segunda-feira, 30 de junho de 2025

Crise de hegemonia do governo vai além do Congresso

O veterano deputado Rui Falcão (PT-SP) defende a tese de que o governo Lula está em disputa, porém, os aliados do Centrão não fazem questão de cargos e verbas — eles querem o poder. O sinal veio logo depois das eleições municipais, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ensaiou atrair para o governo os ex-presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que declinaram.

As eleições municipais revelaram que o governo perdera a hegemonia política. Hegemonia, a palavra-chave por trás da afirmação "governo em disputa",  fora entendida de cabeça para baixo. O conceito é associado ao controle do poder e exercício da força. Entretanto, não se tratava de cargos e verbas da Esplanada, mas da conquista de corações e mentes dos eleitores. Hegemonia depende do consentimento, é fruto da satisfação popular, de consensos sociais e requer liderança moral.

O campo de alianças do PT na Câmara está restrito a uns 130 deputados. A "cultura do rechaço" com que hegemonizou a esquerda deveria ter sido deixada de lado na chegada ao poder. A atuação petista na Câmara, em oposição ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, talvez seja o melhor exemplo.

No poder, Lula consolidou sua liderança popular com base na "economia do afeto",  a essência do "lulismo", ao promover expressiva transferência de renda para a população de baixa renda. Para isso, escalou os programas de "focalização" do gasto público nos mais pobres, com destaque para o Bolsa Família, que hoje beneficia 53,8 milhões de pessoas. Entretanto, as políticas públicas são insuficientes na saúde, na educação e na segurança. E o identitarismo, muitas vezes, pauta prioridades.

Historicamente, o "capitalismo do compadrio" e o velho patrimonialismo caminham de mãos dadas, com transferência de renda do Estado para setores empresariais e corporações privilegiadas: 1% da população concentra renda superior à soma dos 50% mais pobres. Após 2002, para redistribuir renda, Lula havia se beneficiado da expansão da economia mundial; do impacto do Plano Real no consumo da população e do chamado "bônus demográfico"; o aumento da renda média das famílias, em decorrência da redução do número de filhos e das aposentadorias, pensões e benefícios de prestação continuada (BPCs).

Em resposta à crise mundial de 2008, porém, houve uma mudança de orientação econômica, calcada na forte expansão do gasto público e do crédito popular. A chamada "nova matriz econômica" viria a se consolidar no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. No segundo, porém, entrou em colapso, o que provocou inflação e impopularidade. Essa foi a causa de seu impeachment, ao lado da perda da bandeira da ética para a oposição.

<><> Governabilidade

Não se fala de corda em casa de enforcado, mas vamos lá. O PT optou pela narrativa do golpe para lidar com esse fracasso, em vez de refletir sobre suas verdadeiras causas e encarar de frente a crise de imagem, decorrente do escândalo de Petrobras. Dilma tentou resgatá-la com a famosa "faxina", mas teve que enfiar a viola no saco. E a Operação Lava-Jato desconstruiu a identidade parlamentar tecida no combate à corrupção, sobretudo no impeachment de Fernando Collor de Mello, e que já havia sido abalada no Escândalo do Mensalão.

Sem subestimar a decisiva força eleitoral de Lula, bem como o enraizamento e a resiliência do PT, a vitória eleitoral de 2022 foi possível por causa da alta rejeição do ex-presidente Jair Bolsonaro, em grande parte decorrente do negacionismo na pandemia. Os votos das mulheres e dos nordestinos, e, no segundo turno, a reação dos setores centristas que viam a democracia ameaçada, trouxeram Lula de volta ao poder. Entretanto, isso não lhe deu a liderança moral da sociedade. Por quê?

Essa é a pergunta que desafia o governo Lula. A bandeira da ética permanece nas mãos da oposição. Esse resgate depende da realização de um governo sem escândalos. Por essa razão, as fraudes nos descontos de aposentados do INSS abalaram a popularidade do presidente, apesar de os indicadores de emprego e renda da economia serem positivos.

