A
América Latina é ecumênica? Alianças e tensões no universo cristão
Se
a América Latina foi considerada uma "região católica", o
fato é que nela coexistem uma diversidade de crenças e formas de se relacionar
com o mundo espiritual, algo que se tornou mais evidente no espaço público nas
últimas décadas. O crescimento do número de pessoas que se identificam como
“sem religião”, a diminuição do número de católicos e o aumento das igrejas
evangélicas –
sobretudo as pentecostais – transformaram a maneira como pensamos a
religião e seu lugar no espaço público no subcontinente latino-americano.
Ao
mesmo tempo, uma série de acontecimentos voltou a atrair a atenção de
especialistas e do público em geral para a dimensão religiosa, gerando novas
perguntas que nem sempre foram respondidas com a complexidade necessária para
compreender uma região tão rica em expressões de fé. A eleição do
primeiro papa
latino-americano, o
crescimento da participação cristã evangélica na arena política, os debates em
torno do avanço dos direitos sexuais e reprodutivos – que entram em tensão com
moralidades religiosas –, e o fortalecimento de novas direitas que estabelecem
vínculos com a religião distantes de suas formas tradicionais, incentivaram a
reflexão sobre o lugar do religioso na vida social, bem como sobre o papel que
cabe ao Estado na regulação dessas questões.
Pablo Semán e Renée de
la Torre resumem esses desafios em cinco situações que indicam uma
possível crise: a tendência à diversificação religiosa sem uma cultura
pluralista; a entrada de grupos religiosos na esfera pública e os
questionamentos que fazem às formas tradicionais de relação com o Estado; o
esforço das religiões para impor seus valores morais como universais (inclusive
amparando-se na liberdade religiosa); a vontade política majoritária que ecoa
esses discursos de maneira a perpetuar visões conservadoras; e o uso
instrumental da religião por líderes políticos para aumentar sua popularidade.
Dessa forma, nos deparamos com um desafio ao pensar o futuro da religião
na América Latina, ao qual se soma, atualmente, a pergunta sobre a
nova etapa que a Igreja Católica inicia após o papado de Francisco (2013-2025).
Essas
transformações ocorrem, contudo, em um subcontinente que segue sendo
majoritariamente cristão, embora a hegemonia simbólica do catolicismo pareça
ter entrado em crise. Por isso, neste artigo, buscamos abordar as
transformações em curso a partir de uma perspectiva relativamente nova: a das
múltiplas relações que se estabelecem entre diferentes formas de cristianismo e as
consequências que essas relações podem ter para o presente e o futuro. Em
termos teológicos, essas relações são englobadas sob a categoria de ecumenismo,
sendo o diálogo inter-religioso utilizado para se referir ao
contato com religiões não cristãs, sejam elas de tradição abraâmica (como o
judaísmo e o islamismo) ou de outras crenças. Consideraremos o ecumenismo em um sentido
amplo – como o diálogo entre cristãos – e também em um sentido mais restrito,
em que as próprias instituições religiosas usam essa categoria para refletir
sobre as antigas e novas formas de vínculo entre religiões há muito presentes no
continente, mas cuja correlação de forças está mudando rapidamente.
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Números e cenários
Se
observarmos os dados disponíveis sobre filiações religiosas
na América Latina nos
últimos 50 anos e considerarmos todas as igrejas cristãs (ou seja, todas
aquelas que creem em Jesus como filho de Deus e na Bíblia como livro
fundamental), pareceria que quase não houve mudanças: havia 94,3% de cristãos
em 1970 contra 92,1% em 2020 – apesar de a população ter crescido
consideravelmente, passando de cerca de 288 milhões para mais de 664 milhões.
No entanto, quando desagregamos a grande categoria “cristãos”, percebemos uma
transformação importante: o número de católicos
diminui,
enquanto o de evangélicos cresce de 7,7% da população (22 milhões) em 1970 para
18,2% (121 milhões) em 2020 .
