Crise
de hegemonia do governo vai além do Congresso
O
veterano deputado Rui Falcão (PT-SP) defende a tese de que o governo Lula está
em disputa, porém, os aliados do Centrão não fazem questão de cargos e verbas —
eles querem o poder. O sinal veio logo depois das eleições municipais,
quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ensaiou atrair
para o governo os ex-presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado,
Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que declinaram.
As
eleições municipais revelaram que o governo perdera a hegemonia política.
Hegemonia, a palavra-chave por trás da afirmação "governo em
disputa", fora entendida de cabeça para baixo. O conceito é
associado ao controle do poder e exercício da força. Entretanto, não se tratava
de cargos e verbas da Esplanada, mas da conquista de corações e mentes dos
eleitores. Hegemonia depende do consentimento, é fruto da satisfação popular,
de consensos sociais e requer liderança moral.
O campo
de alianças do PT na Câmara está restrito a uns 130 deputados. A "cultura
do rechaço" com que hegemonizou a esquerda deveria ter sido deixada de
lado na chegada ao poder. A atuação petista na Câmara, em oposição ao ministro
da Fazenda, Fernando Haddad, talvez seja o melhor exemplo.
No
poder, Lula consolidou sua liderança popular com base na "economia do
afeto", a essência do "lulismo", ao promover expressiva
transferência de renda para a população de baixa renda. Para isso, escalou os
programas de "focalização" do gasto público nos mais pobres, com
destaque para o Bolsa Família, que hoje beneficia 53,8 milhões de pessoas.
Entretanto, as políticas públicas são insuficientes na saúde, na educação e na
segurança. E o identitarismo, muitas vezes, pauta prioridades.
Historicamente,
o "capitalismo do compadrio" e o velho patrimonialismo caminham de
mãos dadas, com transferência de renda do Estado para setores empresariais e
corporações privilegiadas: 1% da população concentra renda superior à soma dos
50% mais pobres. Após 2002, para redistribuir renda, Lula havia se beneficiado
da expansão da economia mundial; do impacto do Plano Real no consumo da
população e do chamado "bônus demográfico"; o aumento da renda média
das famílias, em decorrência da redução do número de filhos e das
aposentadorias, pensões e benefícios de prestação continuada (BPCs).
Em
resposta à crise mundial de 2008, porém, houve uma mudança de orientação
econômica, calcada na forte expansão do gasto público e do crédito popular. A
chamada "nova matriz econômica" viria a se consolidar no primeiro
mandato da presidente Dilma Rousseff. No segundo, porém, entrou em colapso, o
que provocou inflação e impopularidade. Essa foi a causa de seu impeachment, ao
lado da perda da bandeira da ética para a oposição.
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Governabilidade
Não se
fala de corda em casa de enforcado, mas vamos lá. O PT optou pela narrativa do
golpe para lidar com esse fracasso, em vez de refletir sobre suas verdadeiras
causas e encarar de frente a crise de imagem, decorrente do escândalo de
Petrobras. Dilma tentou resgatá-la com a famosa "faxina", mas teve
que enfiar a viola no saco. E a Operação Lava-Jato desconstruiu a identidade
parlamentar tecida no combate à corrupção, sobretudo no impeachment de Fernando
Collor de Mello, e que já havia sido abalada no Escândalo do Mensalão.
Sem
subestimar a decisiva força eleitoral de Lula, bem como o enraizamento e a
resiliência do PT, a vitória eleitoral de 2022 foi possível por causa da alta
rejeição do ex-presidente Jair Bolsonaro, em grande parte
decorrente do negacionismo na pandemia. Os votos das mulheres e dos
nordestinos, e, no segundo turno, a reação dos setores centristas que viam a
democracia ameaçada, trouxeram Lula de volta ao poder. Entretanto, isso não lhe
deu a liderança moral da sociedade. Por quê?
Essa é
a pergunta que desafia o governo Lula. A bandeira da ética permanece nas mãos
da oposição. Esse resgate depende da realização de um governo sem escândalos.
Por essa razão, as fraudes nos descontos de aposentados do INSS abalaram a
popularidade do presidente, apesar de os indicadores de emprego e renda da
economia serem positivos.
O
Centrão farejou o animal ferido na floresta. A oposição bolsonarista foi para
cima. O mercado não aceita financiar a "economia do afeto". Lula
ainda disputa a liderança moral com seu humanismo, porém, sua empatia com os
mais pobres depende de resultados, da picanha e da cervejinha. O desequilibro
fiscal embaralha tudo. A opção preferencial pelos mais pobres depende da
econometria e não da narrativa classista. Ideologia não enche a barriga.