O Centrão farejou o animal ferido na floresta. A oposição bolsonarista foi para cima. O mercado não aceita financiar a "economia do afeto". Lula ainda disputa a liderança moral com seu humanismo, porém, sua empatia com os mais pobres depende de resultados, da picanha e da cervejinha. O desequilibro fiscal embaralha tudo. A opção preferencial pelos mais pobres depende da econometria e não da narrativa classista. Ideologia não enche a barriga. Patrimonialista, o Congresso pode colapsar a governabilidade. Lula está numa sinuca de bico e depende de um freio de arrumação do Supremo Tribunal Federal (STF) para evitar uma grave crise institucional. Resultado: sua reeleição subiu no telhado.

¨      Articulação emperra sem a liberação de emendas

As duras derrotas do governo no Congresso, na semana passada, demonstraram que os presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), impuseram um limite à articulação política do Palácio do Planalto. Sem o pagamento das emendas bilionárias, não haverá cargo na Esplanada — no primeiro ou segundo escalão de ministério nem estatais e autarquias — que garantirá o apoio dos líderes partidários em ambas as casas do Legislativo. A situação é crítica, segundo parlamentares ouvidos pelo Correio ao longo da semana, especialmente porque o apoio a um governo em franca queda de popularidade custa caro, ainda mais em véspera de ano eleitoral.

Até o último dia 23, dois dias antes da derrubada do decreto que aumentou o Imposto sobre Operações Financeiras, o governo havia pago apenas R$ 7,52 bilhões em emendas, sendo que mais de 99% desse valor é referente a anos anteriores. O valor em emendas deste ano é considerado ínfimo pelos deputados e senadores: R$ 408 milhões — menos de 1% do total.

Na sexta-feira, Motta e Alcolumbre não compareceram à audiência convocada pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), para tratar das emendas — e não se justificaram. A representá-los, os advogados Jules Michelet Queiroz (pela Câmara) e Gabrielle Tatith Pereira (pelo Senado). A ausência dos presidentes da Câmara e do Senado foram entendidas, nos bastidores do STF, como um protesto pela retenção dos recursos.

Os alertas da ministra Gleisi Hoffmann, da Secretaria de Relações Institucionais, sobre a derrubada do decreto do IOF impactar diretamente na liberação de emendas, soaram como ameaça. Agora, com ou sem espaço orçamentário, o governo só conseguirá melhorar a relação com o Congresso se abrir o cofre. Para o deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), o Executivo precisa repensar a negociação de políticas públicas com o Parlamento e ouvir mais.

"As relações mudaram. A forma de o Executivo conversar com o Legislativo é diferente. É preciso ter um diálogo na formatação de projetos de políticas públicas. É preciso um diálogo permanente. O mundo todo mudou com relação a isso, com o advento das redes sociais. A presença constante das cobranças e do diálogo é uma realidade. E isso também se reflete na vida política. Então, não é mais aquela imposição do tipo 'quero desse jeito e vai ser desse jeito'", advertiu, em conversa com o Correio.

O aumento de impostos para bancar a subida dos gastos obrigatórios, frisou Danilo Forte, não será mais aceito pelo Parlamento, que há anos tenta emplacar o discurso de que não quer onerar mais o contribuinte — apesar de, na mesma noite em que derrubou o decreto do IOF baixado pelo governo, aumento o número de deputados de 513 para 531. Agora, os partidos com cargos na Esplanada também aderiram ao coro.

"Os partidos que mais votaram contra são os que tinham, inclusive, ministros nas bancadas. E o que falta é um diálogo na construção da política pública. Acho que o Lula, pelo momento que está vivendo, está sem aptidão para esse diálogo. Ele é bom nisso, mas está preferindo fazer de uma forma diferente e isso está criando dificuldades", analisou.

Para o deputado Coronel Chrisóstomo (PL-RO), que relatou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) do IOF, a postura do Executivo dificulta qualquer diálogo. "O governo do presidente atual está se mostrando para que veio: um governo que desrespeita a questão do Congresso, se alia a outros poderes, toma decisões totalmente contrárias ao que o povo brasileiro quer. O povo brasileiro quer um governo que gaste menos, que gaste tudo pautado dentro do planejado, dentro do orçamento. E esse governo não faz isso", disse o bolsonarista ao Correio.

