Como
escritores, editoras e ABL apoiaram ditadura militar
Não foi
só o front dos militares que sustentou a ditadura brasileira de 1964. Uma outra
fronteira, a literária, também ajudou a manter o apoio ao regime. “Nós não
gostávamos de Jango, de forma que derrubá-lo foi uma boa ideia”, declarou a
escritora Rachel de Queiroz em entrevista à TV Câmara, em
maio de 2000. Ao lado de Rachel estavam autores e intelectuais de renome, como
Rubem Fonseca, Gilberto Freyre, Dinah Silveira de Queiroz, Guimarães Rosa,
Ariano Suassuna e Austregésilo de Athayde. Compartilhavam a mesma trincheira ideológica,
as editoras Record, José Olympio, Agir, O Cruzeiro, Globo, Bloch, Ao Livro
Técnico e GRD – de Gumercindo Rocha Dórea. Todas essas organizações e pessoas
colaboraram ou estiveram envolvidas no apoio à ditadura, ainda que através de
livros, revistas, publicações diversas e, por vezes, por meio de funções
burocráticas. “Os escritores e as editoras foram muito importantes na
desestabilização do governo Jango ao propagar pautas da direita, como a
associação de seu governo ao comunismo, o fim do comunismo e os ideais de
liberdade americanos”, diz a historiadora e editora Joana Monteleone.
A
reportagem procurou as editoras Record/José Olympio, Ao Livro Técnico (que
pertence ao grupo Zit), Agir (Ediouro) e Saraiva (Cogna). Somente a Record e
Saraiva responderam. A Record respondeu que os fatos denunciados pela
reportagem “eram até então desconhecidos pela gestão atual do Grupo Editorial
Record, que não compactua nem jamais compactuará com governos autoritários”. A
resposta completa está aqui. Já a Saraiva
informou que a denúncia da reportagem “não está relacionado à atuação atual da
Editora Saraiva e encontra-se sob responsabilidade da nova gestão.
·
O instituto literário que abriu caminho para o golpe
militar
No topo
dessa estrutura havia um instituto patrocinado por organizações dos EUA, o
Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, o IPÊS, criado três meses
após a renúncia do presidente Jânio Quadros. Fundado em novembro de 1961 por
empresários, banqueiros, intelectuais conservadores e oficiais da Escola
Superior de Guerra, o IPÊS atuou de forma sistemática para desarticular o
governo João Goulart, abrindo caminho para o golpe de 1964. Instalada a
ditadura, seus integrantes assumiram postos no poder, a exemplo de Golbery do
Couto e Silva e Ernesto Geisel. A publicação de impressos ocupou um lugar de
destaque entre as atividades desenvolvidas pelo organismo. Entre seus membros
estavam o fundador Gilbert Huber Jr., dono da Listas Telefônicas e de um dos
maiores grupos gráfico-editoriais do país; Israel Klabin, do setor de papel e
celulose; Cândido Guinle, da editora Agir; Décio de Abreu, da Distribuidora
Record; e o general Propício Machado, da editora Ao Livro Técnico.
O IPÊS
estabeleceu convênios com duas dezenas de companhias do setor editorial,
obtendo posição estratégica na supervisão do que se publicava no país. De
fevereiro de 1962 até junho de 1963, distribuiu para todo o Brasil um total de
2,24 milhões de livros e folhetos. Em 1963, o IPÊS subsidiou o primeiro romance
de Rubem Fonseca, Os Prisioneiros, através da editora de Gumercindo
Rocha Dórea, a GRD, especializada em literatura brasileira, ficção científica,
geopolítica e segurança nacional. Morto em 2021, Dórea era militante
integralista e chegou a ser homenageado enquanto vivia pelo deputado federal
Carlos Jordy (PL), ainda vereador, na Câmara Municipal de Niterói. Quem recebeu
a honraria na Câmara na época foi o dito historiador Breno Zarranz, próximo da
família Bolsonaro. Flávio Bolsonaro estava presente na ocasião. Além de Rubem
Fonseca, Dórea lançou por sua editora os primeiros livros de Nélida Pinõn e
textos de Dinah Silveira de Queiroz. Fonseca era ex-comissário de polícia,
executivo da Light e escritor iniciante, e um dos líderes do IPÊS.