Patrimonialista, o Congresso pode colapsar a governabilidade. Lula está numa
sinuca de bico e depende de um freio de arrumação do Supremo Tribunal Federal
(STF) para evitar uma grave crise institucional. Resultado: sua reeleição subiu
no telhado.
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Articulação emperra sem a liberação de emendas
As
duras derrotas do governo no Congresso, na semana passada, demonstraram que os
presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi
Alcolumbre (União Brasil-AP), impuseram um limite à articulação política do
Palácio do Planalto. Sem o pagamento das emendas bilionárias, não haverá cargo
na Esplanada — no primeiro ou segundo escalão de ministério nem estatais e autarquias
— que garantirá o apoio dos líderes partidários em ambas as casas do
Legislativo. A situação é crítica, segundo parlamentares ouvidos pelo Correio
ao longo da semana, especialmente porque o apoio a um governo em franca queda
de popularidade custa caro, ainda mais em véspera de ano eleitoral.
Até o
último dia 23, dois dias antes da derrubada do decreto que aumentou o Imposto
sobre Operações Financeiras, o governo havia pago apenas R$ 7,52 bilhões em
emendas, sendo que mais de 99% desse valor é referente a anos anteriores. O
valor em emendas deste ano é considerado ínfimo pelos deputados e senadores: R$
408 milhões — menos de 1% do total.
Na
sexta-feira, Motta e Alcolumbre não compareceram à audiência convocada pelo
ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), para tratar das
emendas — e não se justificaram. A representá-los, os advogados Jules Michelet
Queiroz (pela Câmara) e Gabrielle Tatith Pereira (pelo Senado). A ausência dos
presidentes da Câmara e do Senado foram entendidas, nos bastidores do STF, como
um protesto pela retenção dos recursos.
Os
alertas da ministra Gleisi Hoffmann, da
Secretaria de Relações Institucionais, sobre a derrubada do decreto do IOF
impactar diretamente na liberação de emendas, soaram como ameaça. Agora, com ou
sem espaço orçamentário, o governo só conseguirá melhorar a relação com o
Congresso se abrir o cofre. Para o deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), o
Executivo precisa repensar a negociação de políticas públicas com o Parlamento
e ouvir mais.
"As
relações mudaram. A forma de o Executivo conversar com o Legislativo é
diferente. É preciso ter um diálogo na formatação de projetos de políticas
públicas. É preciso um diálogo permanente. O mundo todo mudou com relação a
isso, com o advento das redes sociais. A presença constante das cobranças e do
diálogo é uma realidade. E isso também se reflete na vida política. Então, não
é mais aquela imposição do tipo 'quero desse jeito e vai ser desse
jeito'", advertiu, em conversa com o Correio.
O
aumento de impostos para bancar a subida dos gastos obrigatórios, frisou
Danilo Forte, não será mais aceito pelo Parlamento, que há anos tenta
emplacar o discurso de que não quer onerar mais o contribuinte — apesar
de, na mesma noite em que derrubou o decreto do IOF baixado pelo governo,
aumento o número de deputados de 513 para 531. Agora, os partidos com cargos na
Esplanada também aderiram ao coro.
"Os
partidos que mais votaram contra são os que tinham, inclusive, ministros nas
bancadas. E o que falta é um diálogo na construção da política pública. Acho
que o Lula, pelo momento que está vivendo, está sem aptidão para esse diálogo.
Ele é bom nisso, mas está preferindo fazer de uma forma diferente e isso está
criando dificuldades", analisou.
Para o
deputado Coronel Chrisóstomo (PL-RO), que relatou o Projeto de Decreto
Legislativo (PDL) do IOF, a postura do Executivo dificulta qualquer diálogo.
"O governo do presidente atual está se mostrando para que veio: um governo
que desrespeita a questão do Congresso, se alia a outros poderes, toma decisões
totalmente contrárias ao que o povo brasileiro quer. O povo brasileiro quer um
governo que gaste menos, que gaste tudo pautado dentro do planejado, dentro do
orçamento. E esse governo não faz isso", disse o bolsonarista ao Correio.