O líder da oposição na Câmara, deputado Zucco (PL-RS), diz que o Congresso deve ajudar a apontar soluções para o equilíbrio fiscal, mas as saídas apresentadas pela gestão Lula, em sua análise, não resolvem o problema do crescimento dos gastos. "O problema é que o governo Lula não aponta nenhum caminho real de corte de despesas. É uma máquina inchada, com quase 40 ministérios, gastos abusivos com viagens, passagens e estrutura. Não há disposição para cortar na própria carne", criticou o bolsonarista. "Em vez disso, (o governo) segue insistindo no aumento de impostos e, agora, ameaça judicializar uma decisão legítima e soberana do Congresso, como no caso do IOF. A única saída do governo tem sido jogar a conta no colo da população. O Congresso está dando um recado claro: basta de aumento de carga tributária. O Brasil precisa de responsabilidade com o dinheiro público, não de mais confisco disfarçado de gestão", acrescentou.

<><> Apetite

Se, de um lado, os parlamentares dizem que o Executivo perdeu a capacidade de articular, de outro, os governistas culpam o apetite dos deputados do Centrão pela dificuldade de construir acordos. Para o deputado federal Rui Falcão (PT-SP), candidato à presidência do partido, o atual momento do governo com o Congresso é fruto da pressão de legendas que querem romper com o Palácio do Planalto.

"Atualmente, estamos cercados por fora e minados por dentro. Pode ser alguém que quer dar recado, (fazer) represália. Mas, por outro lado, já há uma articulação em andamento com duplo sentido: ou para nos derrotar, fazendo com que a gente adote um programa que não é o nosso — é o da classe dominante —, ou é uma articulação em andamento também para criar uma candidatura, provavelmente do governador de São Paulo (Tarcísio de Freitas, do Republicanos), para aglutinar forças que estão no governo contra nós", explicou, em conversa com o Correio.

Rui Falcão acrescenta: "Em alguns casos, não estão fazendo segredo. Estão anunciando o desembarque, só analisando qual é o melhor momento. Então, é preciso romper essa dependência, ter um outro tipo de articulação que envolva a população. Acho que é o momento, também, de o nosso partido começar a dialogar mais com a população para pressionar, no sentido democrático, os parlamentares. Não tem explicação para essas votações", avalia.

Na votação da derrubada do decreto do IOF, na quarta-feira passada, parlamentares da base governista acusaram o Parlamento de ter realizado a votação às pressas e sem diálogo com a liderança. O líder do PT na Casa, deputado Lindbergh Farias (RJ), chegou a classificar como "estranha" a forma como Hugo Motta decidiu pautar o tema. No plenário, disse que a derrubada era inconstitucional.

Segundo ele, os líderes governistas só foram informados da inclusão do projeto na pauta por meio de uma publicação que Motta fez no X (antigo Twitter), por volta das 23h35 da terça-feira passada.  "Fomos pegos de surpresa por um tuíte. Um tema dessa gravidade precisava ter sido discutido no Colégio de Líderes. A maior parte dos deputados sequer está em Brasília", criticou.

Erika Kokay (PT-DF), por sua vez, não vê uma fraqueza do governo. Para ela, o que parte do Congresso faz são "imposições contra o povo brasileiro", protegendo os interesses da parcela mais rica da população e rejeitando qualquer tentativa de reforma tributária progressiva.

"Eles têm uma resistência imensa de colocar o rico no orçamento. Eles são contra taxar as grandes fortunas. Quando dizem 'nenhum imposto a mais', é nenhum imposto para quem tem muito dinheiro", ironizou.

Para a parlamentar, há compromisso do governo Lula com o equilíbrio fiscal, mas isso, em sua avaliação, deve estar atrelado à justiça social. O que a oposição propõe, segundo Kokay, é cortar em benefícios sociais e punir os mais pobres. "É preciso colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. Eles (a oposição) miram seus canhões cruéis contra a população mais pobre deste país. Enquanto isso, constroem um cordão de proteção às grandes fortunas", acusa.

<><> "Ajuste geral"

Na tentativa de amenizar a relação entre os poderes, o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), defendeu, em entrevista concedida logo depois da derrubada do decreto que aumentava o IOF, a elaboração de um "ajuste geral" na articulação política e a recomposição da base no Congresso. Segundo ele, o desgaste atinge tanto a Câmara quanto o Senado.