·
Anticomunismo financiado pelos EUA
A GRD
foi tema do livro Guerra Fria e Política Editorial – A Trajetória da
Edições GRD e a Campanha Anticomunista dos Estados Unidos no Brasil, da
professora de História da UFBA, Laura de Oliveira. A pesquisa detalha o
convênio entre a editora e a Agência de Informação dos Estados Unidos (USIA),
responsável por financiar a publicação de obras de interesse cultural dos EUA. Operando
dentro da embaixada no Rio de Janeiro, a USIA fomentou, entre 1953 e 1973, a
edição de mais de 3 mil livros no Brasil, dos quais 48 foram pela GRD. Mais de
60 editoras teriam se beneficiado de subsídios da agência, especialmente a
Fundo de Cultura (da família de Olavo Bilac), a Lidador e a Record. A aliança
IPÊS/USIA lançou no Brasil o clássico Animal Farm, de George
Orwell, por meio da editora Globo, de Porto Alegre. O título pelo qual ficou
aqui conhecido, A Revolução dos Bichos, foi obra do tradutor, o
capitão Heitor Aquino Ferreira. Já o pacto com a Agência dos Estados Unidos
para Desenvolvimento Internacional (USAID), produziu, via Bloch Editores, 1
milhão de folhetos da Aliança para o
Progresso.
Em dezembro de 1964, outro programa estadunidense, o Franklin Book, se
estabeleceu no Centro de Bibliotecnia do IPÊS (gerido pelo filho do editor José
Olympio, Geraldo J. Pereira) e na Fundação Roberto Simonsen, da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). A Câmara Brasileira do Livro (CBL) e
a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (Colted) também adotaram o
programa. Fundada em 1966, a Colted foi fruto do acordo entre o Ministério da
Educação e Cultura (MEC) e a USAID, e produziu um “boom” no mercado editorial.
Os militares criaram programas de compra de livros didáticos em larga escala,
como forma de incentivar e, ao mesmo tempo, controlar o setor editorial.
Somente em 1970, o Movimento Brasileiro de Alfabetização, o Mobral, encomendou
cerca de 50 milhões de livros às editoras Abril e José Olympio.
A
Record e a Agir, ao lado da GRD, também são citadas pela historiadora e
pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Martina Spohr, como atuantes no
espectro da direita. “Um dos diretores da Record, Décio de Abreu, era líder do
IPÊS. Apesar de patrocinadas pelo instituto, essas editoras não traziam em seus
livros o rótulo do IPÊS”, revela Spohr, que escreveu uma dissertação sobre as três
companhias. “O que mais me chamou a atenção foi uma coleção de traduções de
livros com teor anticomunista para jovens e crianças. Foram publicados pela
Record, alguns no formato em quadrinhos. Na leva estavam A Guerra
Revolucionária Comunista, do militar brasileiro Francisco Ruas, e Você
e a Democracia, de Dorothy Gordon, mãe do embaixador estadunidense Lincoln
Gordon, agente do golpe. “Meu argumento é que essas publicações vêm no bojo de
se contrapor a editoras progressistas, como a Civilização Brasileira, que
publicavam textos sobre as reformas de base, reforma agrária e outras pautas do
período”, considera. Saraiva, Melhoramentos, Delta, Guanabara Koogan, Freitas
Bastos, Editora Brasil-América, Vecchi, Monterrey, Atheneu, Reader’s Digest,
Francisco Alves e Companhia Editora Nacional estavam entre as outras companhias
que se associaram ao IPÊS. Algumas estavam ligadas ao programa editorial da
entidade, de cujo Grupo de Publicações/Editorial faziam parte Rachel de
Queiroz, Augusto Frederico Schmidt e Odylo Costa Filho. O instituto
contou com colaborações esparsas de Gilberto Freyre, Érico Veríssimo,
Austregésilo de Athayde, Dinah Silveira de Queiroz e Alceu Amoroso Lima.