O líder
da oposição na Câmara, deputado Zucco (PL-RS), diz que o Congresso deve ajudar
a apontar soluções para o equilíbrio fiscal, mas as saídas apresentadas pela
gestão Lula, em sua análise, não resolvem o problema do crescimento dos gastos.
"O problema é que o governo Lula não aponta nenhum caminho real de corte
de despesas. É uma máquina inchada, com quase 40 ministérios, gastos abusivos
com viagens, passagens e estrutura. Não há disposição para cortar na própria
carne", criticou o bolsonarista. "Em vez disso, (o governo) segue
insistindo no aumento de impostos e, agora, ameaça judicializar uma decisão
legítima e soberana do Congresso, como no caso do IOF. A única saída do governo
tem sido jogar a conta no colo da população. O Congresso está dando um recado
claro: basta de aumento de carga tributária. O Brasil precisa de
responsabilidade com o dinheiro público, não de mais confisco disfarçado de
gestão", acrescentou.
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Apetite
Se, de
um lado, os parlamentares dizem que o Executivo perdeu a capacidade de
articular, de outro, os governistas culpam o apetite dos deputados do
Centrão pela dificuldade de construir acordos. Para o deputado federal Rui
Falcão (PT-SP), candidato à presidência do partido, o atual momento do governo
com o Congresso é fruto da pressão de legendas que querem romper com o Palácio
do Planalto.
"Atualmente,
estamos cercados por fora e minados por dentro. Pode ser alguém que quer dar
recado, (fazer) represália. Mas, por outro lado, já há uma articulação em
andamento com duplo sentido: ou para nos derrotar, fazendo com que a gente
adote um programa que não é o nosso — é o da classe dominante —, ou é uma
articulação em andamento também para criar uma candidatura, provavelmente do
governador de São Paulo (Tarcísio de Freitas, do Republicanos), para aglutinar
forças que estão no governo contra nós", explicou, em conversa com o
Correio.
Rui
Falcão acrescenta: "Em alguns casos, não estão fazendo segredo. Estão
anunciando o desembarque, só analisando qual é o melhor momento. Então, é
preciso romper essa dependência, ter um outro tipo de articulação que envolva a
população. Acho que é o momento, também, de o nosso partido começar a dialogar
mais com a população para pressionar, no sentido democrático, os parlamentares.
Não tem explicação para essas votações", avalia.
Na
votação da derrubada do decreto do IOF, na quarta-feira passada, parlamentares
da base governista acusaram o Parlamento de ter realizado a votação às pressas
e sem diálogo com a liderança. O líder do PT na Casa, deputado Lindbergh Farias
(RJ), chegou a classificar como "estranha" a forma como Hugo Motta
decidiu pautar o tema. No plenário, disse que a derrubada era inconstitucional.
Segundo
ele, os líderes governistas só foram informados da inclusão do projeto na pauta
por meio de uma publicação que Motta fez no X (antigo Twitter), por volta das
23h35 da terça-feira passada. "Fomos pegos de surpresa por um tuíte.
Um tema dessa gravidade precisava ter sido discutido no Colégio de Líderes. A
maior parte dos deputados sequer está em Brasília", criticou.
Erika
Kokay (PT-DF), por sua vez, não vê uma fraqueza do governo. Para ela, o que
parte do Congresso faz são "imposições contra o povo brasileiro",
protegendo os interesses da parcela mais rica da população e rejeitando
qualquer tentativa de reforma tributária progressiva.
"Eles
têm uma resistência imensa de colocar o rico no orçamento. Eles são contra
taxar as grandes fortunas. Quando dizem 'nenhum imposto a mais', é nenhum
imposto para quem tem muito dinheiro", ironizou.
Para a
parlamentar, há compromisso do governo Lula com o equilíbrio fiscal, mas isso,
em sua avaliação, deve estar atrelado à justiça social. O que a oposição
propõe, segundo Kokay, é cortar em benefícios sociais e punir os mais pobres.
"É preciso colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. Eles
(a oposição) miram seus canhões cruéis contra a população mais pobre deste
país. Enquanto isso, constroem um cordão de proteção às grandes fortunas",
acusa.
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"Ajuste geral"
Na
tentativa de amenizar a relação entre os poderes, o líder do governo na Câmara,
José Guimarães (PT-CE), defendeu, em entrevista concedida logo depois
da derrubada do decreto que aumentava o IOF, a elaboração de um "ajuste
geral" na articulação política e a recomposição da base no Congresso.
Segundo ele, o desgaste atinge tanto a Câmara quanto o Senado.