Guimarães afirmou que a ministra Gleisi deverá chamar todos os partidos para o diálogo. Apesar da crise, ele negou rompimento com o Congresso e destacou que, no mesmo dia da derrota, o governo teve vitórias importantes, como a aprovação de quatro medidas econômicas.

Questionado sobre o papel de Hugo Motta e Davi Alcolumbre, Guimarães criticou a falta de transparência na sessão que derrubou o decreto do governo de aumento do IOF. Conforme avaliou, a votação foi acelerada sem aviso antecipado ao governo e, pior, decidida por um grupo restrito de líderes. "Na relação institucional, tem que haver lealdade e compromisso com a verdade. Quando isso falha, complica", lamenta.

O líder também minimizou o impacto da derrota, reforçando que é hora de deixar "baixar a poeira" e discutir os próximos passos. Guimarães ressaltou que a articulação política deve ser reforçada, mas que a responsabilidade pela relação com o Congresso não recai apenas sobre Lula: "O presidente tem feito sua parte institucional. A articulação é minha, da Gleisi e do (senador) Jaques Wagner".

Guimarães acusou, ainda, a influência do mercado financeiro sobre deputados como um dos fatores da crise, criticando a atuação de setores que, segundo ele, se calam diante de isenções bilionárias enquanto atacam medidas progressivas. "O discurso deve ser a defesa dos pobres e a cobrança dos super-ricos, que precisam pagar a conta", cobrou.

¨      Chico Alencar acusa Hugo Motta de ter feito "manobra nociva"

O deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) criticou o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), pela condução da votação que resultou na derrubada do decreto presidencial que reequilibrava as alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Segundo o parlamentar, a forma como a pauta foi inserida na agenda da Casa representou uma “manobra nociva” e um desrespeito aos princípios da transparência legislativa.

“Protocolamos, para nós é claro e o nosso arrazoado de 16 páginas prova isso, que o PDL é inconstitucional, é uma prerrogativa do Executivo, artigo 153 da Constituição mostra. Reequilibrar o IOF, estabelecer lá alíquotas dentro de certos limites e assim foi feito. Portanto, foi uma provocação do Congresso para mostrar que tem uma maioria com claro intuito de fustigar o governo Lula”, afirmou Chico Alencar, referindo-se ao Projeto de Decreto Legislativo que anulou a decisão do Executivo.

O deputado também questionou o processo de tramitação da proposta e o que classificou como “falta de diálogo” por parte da presidência da Câmara. “Foi pautado às pressas de surpresa, anunciado rigorosamente na calada da noite, uma postura do Hugo Mota que vai contra tudo que ele sempre proclamou, de previsibilidade da pauta, transparência, não conversou no colégio de líderes sobre isso, tudo errado, tudo errado”, criticou.

Chico Alencar relatou ainda o clima de surpresa e perplexidade entre os parlamentares da oposição, afirmando estar decepcionado com a postura de Motta. “Para nós, para os parlamentares dos partidos de esquerda, do campo progressista, foi sim uma surpresa, ele pautar às 23h35, pelas suas redes pessoais, o PDL para derrubar o IOF, foi um espanto, algo que a gente não esperava, eu particularmente confesso que fiquei muito decepcionado, não me parecia que o Hugo Mota fosse capaz desse tipo de manobra nociva, ruim”, afirmou.

O deputado ressaltou que, além da falta de aviso formal, houve recusa por parte do presidente da Câmara em atender telefonemas de lideranças políticas ao longo do dia. “Ele ficar sem atender, durante toda a quarta-feira, telefonemas da Gleisi, do Haddad, é muito feio uma coisa de quem não assume o que fez porque sabe que fez errado, erradíssimo”, afirmou.

O PSOL protocolou nesta sexta-feira (27/6) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal, contestando a validade jurídica da decisão da Câmara. O partido sustenta que, de acordo com a Constituição, a prerrogativa de alterar as alíquotas do IOF é exclusiva do Poder Executivo, cabendo ao Legislativo apenas fiscalizar e legislar sobre temas de competência própria.

 

Fonte: Por Luiz Carlos Azedo no Correio Braziliense

 

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