Cofundador da Agir, Lima se tornaria ativo opositor da ditadura. “Muitos
escritores e intelectuais apoiaram a ditadura num primeiro momento e outros,
como Rachel de Queiroz, continuaram a apoiar depois”, observa Joana Monteleone.
Carlos
Drummond de Andrade foi um dos que não escondeu sua simpatia inicial ao golpe
de 1964 ao registrar em seu diário (O Observador no Escritório) uma
“sensação geral de alívio” com a deposição de Jango. Com o tempo, o poeta se
tornaria crítico do regime. Professor de Sociologia da Unicamp, Marcelo Ridenti
menciona que muitos autores expressavam plena concordância com os ideais do
movimento de 1964, enquanto outros, como Érico Veríssimo, os aceitavam com
certa reserva. Conforme Ridenti relata em seu livro O Segredo das
Senhoras Americanas: Intelectuais, Internacionalização, Financiamento na Guerra
Fria Cultural, Veríssimo expunha em cartas sua opinião: “continuo
confiando no nosso Castelinho, que tive o prazer de conhecer em Poços de
Caldas, quando coronel. Mas às vezes acontecem coisas que me revoltam e eu
tenho de soltar um protesto, muito embora sabendo que já estaríamos todos
mortos e enterrados se o Brizola tivesse ganho a parada”. Já a escritora Nélida
Pinõn mantinha, segundo ele, posição ambígua.“Nélida foi redatora da revista
Cadernos Brasileiros, financiada pelo Congresso pela Liberdade da Cultura,
sediado em Paris, que, por sua vez, era financiado secretamente pela CIA. Parte
da intelectualidade de esquerda escreveu para a revista. A escritora tinha uma
aproximação com os Estados Unidos, onde morou, e também com Cuba, onde foi
premiada e recebida por Fidel Castro. Ambiguidades dos intelectuais na Guerra
Fria”, conclui.
·
Letrados a serviço da literatura e da ditadura
Considerado
o principal editor do país na época, José Olympio oferecia na sede de sua
editora concorridos almoços nos quais se reuniam escritores e políticos feito
Guimarães Rosa e o presidente-militar Castelo Branco. Ao lado de clássicos da
literatura, ele lançou os livros sobre geopolítica do general Golbery do Couto
e Silva, ideólogo da Escola Superior de Guerra e articulador do golpe de 1964. Os
seus textos são adotados até hoje em bibliotecas militares. Eminência parda da
ditadura, Golbery foi o mentor do Serviço Nacional de Informação, o SNI, órgão
de espionagem do governo ditatorial gestado ainda nos tempos do IPÊS. Em 1954,
ele redigiu o Manifesto dos Coronéis, protesto de oficiais contra o aumento de
100% do salário mínimo concedido por João Goulart, então ministro do Trabalho.
No ano seguinte, participou da conspiração que tentou impedir as posses de
Juscelino Kubitschek e Goulart na presidência e vice-presidência da República. O
assessor de imprensa de Golbery no IPÊS era José Rubem Fonseca – a quem teria
apresentado ao editor Gumercindo Rocha Dórea. Uma das lideranças do instituto e
chefe do Grupo Editorial, Rubem Fonseca redigia e supervisionava o conteúdo de
textos e roteiros de filmes, livros, panfletos, apostilas e projetos diversos.
Ao lado do general Heitor Herrera, ele foi o locatário do imóvel da
sede no Rio de Janeiro.
Rubem
Fonseca foi um dos principais elos entre empresários, militares e jornalistas.
“Ele coordenava uma assessoria de imprensa que pautava textos jornalísticos
para desestabilizar o governo Jango. Esse material era fartamente reproduzido
na mídia, como no Repórter Esso”, descreve a historiadora Joana Monteleone. Recluso
em seus anos como celebrado escritor, pouco falava sobre seu passado político.
Em rara nota à Folha de S.
Paulo, em 1994, o autor procurou minimizar sua atuação no IPÊS, alegando que
fizera parte da ala democrática e que se afastara do instituto em 1964. Em
2001, em fax enviado
ao Fantástico, da TV Globo, foi enfático: “Já ouvi que eu teria
colaborado com o governo militar, o que é uma deslavada e estúpida falsidade.
