O
conhecimento histórico contra o colonialismo: a ‘Brevíssima história do
conflito Israel-Palestina’, de Ilan Pappe
No primeiro artigo do Especial
Palestina, conhecemos o Diário da tristeza comum, de Mahmud
Darwish. A
leitura dessa obra é, a nosso ver, uma excelente porta de entrada para a
Palestina, pois a densidade poética e política da escrita de Darwish nos
permite entrever, simultaneamente, momentos importantes da história da ocupação
israelense e seus impactos profundos na vida cotidiana dos palestinos.
Neste
segundo passo da nossa jornada, propomos um movimento de outra natureza: um
exercício de síntese histórica. O livro, dessa vez, sobrevoa os principais
acontecimentos que marcaram a ocupação sionista da Palestina e as múltiplas
formas de resistência palestina, desde seus primórdios até os dias de hoje — na
perspectiva de um dos mais notáveis historiadores do nosso tempo —, uma
trajetória que atravessa e define, de modo incontornável, os últimos cem anos
da história do Oriente Médio e do mundo.
Brevíssima história do conflito
Israel-Palestina foi publicado
originalmente em outubro de 2024, sob o título A Very Short History of the
Israel-Palestine Conflict, pela Oneworld Publications. Naquele momento, a
mais recente etapa do genocídio em Gaza completava um ano. A edição brasileira,
traduzida por Alexandre Barbosa de Souza e publicada em 2025, inaugura uma
coleção dedicada à obra de Ilan Pappe no Brasil, que será lançada pela Editora
Elefante nos próximos meses. Destaca-se, já neste primeiro volume, a qualidade
do projeto gráfico e a direção de arte da coleção, inspirada no tatriz — o
bordado palestino tradicional, reconhecido como patrimônio cultural da
humanidade. Pappe já é conhecido do público brasileiro por títulos como A limpeza étnica da Palestina (Sundermann, 2012)
e Dez mitos sobre Israel (Tabla, 2022), ambos
previstos para futuras resenhas aqui na Biblioteca Palestina.
Ilan
Pappe é um historiador israelense imprescindível quando se trata da
historiografia contemporânea sobre a Palestina. Nascido em Haifa em 1954, em
uma família de judeus alemães refugiados do nazismo, Pappe figura entre os
“israelenses odiados em Israel”, ao lado de nomes como Gideon Levy e Shlomo
Sand — intelectuais que romperam com os mitos fundadores do sionismo e se
tornaram vozes críticas dentro da sociedade israelense. Formou-se em História
pela Universidade Hebraica de Jerusalém, em 1978, e concluiu seu doutorado em
Oxford em 1984, sob orientação do grande historiador libanês-britânico Albert
Hourani, com uma tese sobre a política britânica no conflito árabe-israelense,
que viria a se transformar em seu primeiro livro. Lecionou na Universidade de Haifa
entre 1984 e 2007, até se exilar no Reino Unido. Desde 2008, dirige centros de
pesquisa dedicados aos estudos palestinos na Universidade de Exeter.
Pappe é
um dos principais representantes dos chamados New Historians, grupo de
historiadores israelenses que, a partir dos anos 1980, passaram a revisar
criticamente a narrativa oficial sobre a fundação do Estado de Israel. Ao lado
de Benny Morris, Avi Shlaim e Simha Flapan, ele teve acesso a documentos
militares e governamentais que contradiziam versões dominantes sobre a “guerra
de independência” de 1948. No lugar de um conflito defensivo contra uma
agressão árabe, a nova documentação evidenciava o papel ativo de Israel na
expulsão da população palestina, isto é, a limpeza étnica.
Muitas
das teses defendidas pelos New Historians israelenses já haviam sido
formuladas por intelectuais árabes e palestinos como Constantine Zurayk, Arif
al-Arif, Muhammad Nimr al-Hawari e Walid Khalidi. No entanto, em razão da
natureza colonial da ocupação israelense que detinha o monopólio sobre os arquivos
oficiais, impedindo o acesso para pesquisas, essas interpretações foram por
décadas desqualificadas como ideológicas ou carentes de base documental. Com a
abertura dos arquivos israelenses, incluindo os militares, a nova
historiografia pôde validar e aprofundar essas leituras, oferecendo respaldo
empírico a denúncias antes marginalizadas.