Outras
pesquisas apresentam percentuais menores de cristãos, pois identificam um
aumento no número de pessoas sem religião, embora confirmem a tendência de
queda do catolicismo e de crescimento das igrejas evangélicas. Assim,
o Pew Research Center identificava, em 2014, 88% de cristãos (69%
católicos e 19% evangélicos) e 8% de pessoas sem religião; já a pesquisa de
2024 do Latinobarómetro encontrou 73% de cristãos (54% católicos e
19% evangélicos) e 19% de pessoas sem religião. Esses dados também apresentam
variações regionais dentro do subcontinente, com países onde o catolicismo
ainda é majoritário e outros onde a maioria é evangélica ou sem religião, como
é o caso do Uruguai. Além disso, se
tomarmos o batismo como indicador de filiação à Igreja
Católica (considerando que, na América Latina, muitas pessoas ainda
realizam esse rito mais por tradição social do que por convicção religiosa),
podemos observar que, mesmo sendo a região com os índices mais altos do mundo,
esses números vêm caindo – especialmente em países como Brasil e Chile, que historicamente
tiveram forte presença católica.
Da
mesma forma, o crescimento das igrejas evangélicas ocorre de maneira
diferenciada, tanto entre países quanto entre os tipos de igreja. É necessário
distinguir aqui entre: as igrejas protestantes, originadas diretamente da Reforma e cuja chegada
à região está associada às ondas migratórias do final do século XIX e início do
século XX; as igrejas evangélicas do começo do século XX, como a Igreja
Batista, que, apesar de sua longa trajetória na região, inicialmente não tiveram
grande representatividade demográfica; e, por fim, as igrejas pentecostais,
surgidas em sua maioria após o movimento de renovação espiritual nos Estados
Unidos, no final do século XIX, e que, com algumas exceções, passaram a se
estabelecer com mais força na América Latina a partir de meados do
século XX. Dessas últimas e de suas múltiplas renovações – que deram origem às
igrejas neopentecostais – derivam também diversas igrejas locais, algumas das
quais mantêm tensões com outras igrejas semelhantes, como é o caso da Igreja Universal do
Reino de Deus no Brasil. São justamente as igrejas pentecostais e
neopentecostais que mais cresceram nas últimas décadas, chegando a representar
56% dos cristãos no Brasil, 52% na Guatemala, 47%
em Porto Rico, 42% na Guiana e 40% no Chile .
Essas
transformações ao longo dos últimos 50 anos modificam a forma de pensar a
dimensão religiosa na América Latina, não apenas pelas mudanças nas adesões e
práticas religiosas das pessoas, mas também porque afetam a percepção da
religião no espaço público e seu lugar na vida cotidiana – tanto para os
crentes quanto para os não crentes.
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Uma região que se diversifica… e dialoga?
Apesar
dessas mudanças no cenário religioso, a Igreja Católica continua
exercendo uma influência importante na América Latina, especialmente quando se
trata da relação com o Estado e do imaginário social sobre o que se espera de
uma religião no espaço público. Independentemente do grau de laicidade dos
marcos legais – ou seja, de como as constituições nacionais e outras leis
moldam a relação entre Estado e religião – dez países latino-americanos ainda
mantêm uma concordata com a Igreja Católica. O peso do catolicismo no processo
de conquista colonial e na formação das identidades nacionais não pode ser
subestimado. De certa forma, a abertura institucional dos Estados
latino-americanos a outras religiões coincide com a própria flexibilização
ecumênica da Igreja Católica. Por isso, para compreender a diversificação
dos acordos institucionais, é preciso também considerar as mudanças teológicas
que a Igreja sofreu nos últimos 60 anos e sua influência nos caminhos
percorridos pela região.
O Concílio Vaticano II (1962-1965)
promoveu uma renovação interna na Igreja Católica que, em muitos aspectos, teve
um impacto mais duradouro em suas relações com o “mundo” fora da instituição
eclesiástica do que dentro dela. Os documentos Unitatis redintegratio,
sobre o ecumenismo, e Nostra aetate, sobre o diálogo
inter-religioso,
marcaram uma nova forma de pensar os vínculos com outras religiões e, como
consequência não intencional, possibilitaram a construção de novas pontes
inter-religiosas em muitos países com forte presença católica. Na América
Latina, os documentos das Conferências Gerais do Episcopado
Latino-Americano e Caribenho realizadas em Medellín (1968) e
Puebla (1979) representaram uma abertura do catolicismo local com
características próprias, incluindo a valorização do diálogo ecumênico – o que
deu origem a centros e iniciativas de estudo católico-evangélicos em todo o
subcontinente.