Se algum papel desempenhei durante a ditadura, foi o de vítima”. A queixa se
referia à censura a uma de suas obras em 1976, fato que o fez angariar a
simpatia da esquerda. Embora sua filha tenha recentemente declarado que o autor se
desligou do instituto após o golpe, Rubem Fonseca esteve associado a ele até
próximo de seu fechamento, em 1972, conforme registros da entidade. À
época, ele e Rachel de Queiroz integravam outra associação patronal correlata,
o Movimento Universitário de Desenvolvimento Econômico e Social (MUDES). Em 1979, ele se
tornou diretor do Departamento de Cultura da Secretaria Municipal de Educação
do Rio de Janeiro, nomeado pelo prefeito “biônico” Israel Klabin, ex-membro do
IPÊS. Sua secretária era Nélida Piñon. Primeira mulher a ingressar na ABL, em
1977, Rachel de Queiroz era uma autora popular quando ingressou nos quadros do
IPÊS. Autointitulada “fiadora do governo”, escrevia artigos de encomenda na
revista O Cruzeiro, atacando Jango e o
PTB ou enaltecendo Castelo Branco e Emílio Médici. Em carta enviada ao último,
em 1972, escreveu: “(…) cada vez me sinto mais obrigada e fiel a esta
Revolução, encarnada na figura do Presidente Emílio Médici. Cada vez tenho mais
orgulho neste Brasil novo que vamos construindo, de 1964 para cá. Aliás, quem
acompanha minha modesta atuação jornalística, facilmente pode verificar a
adesão e solidariedade constantes que mostro em relação aos feitos e obras e
políticas revolucionárias”. Queiroz promovia reuniões em casa com Golbery e o
escritor Adonias Filho: “era conversa de conspiração, no duro”, afirmou em
biografia. Em entrevista à historiadora Isabel Lustosa, declarou ter conspirado
por um golpe de direita desde o segundo governo de Getúlio Vargas. E também
revelou que tramou na tentativa de golpe para impedir as posses de Juscelino e
Jango em 1955. Já era, portanto, uma golpista experiente quando participou do governo
de seu amigo e parente Castelo Branco na década seguinte. Em 1966, ela foi
nomeada delegada brasileira na Assembleia Geral da ONU e passou a integrar o
Diretório Nacional da ARENA, partido governista. No ano seguinte, se tornou
integrante do Conselho Federal de Cultura (CFC) – órgão atrelado às políticas
do MEC que teve entre seus membros Manuel Bandeira, Adonias Filho, Guimarães
Rosa, Ariano Suassuna, Gilberto Freyre e Miguel Reale. Em 1971, coproduziu o
conteúdo de livros didáticos de Educação Moral e Cívica editados pela José
Olympio. Por seus préstimos, recebeu comendas do Exército e foi condecorada com
a medalha Marechal Mascarenhas de Moraes – também dada a Vernon Walters
(oficial estadunidense que participou do golpe), Alfredo Stroessner, Delfim
Netto, Alexandre Garcia (jornalista assessor de João Figueiredo) e a todos os
presidentes militares. Militante trotskista na juventude, a romancista exibia
com orgulho sua atuação no governo militar. Em entrevista concedida ao
programa Roda Viva, em 1993, ela explicitou sua colaboração com o golpe e a
profunda amizade que a ligava a Castelo Branco. Confrontada pelo escritor Caio
Fernando Abreu, limitou-se a dizer que não tinha arrependimento e ainda
sustentou a defesa do ditador, alegando que ele não tinha culpa pelo o que se
sucedera com o país após Costa e Silva assumir a presidência.
·
Freyre, Rosa, Queiroz, Suassuna e Veríssimo: as relações
com o governo militar
Menos
engajado do que sua colega cearense, mas amigo próximo de Castelo Branco, o
sociólogo Gilberto Freyre exaltou em artigo de jornal a “saudável presença das
Forças Armadas na vida pública brasileira”, em 1964. Apesar da sua
biografia, o autor de Casa-grande & Senzala liderou uma
campanha de perseguição a intelectuais adversários em Pernambuco – como o
professor João Alfredo, reitor da Universidade do Recife, onde o educador Paulo
Freire dirigia o Departamento de Extensões Culturais. Em artigo ao Diário
de Pernambuco publicado em 26 de maio, Freyre cobrou punição severa
contra os “ninhos comunistas”, que deveriam ser objeto de “uma operação
corajosa de limpeza”. Em junho, o reitor foi afastado.