No caso
de Pappe, essa virada historiográfica é visível ao defender que a expulsão de
cerca de 750 mil palestinos em 1948 não foi um efeito colateral da guerra, mas
resultado de uma política deliberada de limpeza étnica. Segundo ele, o Plano
Dalet, elaborado em março de 1948, funcionou como um roteiro operacional para a
destruição sistemática de aldeias palestinas, massacres e expulsões forçadas,
com o aval de David Ben-Gurion e da elite dirigente do movimento
sionista.
Outras
obras relevantes de sua autoria incluem A History of Modern Palestine (2003) e The Rise and Fall of a Palestinian
Dynasty (2010),
nas quais o autor amplia sua investigação para além de 1948, explorando a
trajetória de famílias como os proeminentes Husayni, como expressão da política
palestina anterior à fundação do Estado de Israel. Sua produção tem sido alvo
de intensos debates acadêmicos. Benny Morris, seu antigo colega entre os New
Historians, acusou-o de ser um “historiador desonesto” e de manipular
evidências para sustentar suas teses. Outros críticos, como Efraim Karsh,
afirmam que Pappe distorce documentos históricos para ajustar-se a uma agenda
ideológica. Levando-se em conta as obras desses autores, percebemos que, como é
de costume, as críticas cabem melhor aos próprios críticos.
Em
contrapartida, acadêmicos como Uri Ram e Seif Da’Na destacam a solidez de sua
pesquisa documental e a coragem intelectual com que enfrenta narrativas
hegemônicas. Para esses estudiosos, e concordamos com eles, sua obra é
fundamental para desestabilizar consensos consolidados e provocar uma
necessária crise na consciência histórica israelense, particularmente no que
diz respeito ao papel do sionismo na despossessão dos palestinos.
Pappe
ocupa hoje um lugar central na historiografia crítica contemporânea ao propor
uma reavaliação ética e política do passado israelense e palestino. Questiona
os pressupostos do nacionalismo sionista e propõe alternativas democráticas e
não étnicas para o futuro da Palestina histórica. Entre suas propostas mais
debatidas está a defesa de um Estado único e democrático para israelenses e
palestinos, baseado na igualdade de direitos e na justiça histórica.
Sua
influência ultrapassa os muros da academia, alcançando ativistas, movimentos
sociais e debates políticos em diversas partes do mundo. Por tudo isso, Pappe
contribui para a construção de uma memória contra hegemônica que recoloca os
direitos dos refugiados palestinos, a crítica ao apartheid e a
denúncia da limpeza étnica no centro das discussões sobre justiça e reparação
no Oriente Médio. Ainda que frequentemente marginalizado dentro de Israel, onde
suas posições são vistas como ameaçadoras para o projeto nacional sionista,
Ilan Pappe é amplamente reconhecido internacionalmente por sua integridade
intelectual e por oferecer ferramentas fundamentais para pensar alternativas à
perpetuação da ocupação e à negação dos direitos palestinos.
Uma
dessas ferramentas é justamente sua obra mais recente, Brevíssima
história do conflito Israel-Palestina. Em pouco mais de 160 páginas, o
livro percorre um arco temporal extenso, que se inicia nas últimas décadas do
século XIX e chega até os desdobramentos do 7 de outubro de 2023 –
desdobramentos históricos e morais, segundo o autor. Do ponto de vista historiográfico,
a obra não apresenta novidades, e tampouco pretende fazê-lo. Como afirma o
próprio autor, seu objetivo é tornar legíveis os fundamentos do que se
convencionou chamar de “conflito Israel-Palestina”, fundamentos que, segundo
ele, “qualquer pessoa contrária à opressão e à injustiça” seria capaz de
compreender.
“A
história, como tudo o mais, tem sido disputada – obscurecida por poderosos
interesses políticos e pela polarização de ambas as partes. Mas eu sou
historiador, e fornecer contextos não é o mesmo que oferecer pretextos” (p.
10), afirma. Brevíssima história é, assim, um livro de
contextos. Uma espécie de síntese de toda a obra anterior de Pappe, um manual
resultado de décadas de acúmulo documental e historiográfico.
Organizado
em 15 breves capítulos, o livro traça uma narrativa acessível que reúne fatores
estruturais, sujeitos políticos, eventos decisivos e processos históricos que
moldaram a realidade palestina ao longo de mais de um século. Pappe demonstra
como a chamada “questão palestina” não é resultado de episódios pontuais ou
rupturas abruptas, mas de uma política contínua de dominação por parte da
ocupação israelense, de um lado, e de diferentes modalidades de resistência
palestina, de outro.
