segunda-feira, 30 de junho de 2025

O conhecimento histórico contra o colonialismo: a ‘Brevíssima história do conflito Israel-Palestina’, de Ilan Pappe

No primeiro artigo do Especial Palestina, conhecemos o Diário da tristeza comum, de Mahmud Darwish. A leitura dessa obra é, a nosso ver, uma excelente porta de entrada para a Palestina, pois a densidade poética e política da escrita de Darwish nos permite entrever, simultaneamente, momentos importantes da história da ocupação israelense e seus impactos profundos na vida cotidiana dos palestinos. 

Neste segundo passo da nossa jornada, propomos um movimento de outra natureza: um exercício de síntese histórica. O livro, dessa vez, sobrevoa os principais acontecimentos que marcaram a ocupação sionista da Palestina e as múltiplas formas de resistência palestina, desde seus primórdios até os dias de hoje — na perspectiva de um dos mais notáveis historiadores do nosso tempo —, uma trajetória que atravessa e define, de modo incontornável, os últimos cem anos da história do Oriente Médio e do mundo. 

Brevíssima história do conflito Israel-Palestinafoi publicado originalmente em outubro de 2024, sob o título A Very Short History of the Israel-Palestine Conflict, pela Oneworld Publications. Naquele momento, a mais recente etapa do genocídio em Gaza completava um ano. A edição brasileira, traduzida por Alexandre Barbosa de Souza e publicada em 2025, inaugura uma coleção dedicada à obra de Ilan Pappe no Brasil, que será lançada pela Editora Elefante nos próximos meses. Destaca-se, já neste primeiro volume, a qualidade do projeto gráfico e a direção de arte da coleção, inspirada no tatriz — o bordado palestino tradicional, reconhecido como patrimônio cultural da humanidade. Pappe já é conhecido do público brasileiro por títulos como A limpeza étnica da Palestina (Sundermann, 2012) e Dez mitos sobre Israel (Tabla, 2022), ambos previstos para futuras resenhas aqui na Biblioteca Palestina. 

Ilan Pappe é um historiador israelense imprescindível quando se trata da historiografia contemporânea sobre a Palestina. Nascido em Haifa em 1954, em uma família de judeus alemães refugiados do nazismo, Pappe figura entre os “israelenses odiados em Israel”, ao lado de nomes como Gideon Levy e Shlomo Sand — intelectuais que romperam com os mitos fundadores do sionismo e se tornaram vozes críticas dentro da sociedade israelense. Formou-se em História pela Universidade Hebraica de Jerusalém, em 1978, e concluiu seu doutorado em Oxford em 1984, sob orientação do grande historiador libanês-britânico Albert Hourani, com uma tese sobre a política britânica no conflito árabe-israelense, que viria a se transformar em seu primeiro livro. Lecionou na Universidade de Haifa entre 1984 e 2007, até se exilar no Reino Unido. Desde 2008, dirige centros de pesquisa dedicados aos estudos palestinos na Universidade de Exeter. 

Pappe é um dos principais representantes dos chamados New Historians, grupo de historiadores israelenses que, a partir dos anos 1980, passaram a revisar criticamente a narrativa oficial sobre a fundação do Estado de Israel. Ao lado de Benny Morris, Avi Shlaim e Simha Flapan, ele teve acesso a documentos militares e governamentais que contradiziam versões dominantes sobre a “guerra de independência” de 1948. No lugar de um conflito defensivo contra uma agressão árabe, a nova documentação evidenciava o papel ativo de Israel na expulsão da população palestina, isto é, a limpeza étnica. 

Muitas das teses defendidas pelos New Historians israelenses já haviam sido formuladas por intelectuais árabes e palestinos como Constantine Zurayk, Arif al-Arif, Muhammad Nimr al-Hawari e Walid Khalidi. No entanto, em razão da natureza colonial da ocupação israelense que detinha o monopólio sobre os arquivos oficiais, impedindo o acesso para pesquisas, essas interpretações foram por décadas desqualificadas como ideológicas ou carentes de base documental. Com a abertura dos arquivos israelenses, incluindo os militares, a nova historiografia pôde validar e aprofundar essas leituras, oferecendo respaldo empírico a denúncias antes marginalizadas. 