Prima
“por afinidade” de Rachel de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz também utilizou
a imprensa para validar o governo militar – do qual fez parte como embaixatriz.
Casada com o diplomata Dário Moreira de Castro Alves, fixou residência em
Brasília, onde estabeleceu colaboração com o Correio Braziliense como
jornalista do grupo Diários Associados. Entre 1970 e 1982, não economizou
elogios aos chefes do Executivo. Em editorial laudatório de
21 de junho de 1973, louvou o “grande Presidente Médici” como um dos “governos
mais profícuos que a República nos deu” e saudou Ernesto Geisel como líder
ideal para o prosseguimento da revolução: “aprendemos a contar muito com os
homens da Revolução de 1964 que são de muito fazer e pouco dizer, e o povo
brasileiro bem se afeiçoa a esses líderes da ordem pacífica, num mundo tão
desordenado e controvertido”. Ainda em 1973, a escritora ganhou a Medalha do
Pacificador.
Diplomata
que ao lado da esposa Aracy de Carvalho se empenhara em salvar judeus da
Alemanha nazista, Guimarães Rosa era chefe da Divisão de Fronteiras do
Itamaraty quando ocorreu o golpe de 1964. Discreto em público, em
correspondência mantida com amigos festejou a derrota do
“dragão perigoso e feroz”, metáfora atribuída ao comunismo, e demonstrou
satisfação com a deposição do presidente: “Jango estava ‘dopado’ ou mais
emburrecido ou louco? Graças a Deus”. Em 1965, Guimarães Rosa recebeu o título
de Comendador de Mérito Militar e no ano seguinte foi protagonista de uma reunião do Conselho de
Segurança Nacional sobre divergências com o Paraguai em relação ao Salto de
Sete Quedas, onde, anos depois, seria construída a usina de Itaipu. No Conselho
Federal de Cultura, participou de resoluções para o acordo ortográfico, da criação
de concursos literários e da avaliação de projetos para ações culturais. A
colaboração com o regime foi breve: Rosa faleceu de infarto em 19 de novembro
de 1967, aos 59 anos.
Membro
do CFC entre 1967 e 1973, Ariano Suassuna alinhou-se inicialmente às ideias
nacionalistas e conservadoras promovidas pelo governo, apoio que refletia
sua defesa da cultura popular como elemento crucial para a afirmação da
identidade nacional. Em artigos da imprensa, justificou a adesão: “o motivo
principal de eu, em princípio, dar meu apoio aos Soldados é que, não tenho
partido, meu partido é o Brasil – e o único Partido que eu vejo com organização
e força suficientes para comandar nosso processo de emancipação é a Força
Armada Brasileira”. Entretanto, Suassuna foi crítico da censura, autoritarismo
e entreguismo. Sua peça A Farsa da Boa Preguiça foi
parcialmente censurada em 1975 por conter críticas sociais sutis à ordem
estabelecida. Amigo de Paulo Freire e Dom Hélder Câmara, tornou-se,
paulatinamente, defensor da abertura política. Em carta escrita em 1969 a um
amigo, Érico Veríssimo expressava o que muitos intelectuais pensavam no
período, simpáticos à gestão militar, mas críticos das restrições às liberdades
democráticas: “seria muito pior se tivéssemos uma ditadura de esquerda extremista.