Ao
evitar os eufemismos diplomáticos e os atalhos analíticos que costumam marcar a
cobertura midiática do tema, Pappe insiste em reposicionar a Palestina no
centro da discussão ética global. Para ele, entender o passado é um passo
indispensável para reconhecer o presente e, sobretudo, para romper com o ciclo
de silenciamento e normalização da violência que tem vitimado os
palestinos.
O livro
começa com uma pergunta fundamental — quando e onde teve início o conflito? —
cuja resposta desafia boa parte da narrativa sionista, que procura ancorá-lo em
referências milenares e mitificadas. Pappe é direto: o conflito começou “no
final do século XIX, quando a Palestina estava novamente sob domínio otomano,
como estivera desde 1516, excetuados alguns breves interregnos”. Ou seja, não
se trata de um embate milenar, intricado e indecifrável. Não tendo começado em
outubro de 2023, tampouco exige o recuo de séculos para ser compreendido. Seu
ponto de partida é claro: a chegada dos primeiros colonos sionistas à
Palestina, um movimento que o autor define como “uma importação
estrangeira”.
Logo na
abertura da obra, Pappe destaca as origens do sionismo não como um processo de
autodeterminação judaica, mas como um projeto político nascido na Europa
cristã, moldado por interesses coloniais e racializantes. Ele enfatiza que o
sionismo emergiu, inicialmente, como um movimento cristão, anterior à adesão de
líderes judeus, motivado por uma visão teológica e geopolítica da Palestina
como “destino” para os judeus indesejados nos Estados Unidos, na Inglaterra e
na Europa continental.
Ao
explicitar essa origem, revela a dimensão antissemita que marcou o nascimento
do sionismo político. Os primeiros formuladores da ideia, os cristãos europeus,
viam os judeus não como cidadãos plenos, mas como um corpo estranho à nação,
cuja “solução” passaria por sua remoção física para a Palestina. Trata-se,
portanto, de um projeto de assentamento desde sua gênese, articulado a partir
da lógica do descarte e da segregação.
Essa
abordagem permite ao autor desmontar o mito de que o sionismo seria a expressão
natural do desejo de autodeterminação dos judeus. Com isso, Pappe convida o
leitor a reconsiderar as premissas sobre as quais o conflito foi historicamente
explicado e a enxergá-lo como parte de um processo colonial moderno, um
colonialismo de assentamento, e não como um desdobramento inevitável de
disputas ancestrais ou religiosas. Ao situar o início do conflito no contexto
do imperialismo europeu do século XIX, propõe um deslocamento radical: entender
a catástrofe palestina como uma questão política, histórica e contemporânea, e
não como um dilema insolúvel inscrito na antiguidade.
Alguns
temas se destacam ao longo do livro, em que o autor utiliza a história como
instrumento para desmontar o senso comum que envolve a questão palestina. Um
exemplo recorrente é a utilização, por parte de Israel, de punições coletivas
sob o pretexto da autodefesa (inclusive antes mesmo da fundação do Estado) para
justificar massacres cometidos por milícias e grupos paramilitares. Essas
forças, hoje reconhecidas como terroristas, deram origem às Forças de Defesa de
Israel, ou seja, às forças armadas estatais. Punições coletivas como vemos em
Gaza não são uma inovação recente de Israel.
Outro
eixo importante é a política sistemática de desestabilização de grupos
políticos palestinos e árabes, por meio de diferentes estratégias, incluindo o
incentivo à fragmentação interna e ao fortalecimento de facções rivais, com o
objetivo de inviabilizar qualquer projeto autônomo de Estado palestino. Esse
enfraquecimento deliberado de lideranças e organizações foi sempre acompanhado
por uma lógica distorcida de negociação, em que os palestinos deveriam
simplesmente aceitar os limites impostos por Israel. Como Pappe demonstra, em
nenhum momento houve uma negociação real, em pé de igualdade. Ao apresentar
esse contexto, o autor escancara o caráter ideológico da acusação de que os
palestinos seriam os responsáveis por inviabilizar acordos. Fica evidente que,
na verdade, as “negociações” jamais foram autênticas.
