Bets
fazem auxílios-doença por vício em jogos dispararem no Brasil
A
epidemia das bets já faz filhos botarem limite de tela nos pais no Brasil.
Thiago, de 9 anos, levou a sério essa responsabilidade. Fingia que ia para o
quarto brincar e, sorrateiramente, aparecia de volta na sala, para checar se
Roberto, 39 anos, não havia pegado o celular escondido.
O pai
de Thiago perdeu tudo em apostas como o “tigrinho”, inclusive a carreira como
gerente de contas em um banco público em São Paulo. Se em casa a força-tarefa
para deixá-lo longe das bets deu certo, no emprego ele sempre estava a cliques
de conseguir dinheiro para financiar o vício. Roberto tem compulsão por jogos
de azar, uma doença que o fez ser afastado pelo INSS, já que não conseguia mais
trabalhar.
Dados
inéditos obtidos pelo Intercept Brasil indicam que, entre junho de 2023 e abril
de 2025, quando as bets começaram a ganhar mais tração no país, o número de
auxílio-doença concedidos mensalmente por ludopatia aumentou mais de 2.300% —
foram 276 benefícios concedidos no total no período.
Os
dados revelam um aumento consistente na concessão de auxílios e indicam uma
tendência de que esta seja só a ponta do iceberg. Isso porque, além de a
possibilidade de obtenção do auxílio ser desconhecida – mesmo em grupos de
apoio –, o diagnóstico da doença costuma ser tardio e o reconhecimento de
doenças mentais pelo INSS é historicamente deficiente.
Roberto
faz parte do perfil mais comum de apostador que passa a receber auxílio.
Segundo dados abertos do INSS, dois em cada três beneficiários são homens – 73%
do total concedido. Cerca de oito em cada 10 têm idade entre 18 e 39 anos, o
que reforça o efeito direto do vício em jogos sobre trabalhadores em idade
produtiva.
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Faixa etária dos beneficiários de auxílio por ludopatia
Percentual
de beneficiários de auxílio do INSS por faixa etária desde 2023
30–39
(44%)
60+
(0,7%)
50–59
(6%)
40–49
(17%)
18–29
(33%)
Nota:
dados entre junho/2023 e abril/2025. Idade no momento do deferimento do
benefício.
Embora
a maior parte dos registros do INSS não informe sobre vínculos familiares, em
7% dos casos o auxílio foi concedido a quem declarou ter ao menos um dependente
— ou seja, pais ou mães de família –, o que amplia o impacto social do
transtorno. Os dados ainda mostram que a maior parte dos que receberam auxílio
estavam empregados.
O custo
previdenciário da chegada das bets ao país é, até o momento, um fator
desconsiderado no debate público sobre a regulamentação do setor. Na última
quarta-feira, 11, uma medida provisória assinada pelo presidente Lula aumentou
a tributação federal da receita líquida das bets de 12% para 18%.
O
aumento na taxação é destinado à “seguridade social, para ações na área da
saúde”, mas, por enquanto, não há regulamentação de como se dará o uso deste
dinheiro. No esporte, por exemplo, isso não ocorreu até hoje, um ano e meio
depois da aprovação da lei das bets.
A
medida tem validade de 90 dias e, para virar lei, precisa ser aprovada pelo
Congresso, onde há forte resistência. A federação PP e União Brasil, maior da
Câmara, já fechou questão contra ela, o que praticamente impede sua aprovação.
A nova tributação de 18% só começaria a valer em outubro.
Enquanto
isso, um ano e meio depois de ser sancionada a lei que destina 1% da
arrecadação líquida das bets ao Ministério da Saúde, “para medidas de
prevenção, controle e mitigação de danos sociais advindos da prática de jogos,
nas áreas de saúde”, a pasta ainda não tem nem anunciou qualquer medida.
Estimativas indicam que a verba para isso pode chegar na casa de R$ 60 milhões.
Um
grupo de trabalho interministerial intitulado “Saúde Mental e de Prevenção e
Redução de Danos do Jogo Problemático” foi criado em dezembro, mas só teve a
primeira reunião em março. Ele reúne os ministérios da Saúde, Fazenda e
Esporte, além da Secretaria da Comunicação, mas não inclui as pastas de
Trabalho e Previdência.
Questionamos
o motivo de tanta demora, mas o Ministério da Saúde disse apenas que a
arrecadação prevista na regulamentação das bets, aprovada em 2024, só começou a
ser repassada à pasta em fevereiro de 2025 e que “a definição das ações está em
andamento” no grupo de trabalho.