Nas
décadas marcadas por fortes convulsões políticas, os espaços ecumênicos
revelaram a face progressista da Igreja Católica e de muitas igrejas
protestantes, nas quais, em alguns casos, tanto hierarcas quanto pastores,
padres e leigos se organizaram e se manifestaram em defesa dos direitos
humanos. Em algumas situações, essas iniciativas incluíram também outras
religiões, especialmente o judaísmo. Exemplos disso são o Comitê de
Cooperação para a Paz no Chile (1973-1975); o Movimento Ecumênico pelos
Direitos Humanos (MEDH) na Argentina (criado em 1975); e a participação de
líderes religiosos nos relatórios Nunca Mais da Argentina (1983)
e Brasil: Nunca Mais (1985), ambos com presença católica,
protestante e judaica. Esse impulso, porém, foi limitado pela guinada
conservadora do Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano) a partir
de 1992, que se estendeu até o início do século XXI.
Com a
eleição de Jorge Bergoglio como papa – o
primeiro latino-americano a liderar a Igreja Católica – surgiu uma euforia em
torno de uma prometida renovação que, embora tenha acontecido, teve um alcance
menor do que o esperado. Apesar de Francisco ter promovido uma reestruturação
da Igreja e colocado em destaque temas como justiça social, migração, direitos
das minorias e diálogo inter-religioso, o número de católicos não cresceu
significativamente durante seu papado, pelo menos na América Latina. Inclusive,
sua imagem altamente positiva nos primeiros anos encontrou limites: foi
considerado moderado por setores progressistas e quase um herege pelos
segmentos mais conservadores da Igreja.
Ainda
assim, a trajetória anterior de Bergoglio no diálogo
inter-religioso se
traduziu em políticas concretas para ampliar o vínculo com outras igrejas
cristãs. Ele se reuniu diversas vezes com líderes ortodoxos, protestantes e
evangélicos e, em 2018, visitou o Conselho Mundial de Igrejas – uma
das principais organizações globais de igrejas cristãs (da qual a Igreja
Católica não faz parte, embora mantenha um grupo de trabalho conjunto que se
reúne anualmente desde 1965). Entre os eixos da encíclica Fratelli tutti sobre
fraternidade social (de outubro de 2020), Francisco incluiu o diálogo ecumênico
e inter-religioso, encerrando o documento com uma oração ecumênica e outra ao
Criador. Em dezembro de 2020, o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade
dos Cristãos publicou o documento O bispo e a unidade dos cristãos:
Vademécum ecumênico, que afirma ser obrigação dos bispos buscar a unidade
entre os cristãos. O texto propõe quatro tipos de interação: o ecumenismo
espiritual, o diálogo da caridade (social), o diálogo da verdade (teológico) e
o diálogo da vida (pastoral e cultural). Dessa forma, convoca toda a estrutura
eclesiástica a se colocar a serviço do diálogo com outras igrejas cristãs, não
apenas no campo teológico, mas também em ações sociais e culturais.
As
igrejas evangélicas, por sua vez, mantêm na América Latina suas
próprias redes de ação conjunta, algumas voltadas ao diálogo ecumênico, mas nem
sempre envolvendo a Igreja Católica – como é o caso do movimento
Justapaz, na Colômbia, impulsionado pela Igreja Menonita. No caso das igrejas
protestantes, o ecumenismo em certas
situações é uma necessidade transformada em virtude, já que, por serem igrejas
pequenas, precisam do diálogo para fortalecer sua organização logística e a
construção comunitária. Um marco importante nesses diálogos interprotestantes,
na região do Rio da Prata, foi o Instituto Superior Evangélico de Estudos
Teológicos (Isedet), com sede em Buenos Aires, que em 1969 unificou a Faculdade
Evangélica de Teologia e a Faculdade Luterana de Teologia – incluindo nove
igrejas protestantes [8] – e se tornou referência com sua biblioteca teológica.
O Isedet encerrou suas atividades em 2015.
Assim,
a Igreja Católica e as igrejas protestantes mantiveram um
diálogo fluido especialmente a partir da década de 1960, quando a abertura
católica encontrou igrejas que já vinham atuando em parceria entre si. Isso se
refletiu nas grandes linhas institucionais, mas principalmente no dia a dia de
leigos e líderes religiosos de níveis intermediários, que compartilhavam certos
princípios relacionados ao bem comum com forte conteúdo social e à busca de uma
voz latino-americana para essas igrejas – todas oriundas, em última instância,
de distintos projetos evangelizadores.