O
desprezo de Israel pelo direito internacional e pela chamada “comunidade das
nações” também é analisado de forma contundente. Pappe mostra que esse desprezo
não é um traço atávico, mas resultado da constatação de que tais normas e
instituições carecem de eficácia real. Os massacres sucessivos cometidos
inclusive antes da criação do Estado e o silêncio sistemático da comunidade
internacional conferiram a Israel uma espécie de autorização tácita para
incorporar esse desprezo como parte de sua identidade política. Essa realidade
se expressa de forma brutal nos dias de hoje, diante do genocídio em curso em
Gaza, sem qualquer esforço real da comunidade internacional para detê-lo.
O livro
também examina o papel dos países árabes nesse processo. De um lado, são nações
marcadas por experiências coloniais traumáticas, tentando consolidar suas
estruturas políticas sob forte intervenção ocidental; de outro, revelam
interesses particulares que, muitas vezes, se sobrepuseram à solidariedade com
o povo palestino, como no caso da Jordânia, que em diversos momentos negociou o
destino dos palestinos em nome de seus próprios objetivos estratégicos. Pappe
demonstra como Israel historicamente se aproveitou dessas contradições,
operando para aprofundar a instabilidade regional e, assim, seguir adiante com
seu projeto de limpeza étnica.
Por
fim, um dos grandes méritos da obra é oferecer uma chave de compreensão sobre a
lógica interna da política israelense. Pappe analisa disputas entre partidos,
correntes e interesses em jogo, mas conclui que o colonialismo, a ocupação e a
violência são traços estruturais do Estado de Israel, independentemente do
governo de turno. Mesmo sob administrações trabalhistas, os palestinos jamais
tiveram garantias mínimas de dignidade. Ao investigar as últimas décadas, Pappe
ilumina a construção progressiva do programa político de Benjamin Netanyahu —
em curso desde os anos 1990 — que culmina na institucionalização do apartheid.
“O programa de Netanyahu era a expansão unilateral da judaização da
Cisjordânia, o fechamento do cerco aos palestinos em Gaza e a consolidação do
regime de apartheid contra os cidadãos palestinos.” (p. 149) Com essa política
consolidada, e diante do genocídio atual, o autor é categórico: “Claramente,
não existe mais uma esquerda de verdade em Israel, tampouco um campo pacifista
genuíno.” (p. 152)
As
conclusões de Pappe no capítulo final são poderosas. Não as revelo aqui para
que as leitoras e leitores se sintam motivados pela curiosidade a chegar até
elas e as leiam com os próprios olhos. Façam isso. O que posso adiantar é que,
se essas palavras encerram o livro, elas devem ser, na verdade, o início de
qualquer conversa. Nenhum debate sério sobre a questão palestina ou sobre o
futuro do território palestino pode ignorá-las. O público brasileiro terá a
oportunidade de conversar sobre elas com o próprio Ilan Pappe, que realizará
uma conferência na programação oficial da Festa Literária de Paraty (Flip), em
1 de agosto deste ano, além de outras intervenções públicas a serem divulgadas
em breve.
Entre
os muitos méritos da obra, talvez o mais relevante seja a afirmação de uma
perspectiva histórica que evidencia o desejo palestino de constituir um Estado
e as múltiplas formas de resistência desenvolvidas diante do colonialismo de
assentamento israelense. “O esquecimento da história é útil para Israel, de
modo que qualquer violência cometida pelos palestinos seja vista como uma
bizarra atrocidade, compreensível apenas por seu desejo de aniquilar os judeus.
Isso dá carta branca ao governo israelense para implementar políticas que teria
evitado no passado, por questões éticas ou estratégicas. E os governos
ocidentais seguem o exemplo.” (p. 157). A história, afinal, serve para alguma
coisa.
Brevíssima
história não
é, portanto, apenas um livro informativo. Trata-se de uma intervenção política
e pedagógica, que oferece ferramentas conceituais e factuais para que os
leitores, especialmente os não iniciados, possam compreender as raízes do
sofrimento palestino e a urgência de uma justiça duradoura. Com linguagem
direta e estrutura acessível, Ilan Pappe convida o público a ir além da
superfície dos acontecimentos, reconhecendo na Palestina não apenas um caso
exemplar de opressão colonial persistente, mas também um símbolo de resistência
e de esperança num mundo ainda em disputa por dignidade e libertação.
Fonte:
Por Rafael Domingos Oliveira, no Le Monde

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