É
praticamente o contrário do que houve durante a regulamentação das bets, quando
o Ministério da Saúde, inicialmente, foi pouco ouvido. Entre março e setembro
de 2024, representantes da Saúde só estiveram em dois dos 209 encontros entre
autoridades do executivo federal e agentes privados para tratar da regulação,
segundo dados obtidos pela ONG Fiquem Sabendo, especializada em transparência
pública.
Ao
responder mês passado a um requerimento do deputado federal Capitão Alberto
Neto, do PL do Amazonas, sobre as ações de comunicação já feitas para combater
a ludopatia, o Ministério da Saúde disse apenas que atendeu solicitações da
imprensa e publicou, no Instagram, “as primeiras orientações para a população
geral sobre os problemas relacionados com o jogo”.
O
Intercept procurou o INSS para comentar sobre o aumento na concessão de
auxílios-doença e se alguma medida ou orientação vem sendo adotada em relação
aos diagnósticos. Por meio da assessoria de imprensa, o instituto respondeu que
o foco está no escândalo dos descontos ilegais em aposentadorias e, por isso,
não se manifestará.
Já o
Ministério da Previdência Social não respondeu aos nossos pedidos de
comentários sobre de que forma está treinando seu corpo técnico para lidar com
os casos de jogo compulsivo.
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De problema de saúde pública ao custo previdenciário
Dados
obtidos pelo Intercept Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação mostram
que, antes da explosão das bets, o número de auxílios-doença concedidos pelo
INSS com base apenas no diagnóstico de jogo patológico eram raros e pontuais.
Entre
2015 e 2022, a média anual não passou de 11 benefícios – em 2015, por exemplo,
foram apenas dois casos no Brasil inteiro, e no ano seguinte, cinco. A alta
começou a ser observada em 2023 e, a partir do segundo semestre de 2024, os
registros passaram a atingir com frequência a casa das duas dezenas por mês.
“Tenho
certeza que é um número muito baixo perto do que deveria ser”, analisa o
psicólogo Rafael Ávila, da Associação de Proteção e Apoio ao Jogador,
precursora, no Brasil, no atendimento a ludopatas.
Ávila,
que administra um grupo de Telegram que reúne mais de 1.700 pessoas com
propensão à ludopatia ou diagnóstico da doença, diz que a maioria dos
trabalhadores nunca foi atrás do auxílio-doença por jogo patológico – e muitos
que foram tiveram o pedido recusado.
“Existe
uma resistência a dar auxílio a quem tem doença mental. Além disso, as pessoas
têm vergonha de falar que são viciadas em jogos. Quando elas procuram um
tratamento, muitas vezes é para o sintoma do jogo patológico, como a ansiedade
ou a depressão. E aí esse sintoma pode levar ao pedido de afastamento. A pessoa
é afastada por estar com depressão, não pelo jogo patológico”, explica.
Ávila
pontua que o vício atinge principalmente profissionais autônomos. “O
assalariado recebe uma vez por mês e tem uma previsibilidade financeira. Mas
quem recebe, por exemplo, R$ 50 na conta várias vezes por dia, não paga suas
dívidas com esse valor picado. Então, essa pessoa muitas vezes não vê prejuízo
em usar esses R$ 50 para apostar e tentar fazer R$ 1 mil. E é aí que o dinheiro
vai embora”, explica.
Gleice
Salteiro, psicóloga especialista em atendimento a apostadores, calcula que já
atendeu mais de 300 casos e conta que em nenhum deles foi cogitado o pedido de
auxílio-doença, mesmo que, entre os pacientes, estejam diversas pessoas que se
tornaram incapazes de trabalhar.
“Uma
jovem da minha cidade, brilhante, professora de educação infantil, foi trazida
pela família, mas recusou tratamento. Hoje está na rua, batendo de porta em
porta, pedindo dinheiro. Tem paciente que na hora do almoço começa a apostar e
não para mais, e inventa uma ite, como artrite ou gastrite, para não voltar à
tarde. Outro fez acordo para sair do trabalho para receber a rescisão e pagar
agiota para não morrer”, afirma.
Para a
advogada Larissa Matos, pós-doutora em direito do trabalho e uma das autoras do
livro Impactos de Apostas Online no Direito do Trabalho, a discussão sobre
ludopatia vem sendo ignorada. “As pessoas da área trabalhista, como advogados,
Ministério Público do Trabalho e Justiça do Trabalho, não estão preparadas para
lidar com isso. É estarrecedor. A gente está há dois anos gritando sobre isso
para ver se alguém nos ouve”, destaca ela.