Essa
dinâmica, no entanto, encontra seus limites nas igrejas pentecostais e
neopentecostais. A forma de construção dessas igrejas, que privilegia o chamado
do Espírito Santo sobre a formação teológica, permitiu a proliferação
de pequenas organizações com discurso centrado na guerra espiritual e na
conversão. Embora as igrejas pentecostais e neopentecostais mantenham diálogo
entre si, esse contato geralmente não se estende às outras igrejas cristãs. Em
geral, elas não fazem parte do Conselho Mundial de Igrejas, embora
participem de redes regionais e globais onde as igrejas fundadas
nos Estados Unidos – por serem mais antigas – costumam ter
posição de destaque. Outras igrejas evangélicas, como a batista, têm tendido a
se aproximar das dinâmicas pentecostais e a atuar em conjunto com elas.
As
igrejas pentecostais e neopentecostais crescem, na maioria dos casos, de baixo
para cima – ou seja, a partir das comunidades locais e não de projetos
pastorais centralizados – o que lhes garante enorme capilaridade territorial,
mas dificulta os diálogos institucionais mais convencionais. Sua teologia da
prosperidade – que associa a conquista pessoal, especialmente a econômica,
a um sinal de salvação –, seu foco na conversão individual em detrimento do
compromisso social e suas posições conservadoras em relação à moral sexual têm
dificultado o diálogo com outras igrejas cristãs. Costumam se reunir em
conselhos pastorais locais, com critérios mais territoriais do que teológicos.
A partir desses espaços, impulsionaram em vários países latino-americanos a criação
de secretarias ou departamentos de assuntos religiosos nos governos locais,
como forma de ganhar legitimidade social e construir identidade política.
·
As alianças menos esperadas
Dentro
da Igreja Católica, existe um setor particularmente resistente
ao diálogo ecumênico e
inter-religioso:
os grupos mais conservadores, que geralmente veem todas as igrejas cristãs fora
do catolicismo como uma distorção da verdadeira Igreja de Cristo. Mas, de forma
aparentemente paradoxal, esses grupos têm encontrado nas igrejas pentecostais e
neopentecostais aliados inesperados frente à ampliação dos direitos sexuais e
reprodutivos, na defesa da família tradicional, na resistência ao
reconhecimento de direitos da comunidade LGBTQIA+ e em uma oposição
ferrenha à legalização do aborto. Com o apoio de influenciadores conservadores,
pentecostais, neopentecostais e católicos se unem na oposição à chamada “agenda
woke” e participam ativamente de projetos políticos de direita. Isso pôde ser
observado nos apoios a Jair Bolsonaro no Brasil, ao
golpe contra Evo Morales na Bolívia em
2019, e no apoio de algumas figuras religiosas ao projeto político de Javier Milei na Argentina.
Essa tendência pode se consolidar se olharmos para o que acontece nos Estados
Unidos, onde Donald Trump – com vínculos
históricos com a teologia da prosperidade pentecostal – tem como
vice-presidente J.D. Vance, um católico
conservador convertido recentemente, cujo discurso está distante dos princípios
católicos de inclusão das minorias (como o próprio Papa
Francisco apontou em uma de suas últimas intervenções públicas).
Temos
aqui, portanto, uma espécie de “ecumenismo estratégico”: essas igrejas e
grupos cristãos não estão dispostos a estabelecer um diálogo teológico,
espiritual ou pastoral voltado à unidade – como propõe o ecumenismo papal ou o
das igrejas protestantes –, mas entendem que alianças pontuais podem fortalecer
sua presença na esfera pública e política. Assim, se no púlpito e nos cultos a
inimizade continua firme (e até reforçada como forma de afirmação identitária),
no espaço público estabelece-se uma espécie de trégua que permite um combate
conjunto contra um mundo visto como contrário a uma moralidade compartilhada.
Um exemplo disso é o uso do termo “cristofobia” (em eco a termos
progressistas como homofobia ou islamofobia) para denunciar uma suposta
perseguição à identidade cristã por parte de
setores progressistas – algo que, embora não tenha respaldo em dados empíricos,
reforça a sensação de desproteção da própria identidade frente ao Estado e
fortalece as alianças entre setores conservadores.