Guimarães
afirmou que a ministra Gleisi deverá chamar todos os partidos para o diálogo.
Apesar da crise, ele negou rompimento com o Congresso e destacou que, no mesmo
dia da derrota, o governo teve vitórias importantes, como a aprovação de quatro
medidas econômicas.
Questionado
sobre o papel de Hugo Motta e Davi Alcolumbre, Guimarães criticou a falta de
transparência na sessão que derrubou o decreto do governo de aumento do IOF.
Conforme avaliou, a votação foi acelerada sem aviso antecipado ao governo e,
pior, decidida por um grupo restrito de líderes. "Na relação
institucional, tem que haver lealdade e compromisso com a verdade. Quando isso
falha, complica", lamenta.
O líder
também minimizou o impacto da derrota, reforçando que é hora de deixar
"baixar a poeira" e discutir os próximos passos. Guimarães
ressaltou que a articulação política deve ser reforçada, mas que a
responsabilidade pela relação com o Congresso não recai apenas sobre Lula:
"O presidente tem feito sua parte institucional. A articulação é minha, da
Gleisi e do (senador) Jaques Wagner".
Guimarães acusou,
ainda, a influência do mercado financeiro sobre deputados como um dos fatores
da crise, criticando a atuação de setores que, segundo ele, se calam diante de
isenções bilionárias enquanto atacam medidas progressivas. "O discurso
deve ser a defesa dos pobres e a cobrança dos super-ricos, que precisam
pagar a conta", cobrou.
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Chico Alencar acusa Hugo Motta de ter feito "manobra
nociva"
O
deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) criticou o presidente da Câmara dos
Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), pela condução da votação que resultou
na derrubada do decreto presidencial que reequilibrava as alíquotas do Imposto
sobre Operações Financeiras (IOF). Segundo o parlamentar, a forma como a pauta
foi inserida na agenda da Casa representou uma “manobra nociva” e um
desrespeito aos princípios da transparência legislativa.
“Protocolamos,
para nós é claro e o nosso arrazoado de 16 páginas prova isso, que o PDL é
inconstitucional, é uma prerrogativa do Executivo, artigo 153 da Constituição
mostra. Reequilibrar o IOF, estabelecer lá alíquotas dentro de certos limites e
assim foi feito. Portanto, foi uma provocação do Congresso para mostrar que tem
uma maioria com claro intuito de fustigar o governo Lula”, afirmou Chico
Alencar, referindo-se ao Projeto de Decreto Legislativo que anulou a decisão do
Executivo.
O
deputado também questionou o processo de tramitação da proposta e o que
classificou como “falta de diálogo” por parte da presidência da Câmara. “Foi
pautado às pressas de surpresa, anunciado rigorosamente na calada da noite, uma
postura do Hugo Mota que vai contra tudo que ele sempre proclamou, de
previsibilidade da pauta, transparência, não conversou no colégio de líderes
sobre isso, tudo errado, tudo errado”, criticou.
Chico
Alencar relatou ainda o clima de surpresa e perplexidade entre os parlamentares
da oposição, afirmando estar decepcionado com a postura de Motta. “Para nós,
para os parlamentares dos partidos de esquerda, do campo progressista, foi sim
uma surpresa, ele pautar às 23h35, pelas suas redes pessoais, o PDL para
derrubar o IOF, foi um espanto, algo que a gente não esperava, eu
particularmente confesso que fiquei muito decepcionado, não me parecia que o
Hugo Mota fosse capaz desse tipo de manobra nociva, ruim”, afirmou.
O
deputado ressaltou que, além da falta de aviso formal, houve recusa por parte
do presidente da Câmara em atender telefonemas de lideranças políticas ao longo
do dia. “Ele ficar sem atender, durante toda a quarta-feira, telefonemas da
Gleisi, do Haddad, é muito feio uma coisa de quem não assume o que fez porque
sabe que fez errado, erradíssimo”, afirmou.
O PSOL
protocolou nesta sexta-feira (27/6) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) no Supremo Tribunal Federal, contestando a validade jurídica da decisão
da Câmara. O partido sustenta que, de acordo com a Constituição, a prerrogativa
de alterar as alíquotas do IOF é exclusiva do Poder Executivo, cabendo ao
Legislativo apenas fiscalizar e legislar sobre temas de competência própria.
Fonte:
Por Luiz Carlos Azedo no Correio Braziliense

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