sensitivos e cognitivos relacionados ao mercúrio, não há
cura.
Por
isso, a única coisa que pode ser feita é evitar que as complicações evoluam e
dar a essas pessoas uma melhor qualidade de vida, afirmou. A detecção da doença
nos estágios iniciais e intervenções apropriadas são especialmente importantes
para permitir que crianças contaminadas tenham “uma vida mais próxima do
normal”, acrescentou.
Para
Vega, a pesquisadora de Berkeley, a questão da exposição ao mercúrio não será
resolvida a curto prazo, a despeito de quaisquer incursões governamentais ou do
declínio na atividade de mineração. Segundo ela, o metal permanece no solo e os
sintomas tendem a ser latentes. “No meu ver, isso quer dizer que qualquer ação
realizada já está gravemente atrasada”.
Ela
destaca também a “urgência” para que as demandas de saúde sejam atendidas com
orientação e consulta permanente aos especialistas em saúde dos povos
indígenas, como os pajés e os anciãos, que trabalham com a medicina tradicional
e consideram os efeitos dos tratamentos sobre outros seres que fazem parte da
cosmologia Munduruku e que são cruciais para garantir sua sobrevivência.
“Qualquer
proposta sobre como combater a exposição ou contaminação por mercúrio precisa
ser vista em relação à habilidade do povo de manter sua alimentação tradicional
e fortalecer a sua soberania alimentar, dois aspectos que têm sido totalmente
afetados pela invasão garimpeira”, ela disse. “O garimpo não só tem contaminado
os peixes, como também diminuído a caça, impedido a abertura de roças em certas
regiões, devastado árvores frutíferas, e também facilitado a proliferação de
comidas industrializadas na aldeia e outras doenças, como a malária. Isso
significa que a habilidade do povo Munduruku viver bem e ter boa saúde está
sendo cronicamente atacada”.
Fonte:
Mongabay

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