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“Você nunca vai estar contente com o que tem”
Dados
do Ministério da Saúde também indicam um crescimento do vício em jogos devido
às bets. Os atendimentos ambulatoriais via SUS em todo o país, considerando os
registros relacionados a doenças classificadas como “jogo patológico” e “mania
de jogos de azar”, subiram de 65, em 2019, para 1.292 em 2024.
Vale
pontuar que esse aumento foi impulsionado por três estados que concentram
volumes expressivos de atendimentos em anos específicos: Rondônia (415
atendimentos em 2022), Roraima (465 em 2023) e Sergipe (692 em 2023). Ainda
assim, se desconsiderarmos os anos atípicos, é possível observar um salto do
patamar das dezenas para o das centenas no país já em 2023.
“É como
cigarro. Todo mundo sabia que era uma coisa que não era boa, mas tinha
propaganda a rodo na TV, Marlboro, cowboy. Quando proibiu propaganda, diminuiu
o consumo. Hoje bet é legalizada? É, mas fazem uma propaganda muito
escancarada, é uma enxurrada, um negócio sem fim”, afirma Roberto, que começou
apostando no mercado de ações.
Durante
a pandemia, ele se arriscou no chamado day trade, em busca de dinheiro rápido e
fácil. Seduzido pelas propagandas das bets, resolveu também tentar a sorte no
mercado de apostas esportivas. Colocava R$ 10, às vezes ganhava, noutras
perdia, mas nada que impactasse a vida financeira de um gerente de banco.
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‘Acabou com todas as reservas da família’
“Até
que um dia eu estava conversando com um rapaz e ele falou do Tigrinho. Ele até
comentou de gente que jogou o dinheiro do aluguel e eu lembro de pensar: esse
negócio não deve ser bom. Um dia tinha lá R$ 80 na conta da bet e resolvi
apostar no Tigrinho. Ganhei uns R$ 200. Fui apostando e ganhei R$ 25 mil”,
conta.
Roberto,
em tese, poderia ter sacado o dinheiro – são muitos os relatos de jogadores que
não conseguem sacar o que ganham por entraves
causados pelas próprias bets – , mas o primeiro sintoma do vício
apareceu: ele seguiu jogando. “Você nunca vai estar contente com o que tem”,
afirma. Se foi possível transformar R$ 80 em R$ 25 mil uma vez, por que não
tentar de novo? E de novo? Foi o que ele fez. Chegou a ter R$ 120 mil, que logo
virou nada. Nunca sacou um real.
No fim
do ano de 2023, Roberto não se importou que a esposa e os filhos fossem viajar
sem ele. Entrou num mundo em que só existia ele, o celular e as bets. Ficou sem
atender ligações até que os irmãos intervieram: foram resgatá-lo e o levaram
pela primeira vez a um psiquiatra.
Só ali
a família começou a descobrir no que ele estava metido. “Qualquer celular que
ele tinha contato, ele baixava o jogo. Celular da mãe, tablet do filho, foi
excluído da família. Ele não dormia, ficava atrás de e-mails para abrir uma
conta online para poder jogar. Acabou com todas as reservas da família. Só
pensava em como ele faria novas apostas”, conta a advogada Camila Tiemi.
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Recaída após volta ao trabalho levou à demissão
Com um
laudo médico, Roberto conseguiu o primeiro afastamento pelo INSS. Durante o
processo, um perito avalia se a doença afeta o trabalho e se o afastamento é
necessário para o tratamento.
“Essa é
uma premissa do INSS: a doença impossibilita a pessoa de continuar trabalhando,
desenvolvendo seu trabalho da forma correta, e ela precisa se tratar. Para
isso, precisa demonstrar que está em acompanhamento, que está doente, mas está
se tratando para ser útil no trabalho e prover seu próprio sustento”, explica
Kelly Campos, advogada previdenciária que também atuou no processo.
O
primeiro auxílio-doença foi concedido a Roberto por três meses, no início de
2024, e depois acabou renovado. Ao fim de seis meses, ele voltou ao trabalho
sem estar ainda em remissão dos sintomas – o jogo patológico não tem cura, mas
as licenças têm data para começar e terminar, com sua renovação sendo avaliada
por peritos do INSS.