Ou a volta do Jango e do Brizola. O que mais me assusta é o “terror cultural”
[…]. Mas se houvesse habilidade ou, melhor, justiça, bom senso, eles deixariam
em paz o setor cultural. É uma estupidez equiparar crítica construtiva com
subversão. Estou desolado”. A despeito da insatisfação de alguns intelectuais
conservadores, os que se perfilaram plenamente ao projeto de poder militar
foram recompensados com cargos, honrarias e benesses. Afeitos a medalhas e
cerimoniais, os militares não pouparam homenagens a simpatizantes do regime
discricionário – vivos ou mortos. Em 1973, oficiais promoveram dupla homenagem
ao laurear o sociólogo e escritor Luís da Câmara Cascudo, anticomunista e
integralista de carteirinha, com o Prêmio Henning Albert Boilesen – criado
após a morte do presidente da Ultragaz, líder ipesiano e patrocinador do MUDES
e do órgão de repressão e tortura OBAN/DOI-Codi.
·
Do outro lado, repressão e censura a escritores que se
opunham à ditadura
Enquanto
os intelectuais que apoiavam ou faziam vistas grossas à ditadura floresciam,
autores e editores não alinhados ao governo militar eram perseguidos ou mesmo
presos. Esse foi o caso de Ênio Silveira, militante do PCB e sócio da Editora
Civilização Brasileira – um alvo predileto das forças da repressão. A sua
editora sofreu um atentado a bomba e ele foi preso por sete vezes durante a
década de 1960. Em uma de suas detenções, Silveira foi acusado de, entre outras
faltas, ter oferecido uma feijoada ao governador Miguel Arraes. Outro alvo
preferencial foi o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, mesmo sendo
apontado como coautor do editorial “Basta”, do Correio da Manhã, que pedia a
saída de Jango. Ele declararia, anos depois, que sua participação no texto se
limitou a “uma linha e ao corte de um parágrafo”. Cony foi, de fato, um dos
primeiros críticos do golpe civil-militar, taxando-o de “revolução de
caranguejos” em editoriais do jornal. Em novembro de 1965, juntamente com
Antônio Callado e outros intelectuais, participou de um protesto contra Castelo
Branco. Encarcerados durante quase um mês, Callado, Cony e o cineasta Glauber Rocha
criaram, respectivamente, três obras-mestras dos anos de chumbo: os
romances Quarup e Pessach: A Travessia e o
filme Terra em Transe, que seriam lançadas em 1967. Após responder
a diversos processos e inquéritos, ser detido por “delito de opinião”, ter sua
casa invadida e sofrer ameaças de sequestro de sua filha, Cony deixou o país em
1967, se auto-exilando em Cuba por um ano. Na volta ao Brasil, foi preso mais
uma vez, somando até o final da década um total de seis prisões.
Ao lado
da perseguição a autores, o “terrorismo cultural” promoveu censura a obras de
nomes consagrados, como Primeiro de Abril, de Mário Lago, O
Casamento, de Nelson Rodrigues, Roque Santeiro, de Dias
Gomes, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e A Revolução
Brasileira, de Caio Prado Júnior – ele próprio, preso em 1970, acusado de
subversão. Em 1977, Lygia Fagundes Telles entregou no Ministério da Justiça
um abaixo-assinado de mais de mil
signatários contra a censura de obras. Nélida Pinõn, chamada de “esquerdista”
por Rachel de Queiroz por ter se tornado mais progressista ao longo dos anos,
foi uma das signatárias. Cerca de 470 livros foram vetados pela censura
federal, incluindo Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, em 1976.
Censurado por 13 anos, o livro de contos foi proibido por conter “excesso de
palavrões” e “matéria contrária aos bons costumes”. Curiosamente, várias obras
de Fonseca foram proibidas em Roraima durante o governo de Jair Bolsonaro,
notoriamente defensor da ditadura.
·
A Academia Brasileira de Letras e a caserna
Em sua
longa história, a Academia Brasileira de Letras sempre esteve ligada à elite
intelectual e política brasileira. E, por vezes, ligou-se ao autoritarismo,
quando o poder foi assim representado. A partir de 1964, a instituição teve
mais de um representante na cúpula do governo militar. Membro da ABL desde
1954, o jornalista e historiador Luís Viana Filho foi ministro da Casa Civil do
governo Castelo Branco e integrante do triunvirato próximo ao presidente, ao
lado de Golbery, chefe do SNI, e de Geisel, chefe da Casa Militar. Para o poeta
e jurista Pádua Fernandes, a centenária instituição costuma ter relações com o
poder. “A ABL elegeu o general Lyra Tavares, mas também elegeu membros
comunistas como João Cabral de Melo Neto. Então não dá para dizer que ela
aderiu à ditadura, mas que convivia com ela”, considera.