No caso de Pappe, essa virada historiográfica é visível ao defender que a expulsão de cerca de 750 mil palestinos em 1948 não foi um efeito colateral da guerra, mas resultado de uma política deliberada de limpeza étnica. Segundo ele, o Plano Dalet, elaborado em março de 1948, funcionou como um roteiro operacional para a destruição sistemática de aldeias palestinas, massacres e expulsões forçadas, com o aval de David Ben-Gurion e da elite dirigente do movimento sionista. 

Outras obras relevantes de sua autoria incluem  A History of Modern Palestine (2003) e The Rise and Fall of a Palestinian Dynasty (2010), nas quais o autor amplia sua investigação para além de 1948, explorando a trajetória de famílias como os proeminentes Husayni, como expressão da política palestina anterior à fundação do Estado de Israel. Sua produção tem sido alvo de intensos debates acadêmicos. Benny Morris, seu antigo colega entre os New Historians, acusou-o de ser um “historiador desonesto” e de manipular evidências para sustentar suas teses. Outros críticos, como Efraim Karsh, afirmam que Pappe distorce documentos históricos para ajustar-se a uma agenda ideológica. Levando-se em conta as obras desses autores, percebemos que, como é de costume, as críticas cabem melhor aos próprios críticos.  

Em contrapartida, acadêmicos como Uri Ram e Seif Da’Na destacam a solidez de sua pesquisa documental e a coragem intelectual com que enfrenta narrativas hegemônicas. Para esses estudiosos, e concordamos com eles, sua obra é fundamental para desestabilizar consensos consolidados e provocar uma necessária crise na consciência histórica israelense, particularmente no que diz respeito ao papel do sionismo na despossessão dos palestinos. 

Pappe ocupa hoje um lugar central na historiografia crítica contemporânea ao propor uma reavaliação ética e política do passado israelense e palestino. Questiona os pressupostos do nacionalismo sionista e propõe alternativas democráticas e não étnicas para o futuro da Palestina histórica. Entre suas propostas mais debatidas está a defesa de um Estado único e democrático para israelenses e palestinos, baseado na igualdade de direitos e na justiça histórica. 

Sua influência ultrapassa os muros da academia, alcançando ativistas, movimentos sociais e debates políticos em diversas partes do mundo. Por tudo isso, Pappe contribui para a construção de uma memória contra hegemônica que recoloca os direitos dos refugiados palestinos, a crítica ao apartheid e a denúncia da limpeza étnica no centro das discussões sobre justiça e reparação no Oriente Médio. Ainda que frequentemente marginalizado dentro de Israel, onde suas posições são vistas como ameaçadoras para o projeto nacional sionista, Ilan Pappe é amplamente reconhecido internacionalmente por sua integridade intelectual e por oferecer ferramentas fundamentais para pensar alternativas à perpetuação da ocupação e à negação dos direitos palestinos.  

Uma dessas ferramentas é justamente sua obra mais recente, Brevíssima história do conflito Israel-Palestina. Em pouco mais de 160 páginas, o livro percorre um arco temporal extenso, que se inicia nas últimas décadas do século XIX e chega até os desdobramentos do 7 de outubro de 2023 – desdobramentos históricos e morais, segundo o autor. Do ponto de vista historiográfico, a obra não apresenta novidades, e tampouco pretende fazê-lo. Como afirma o próprio autor, seu objetivo é tornar legíveis os fundamentos do que se convencionou chamar de “conflito Israel-Palestina”, fundamentos que, segundo ele, “qualquer pessoa contrária à opressão e à injustiça” seria capaz de compreender. 

“A história, como tudo o mais, tem sido disputada – obscurecida por poderosos interesses políticos e pela polarização de ambas as partes. Mas eu sou historiador, e fornecer contextos não é o mesmo que oferecer pretextos” (p. 10), afirma. Brevíssima história é, assim, um livro de contextos. Uma espécie de síntese de toda a obra anterior de Pappe, um manual resultado de décadas de acúmulo documental e historiográfico.  

Organizado em 15 breves capítulos, o livro traça uma narrativa acessível que reúne fatores estruturais, sujeitos políticos, eventos decisivos e processos históricos que moldaram a realidade palestina ao longo de mais de um século. Pappe demonstra como a chamada “questão palestina” não é resultado de episódios pontuais ou rupturas abruptas, mas de uma política contínua de dominação por parte da ocupação israelense, de um lado, e de diferentes modalidades de resistência palestina, de outro. 