De modo
geral, essas ações são reativas frente aos avanços progressistas, utilizando os
canais institucionais e democráticos para se manifestar – o que Juan Marco Vaggione chama de
“secularismo estratégico”. Assim, as marchas pró-vida surgem como reação à “marea
verde” feminista, e o movimento “Com meus filhos não se meta”,
nascido no Peru, rejeita os projetos de educação sexual integral nas escolas.
Essas reações constroem uma narrativa que carrega de conteúdo religioso os
papéis de gênero, situando-os nas posições mais conservadoras possíveis, e
defendem a família nuclear heterossexual como única unidade social legítima, ao
mesmo tempo que denunciam conspirações globais que tentariam destruir uma ordem
social “natural” – uma visão que, paradoxalmente, está bastante distante da
realidade da maioria das famílias latino-americanas.
No
entanto, esse “ecumenismo estratégico” não gera ações de longo prazo para
além dessas mobilizações reativas. As tentativas de formar partidos políticos
capazes de vencer eleições ainda não prosperaram, e, geralmente, nesses casos,
quem assume a liderança são pastores de igrejas evangélicas pentecostais e
neopentecostais, com apoio de alguns setores católicos – mas sem que se
configurem alianças estáveis ou projetos de governo compartilhado entre os dois
grupos. Nesse sentido, uma barreira a um apoio mais aberto por parte do
catolicismo tem sido a política de diálogo e abertura promovida pelo Papa Francisco, que também
influenciou as posições institucionais das Conferências
Episcopais latino-americanas e impediu uma aliança explícita das
hierarquias católicas com posições políticas conservadoras – o que marca uma
ruptura em relação a tendências que já foram significativas em outros momentos
da história do catolicismo na região.
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Uma América Latina mais ecumênica?
Ao
observar o subcontinente latino-americano, encontramos hoje um cenário
diferente do que havia 40 ou 50 anos atrás: a face religiosa da América
Latina está mudando. Embora essa mudança seja menos radical do que se
esperava quando a presença evangélica irrompeu no espaço público, o fato é que
seu crescimento sustentado, junto com a crescente identificação das pessoas como “sem
religião”,
está provocando uma mudança em nosso senso comum latino-americano.
James
Beckford diz que em cada país existe um imaginário sobre o que é “normal”
(taken for granted) quando imaginamos o que é religião, e propõe
que, em uma sociedade que se busca pluralista, essa normalidade deveria nos
permitir ampliar os horizontes diante de uma única forma de prática ou
identificação religiosa. Na América Latina, durante as últimas décadas, vem se
transformando a maneira como imaginamos “normalmente” o que é uma religião, o
que é ser religioso e qual o lugar do religioso no espaço público. Os 500 anos
de presença católica no continente americano moldaram nossa forma de ver a
questão, mas claramente isso está mudando. Se o líder religioso era o padre, o
lugar de culto era a igreja católica com suas imagens de santos, da Virgem e
do Cristo crucificado, a festa religiosa era a procissão, e o lugar
no espaço público era a atuação na educação, saúde e ação social, hoje esse
imaginário se fragmenta e já não é a única forma possível de ver as crenças.
Poderíamos até afirmar que essa visão está tão instalada em nosso senso comum
sobre religião que muitos evangélicos, sobretudo recém-convertidos, não se
referem às suas crenças como religiosas, mas como uma “forma de vida”, uma
“paixão”, algo que não pode ser contido nos limites institucionais .
É isso
que está mudando. No entanto, ao contrário da mencionada promessa de pluralismo
de Beckford, essa mudança está ocorrendo de formas que podem criar novos
imaginários, mas com tom conservador. Mesmo estando em uma região cristã como
a América Latina e com o número
de católicos ainda alto na maioria dos países, a secularização e as mudanças na
composição religiosa estão apresentando novos desafios.