Presidente
da ABL por 34 anos, Austregésilo de Athayde soube tirar proveito dessa
convivência. Diplomado na Escola Superior de Guerra, onde tornou-se assíduo
conferencista, Athayde pleiteou com os generais a doação de um antigo edifício,
o Pavilhão Inglês, para a construção de um centro cultural para a academia.
Como moeda de troca com Médici, a entidade reservou em 1970 uma cadeira ao
general Aurélio de Lyra Tavares, ex-ministro do Exército, signatário do AI-5
que participou da Junta Militar que governou brevemente o país após Costa e
Silva. De acordo com o jornalista Elio Gaspari, o militar, que usava o
pseudônimo Adelita, jamais fez as pazes com a gramática. Mas sua cadeira na
Casa de Machado de Assis garantiu sua “imortalidade” e o financiamento para o
edifício do centro cultural, que finalmente se concretizou durante o governo
Geisel, em 1975. O empréstimo foi facilitado pelo chefe da Casa Civil, o quase
onipresente general Golbery.
Naquele
ano, Juscelino Kubitscheck foi candidato a uma vaga na Academia Brasileira de
Letras. Mas seus passos eram dificultados desde que tivera seus direitos
políticos cassados. Ele somente participou da cerimônia de posse de Guimarães
Rosa na academia, em novembro de 1967, porque Castelo Branco não compareceu – o
destino fora providencial: o marechal havia morrido meses antes num acidente
aéreo.
Em
1975, sentindo o ambiente acadêmico favorável à sua eleição, o ex-presidente
anunciou sua candidatura. Se eleito, sua vitória iria relançá-lo no espaço
público e representaria uma derrota para o regime. Então, meses antes do
pleito, Golbery chamou a seu gabinete Austregésilo de Athayde para uma conversa
sobre os empréstimos e a eleição. Empenhado em contornar a resistência dos
militares, JK enviou ao oficial sua obra Por que Construí Brasília.
O empenho não surtiu efeito: Juscelino perdeu o terceiro escrutínio para o
romancista Bernardo Élis, candidato lançado por Golbery. A ABL ainda era
vigiada pelo SNI no início dos anos 1980, conforme aponta um documento do órgão sobre
“infiltração comunista na Academia Brasileira de Letras”. O informe diz que um
“grupo forte de acadêmicos trabalha uma candidatura ousada: Oscar Niemeyer,
militante do PCB”.
Em
1980, Dinah Silveira de Queiroz se tornou a segunda escritora eleita para a
academia e Nélida Pinõn, em 1996, a primeira a presidi-la. Candidata única,
Pinõn teve votos de 38 dos 39 acadêmicos. A única abstenção foi de Rachel de
Queiroz: uma crise de labirintite a impediu de votar. Três anos depois,
resquícios da ditadura ainda ressoavam pela casa literária. O economista
Roberto Campos, ex-militante ipesiano e ministro do Planejamento do governo
Castelo Branco, concorreu a uma vaga, com apoio de Queiroz. Celso Furtado
(cassado em 1964), Ariano Suassuna e a viúva de Dias Gomes – cuja cadeira
Campos assumiria – foram contra sua candidatura. A força do conservadorismo
venceu e ele foi eleito. No dia de sua posse estavam presentes José Sarney,
Antônio Carlos Magalhães e Roberto Marinho, presidente do grupo O Globo. Ainda
hoje, a Academia Brasileira de Letras se beneficia de sua temporária associação
com os militares. Construído com verbas governamentais durante o período da
ditadura, o edifício ao lado da sede da ABL foi inaugurado em 20 de julho de
1979. O aluguel de salas do prédio de 29 andares, o Palácio Austregésilo de
Athayde, proporciona a renda da ABL até hoje.
Fonte: Por
Sérgio Barbo, da Agência Pública

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