De
volta ao cargo de gerente de um banco, Roberto seguia, ainda, buscando
alternativas para jogar. Entrava nos aplicativos torcendo para receber um
bônus, estratégia amplamente utilizada pelas bets para não permitir que os
viciados se desconectem — como se dissessem: “faz tempo que você não perde
dinheiro aqui, vem perder mais um pouco, estamos com saudades”. Acabou demitido
do banco, por justa causa.
No mês
passado, a defesa de Roberto conseguiu na Justiça do Trabalho de São Paulo que
o auxílio-doença fosse garantido a ele, que segue inapto ao trabalho. “Ele
passou por um perito judicial, que verificou a necessidade de afastamento”,
relata a advogada Kelly, ressaltando que Roberto pretende ingressar com pedido
de reversão da demissão por justa causa.
“As
pessoas têm muita vergonha, costumam omitir por causa do julgamento da
sociedade. Diferente do consumo do álcool, que afeta como você se apresenta, o
vício no jogo não é evidente. Te atrapalha, mas a pessoa continua trabalhando,
se arrastando, porque as pessoas desconhecem que você está assim”, analisa
Camila.
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Demissão por justa causa ainda gera embate jurídico
O caso
de Roberto não é isolado. Fabrício também trabalhava em um banco público. O
vício em jogos o levou a desviar R$ 1,5 milhão para contas em nome dele e da
mãe, sem o conhecimento dela, enquanto atuava como gerente de contas na Bahia.
“No
início, eram valores pequenos. Quando ele ganhava, devolvia o dinheiro para os
clientes. Mas ele começou a perder e pegar quantias mais vultosas, foi
aumentando o valor desviado”, conta a advogada Márcia Martins, criminalista que
atuou na banca de defesa dele, que envolve também especialistas em direito
trabalhista e previdenciário.
Ao
notar que estava sendo investigado, Fabrício tentou o suicídio. A mãe conseguiu
impedir e interná-lo. O INSS reconheceu a necessidade de conceder um
auxílio-doença, que é pago desde setembro de 2023. No ano passado, foi demitido
por justa causa — decisão que sua defesa tenta anular. Fabrício está
interditado, mas o tratamento não tem impedido que ele siga tentando apostar e
até tirar a própria vida.
“O jogo
patológico é semelhante ao alcoolismo. O STF já reconheceu que o indivíduo
acometido pelo alcoolismo deve ser enviado para tratamento, e não despedido, e
o que a gente quer é que o mesmo aconteça com o jogador patológico”, explica
Márcia, reforçando que a defesa pretende provar que Fabrício não tinha
capacidade cognitiva e, por isso, deve ser considerado inimputável
criminalmente.
A
advogada cita dois exemplos. Um deles é de decisão recente do Tribunal Regional
do Trabalho da 5ª Região, TRT5, que reverteu a demissão por justa causa de um
ludopata, funcionário da Caixa Econômica Federal, acusado de desviar cerca de
R$ 400 mil do banco.
O outro
reforça a linha tênue entre o crime e o jogo compulsivo: um funcionário da
Caixa é investigado pela Polícia Federal por desviar R$ 11 milhões – parte do
dinheiro teria sido destinada a empresas de apostas. O caso tem sido tratado
como associação criminosa, furto qualificado mediante fraude, lavagem de
dinheiro e peculato-furto. A possibilidade de jogo patológico não foi
considerada, de acordo com a advogada.
“A
ludopatia tem sido tratada como questão de caráter. No caso do Fabrício, só
faltou o juiz dizer que ele não tem caráter. Um rapaz de 30 e poucos anos, já
passou por oito internações, em risco grave de suicídio, mas o que se discute é
o caráter”, ressalta a advogada Martins.
A
pesquisadora Larissa Matos pontua que o vício em jogo afeta diretamente a
percepção da realidade. “As redes se movimentam a partir da captura de dados
dos jogadores e direcionam as plataformas. É um ciclo que ele vai se enfiando,
adoecendo, até que ele perde sua liberdade de ação e pensamento, sua autonomia
vai para o espaço”, afirma.
Segundo
ela, empresas têm rompido contratos de trabalho com viciados em jogos
considerando o artigo 482 da CLT, que prevê demissão por justa causa por
“prática constante de jogos de azar”. Há consenso entre os pesquisadores
ouvidos pelo Intercept, porém, que o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana e da proibição de práticas discriminatórias impede a demissão de
alguém por estar doente.
Fonte:
Por Demétrio Vecchioli e Francisco Amorim, em The Intercept

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