Ao evitar os eufemismos diplomáticos e os atalhos analíticos que costumam marcar a cobertura midiática do tema, Pappe insiste em reposicionar a Palestina no centro da discussão ética global. Para ele, entender o passado é um passo indispensável para reconhecer o presente e, sobretudo, para romper com o ciclo de silenciamento e normalização da violência que tem vitimado os palestinos. 

O livro começa com uma pergunta fundamental — quando e onde teve início o conflito? — cuja resposta desafia boa parte da narrativa sionista, que procura ancorá-lo em referências milenares e mitificadas. Pappe é direto: o conflito começou “no final do século XIX, quando a Palestina estava novamente sob domínio otomano, como estivera desde 1516, excetuados alguns breves interregnos”. Ou seja, não se trata de um embate milenar, intricado e indecifrável. Não tendo começado em outubro de 2023, tampouco exige o recuo de séculos para ser compreendido. Seu ponto de partida é claro: a chegada dos primeiros colonos sionistas à Palestina, um movimento que o autor define como “uma importação estrangeira”. 

Logo na abertura da obra, Pappe destaca as origens do sionismo não como um processo de autodeterminação judaica, mas como um projeto político nascido na Europa cristã, moldado por interesses coloniais e racializantes. Ele enfatiza que o sionismo emergiu, inicialmente, como um movimento cristão, anterior à adesão de líderes judeus, motivado por uma visão teológica e geopolítica da Palestina como “destino” para os judeus indesejados nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Europa continental. 

Ao explicitar essa origem, revela a dimensão antissemita que marcou o nascimento do sionismo político. Os primeiros formuladores da ideia, os cristãos europeus, viam os judeus não como cidadãos plenos, mas como um corpo estranho à nação, cuja “solução” passaria por sua remoção física para a Palestina. Trata-se, portanto, de um projeto de assentamento desde sua gênese, articulado a partir da lógica do descarte e da segregação. 

Essa abordagem permite ao autor desmontar o mito de que o sionismo seria a expressão natural do desejo de autodeterminação dos judeus. Com isso, Pappe convida o leitor a reconsiderar as premissas sobre as quais o conflito foi historicamente explicado e a enxergá-lo como parte de um processo colonial moderno, um colonialismo de assentamento, e não como um desdobramento inevitável de disputas ancestrais ou religiosas. Ao situar o início do conflito no contexto do imperialismo europeu do século XIX, propõe um deslocamento radical: entender a catástrofe palestina como uma questão política, histórica e contemporânea, e não como um dilema insolúvel inscrito na antiguidade. 

Alguns temas se destacam ao longo do livro, em que o autor utiliza a história como instrumento para desmontar o senso comum que envolve a questão palestina. Um exemplo recorrente é a utilização, por parte de Israel, de punições coletivas sob o pretexto da autodefesa (inclusive antes mesmo da fundação do Estado) para justificar massacres cometidos por milícias e grupos paramilitares. Essas forças, hoje reconhecidas como terroristas, deram origem às Forças de Defesa de Israel, ou seja, às forças armadas estatais. Punições coletivas como vemos em Gaza não são uma inovação recente de Israel. 

Outro eixo importante é a política sistemática de desestabilização de grupos políticos palestinos e árabes, por meio de diferentes estratégias, incluindo o incentivo à fragmentação interna e ao fortalecimento de facções rivais, com o objetivo de inviabilizar qualquer projeto autônomo de Estado palestino. Esse enfraquecimento deliberado de lideranças e organizações foi sempre acompanhado por uma lógica distorcida de negociação, em que os palestinos deveriam simplesmente aceitar os limites impostos por Israel. Como Pappe demonstra, em nenhum momento houve uma negociação real, em pé de igualdade. Ao apresentar esse contexto, o autor escancara o caráter ideológico da acusação de que os palestinos seriam os responsáveis por inviabilizar acordos. Fica evidente que, na verdade, as “negociações” jamais foram autênticas. 