A
presença pentecostal altera os vínculos com o espaço público, tanto na
participação política quanto no uso simbólico dos âmbitos seculares e
religiosos. Por sua vez, se a Igreja católica historicamente incentivou a
participação de leigos comprometidos na política, desencorajou-a entre seus
sacerdotes. Os complexos entrelaçamentos entre o poder eclesiástico e o poder
político na América Latina se construíam mais no lobby do que
nas urnas. Quando as hierarquias eclesiásticas se aliaram ao poder, fizeram
isso a partir de lobbies e pressões externas, enquanto que, quando as bases
(compostas por religiosos e leigos) resistiram ao poder político vigente,
fizeram isso a partir de estruturas já existentes ou apelando à sua condição de
cidadãos, mais do que à sua identidade como católicos. Essa dinâmica se
estende, embora com menor capacidade de pressão, às igrejas protestantes, onde
a participação na política não é incomum, mas sempre foi em segunda linha e na
gestão institucional. As igrejas pentecostais e neopentecostais vêm romper com
essa dinâmica, pois sua participação frequentemente tem como referência os
pastores, e, quando envolve fiéis, ocorre com forte identificação como
evangélicos e com um discurso combativo contra religiões e crenças diferentes
do cristianismo (e, em alguns casos, até contra a Igreja católica).
Embora
as igrejas pentecostais
e neopentecostais tenham
mantido uma persistente ação social e realizado um intenso trabalho em prisões
e na prevenção e recuperação de dependências, sua teologia da prosperidade
também altera parte do senso comum sobre o lugar do religioso na vida privada e
pública. Se a teologia católica denuncia a injustiça, mas faz do
desprendimento do material um valor, a teologia pentecostal rejeita a pobreza e
reivindica para si o bem-estar material como sinal de salvação. Isso também
altera as dinâmicas políticas, os recursos simbólicos e discursivos, e permite
compreender uma certa afinidade eletiva entre algumas dessas igrejas e projetos
liberais que valorizam o indivíduo acima do coletivo.
Os
diálogos possíveis entre igrejas encontram outra limitação no dia a dia: em um
mercado religioso que encolhe diante do crescimento das pessoas que se
identificam como “sem religião”, e frente às adesões sociais com baixa
prática religiosa, há uma batalha silenciosa. O catolicismo busca
conservar fiéis, as igrejas evangélicas, convertê-los. Se no caso dos
pastores a disputa com o catolicismo é aberta, e até em igrejas como a Igreja
Universal do Reino de Deus houve ataques a símbolos católicos, no caso do catolicismo
essa batalha costuma ser mais sutil e visa sobretudo reconhecer o “verdadeiro”
impulso religioso diante do “perigo das seitas”.
Dessa
forma, os diálogos possíveis estão sempre em tensão. Enquanto o diálogo entre
a Igreja Católica e as igrejas protestantes costuma ser
mais fluido, enquadrando-se em um projeto teológico, espiritual, cultural e
simbólico ecumênico, o diálogo com as igrejas pentecostais ocorre
majoritariamente no contexto do “ecumenismo estratégico”, que cria alianças
frágeis e circunstanciais.
Embora
as projeções estatísticas não prevejam uma mudança radical na composição
religiosa nos próximos anos, ao menos em relação às identificações cristãs,
estamos diante de uma nova composição do religioso no espaço público, que
altera aquilo que considerávamos “normal” ao pensar o que é o religioso, como
deve ser visto e como deve se comportar.
A morte do papa
Francisco traz
também novos questionamentos, pois deixa em aberto a pergunta sobre como a
Igreja católica continuará o caminho ecumênico. Se durante seu papado o
ecumenismo não era uma opção para os bispos, mas um compromisso que deviam
assumir – e que nem sempre se cumpria –, será preciso ver o que acontecerá com
as linhas pastorais de Leão XIV.
Nas
ciências sociais, só nos resta observar como se desenvolverá essa mudança de
cenário nos próximos anos e quais serão as estratégias das diferentes igrejas
cristãs na construção do rosto religioso latino-americano, enquanto, ao mesmo
tempo em que se produzem mudanças nas múltiplas facetas do cristianismo,
avança a indiferença religiosa. Pelas características do continente, o que
acontecer com a Igreja católica será fundamental, pois marcará o pulso dos
diálogos possíveis “de cima para baixo”, enquanto as possíveis alianças entre
igrejas pentecostais e neopentecostais, e destas com
o catolicismo conservador, poderão mudar o jogo “de baixo para cima”.
Fonte:
Por María Pilar García Bossio, em Nueva Sociedad

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