O desprezo de Israel pelo direito internacional e pela chamada “comunidade das nações” também é analisado de forma contundente. Pappe mostra que esse desprezo não é um traço atávico, mas resultado da constatação de que tais normas e instituições carecem de eficácia real. Os massacres sucessivos cometidos inclusive antes da criação do Estado e o silêncio sistemático da comunidade internacional conferiram a Israel uma espécie de autorização tácita para incorporar esse desprezo como parte de sua identidade política. Essa realidade se expressa de forma brutal nos dias de hoje, diante do genocídio em curso em Gaza, sem qualquer esforço real da comunidade internacional para detê-lo. 

O livro também examina o papel dos países árabes nesse processo. De um lado, são nações marcadas por experiências coloniais traumáticas, tentando consolidar suas estruturas políticas sob forte intervenção ocidental; de outro, revelam interesses particulares que, muitas vezes, se sobrepuseram à solidariedade com o povo palestino, como no caso da Jordânia, que em diversos momentos negociou o destino dos palestinos em nome de seus próprios objetivos estratégicos. Pappe demonstra como Israel historicamente se aproveitou dessas contradições, operando para aprofundar a instabilidade regional e, assim, seguir adiante com seu projeto de limpeza étnica. 

Por fim, um dos grandes méritos da obra é oferecer uma chave de compreensão sobre a lógica interna da política israelense. Pappe analisa disputas entre partidos, correntes e interesses em jogo, mas conclui que o colonialismo, a ocupação e a violência são traços estruturais do Estado de Israel, independentemente do governo de turno. Mesmo sob administrações trabalhistas, os palestinos jamais tiveram garantias mínimas de dignidade. Ao investigar as últimas décadas, Pappe ilumina a construção progressiva do programa político de Benjamin Netanyahu — em curso desde os anos 1990 — que culmina na institucionalização do apartheid. “O programa de Netanyahu era a expansão unilateral da judaização da Cisjordânia, o fechamento do cerco aos palestinos em Gaza e a consolidação do regime de apartheid contra os cidadãos palestinos.” (p. 149) Com essa política consolidada, e diante do genocídio atual, o autor é categórico: “Claramente, não existe mais uma esquerda de verdade em Israel, tampouco um campo pacifista genuíno.” (p. 152) 

As conclusões de Pappe no capítulo final são poderosas. Não as revelo aqui para que as leitoras e leitores se sintam motivados pela curiosidade a chegar até elas e as leiam com os próprios olhos. Façam isso. O que posso adiantar é que, se essas palavras encerram o livro, elas devem ser, na verdade, o início de qualquer conversa. Nenhum debate sério sobre a questão palestina ou sobre o futuro do território palestino pode ignorá-las. O público brasileiro terá a oportunidade de conversar sobre elas com o próprio Ilan Pappe, que realizará uma conferência na programação oficial da Festa Literária de Paraty (Flip), em 1 de agosto deste ano, além de outras intervenções públicas a serem divulgadas em breve.  

Entre os muitos méritos da obra, talvez o mais relevante seja a afirmação de uma perspectiva histórica que evidencia o desejo palestino de constituir um Estado e as múltiplas formas de resistência desenvolvidas diante do colonialismo de assentamento israelense. “O esquecimento da história é útil para Israel, de modo que qualquer violência cometida pelos palestinos seja vista como uma bizarra atrocidade, compreensível apenas por seu desejo de aniquilar os judeus. Isso dá carta branca ao governo israelense para implementar políticas que teria evitado no passado, por questões éticas ou estratégicas. E os governos ocidentais seguem o exemplo.” (p. 157). A história, afinal, serve para alguma coisa. 

Brevíssima história não é, portanto, apenas um livro informativo. Trata-se de uma intervenção política e pedagógica, que oferece ferramentas conceituais e factuais para que os leitores, especialmente os não iniciados, possam compreender as raízes do sofrimento palestino e a urgência de uma justiça duradoura. Com linguagem direta e estrutura acessível, Ilan Pappe convida o público a ir além da superfície dos acontecimentos, reconhecendo na Palestina não apenas um caso exemplar de opressão colonial persistente, mas também um símbolo de resistência e de esperança num mundo ainda em disputa por dignidade e libertação. 

 

Fonte: Por Rafael Domingos Oliveira, no Le Monde

 

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