Acordo
nuclear Brasil-Alemanha estaria perto do fim?
Um
acordo entre Brasil e Alemanha que quase mais ninguém conhece no país europeu
completa 50 anos em junho de 2025. Ele desafiou o movimento antinuclear alemão,
além de sobreviver aos acidentes de Tchernobil, em 1986, e Fukushima, em 2011,
e a transição energética da Alemanha, com o fechamento das últimas usinas
nucleares do país em 2023.
Assinado
em 27 de junho de 1975, o acordo nuclear entre Brasil e Alemanha previa a
transferência de tecnologia alemã para o desenvolvimento do programa nuclear
brasileiro, com a construção de oito usinas no Brasil. No entanto, 50 anos
depois, das oito usinas, só uma saiu do papel – Angra 2, no estado do Rio de
Janeiro, em operação desde 2001. Outra, Angra 3, também no Rio, segue em
construção desde 1986, tendo consumido mais de R$ 20 bilhões.
O
acordo foi assinado durante os governos do general Ernesto Geisel (1974-1979) e
do chanceler federal alemão Helmut Schmidt (1974-1982), que comandava a
coalizão formada Partido Social Democrata (SPD) e o Partido Liberal Democrático
(FDP) na antiga Alemanha Ocidental.
"Em
1975, o tratado foi celebrado como o maior acordo tecnológico do século. O
entusiasmo era enorme dos dois lados", lembra o sociólogo Luiz Ramalho,
presidente do Fórum da América Latina, em Berlim. Crítico do acordo desde sua
assinatura. há anos ele defende o cancelamento do pacto, que é renovado a cada
cindo anos.
No
final de 2024, Ramalho achava que o acordo estava condenado. Afinal a Alemanha
era governada por uma "coalizão progressista", formada por SPD, FDP e
pelo Partido Verde – a legenda que, em anos anteriores, apresentou moções no
Bundestag (câmara alta do parlamento alemão) para encerrá-lo. Na época, os
verdes comandavam os ministérios do Exterior, da Economia e do Meio Ambiente.
Segundo
Ramalho, chegou a haver conversas nos ministérios e a rescisão do acordo foi
avaliada. "Então veio o colapso do governo alemão no início de
novembro."
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Várias tentativas fracassadas
Em
2004, pela primeira vez, o Partido Verde, cujos protestos antinucleares fazem
parte do seu mito fundador e do seu DNA, tentou cancelar o acordo. Na época,
ele também integrava a coalizão de governo ao lado dos social-democratas e
comandava o Ministério do Meio Ambiente.
O então
chefe da pasta, Jürgen Trittin, tentou, sem sucesso, transformar o pacto numa
parceria para o desenvolvimento de energias renováveis. Trittin contou em 2014
que os ministérios do Meio Ambiente dos dois países estavam negociando o fim da
parceria, mas a então ministra brasileira de Minas e Energia, Dilma Rousseff,
pediu a renovação.
Mais
dez anos adiante, o Partido Verde apresentou uma moção no Bundestag para anular
o acordo. Ela foi derrubada pela então coalizão do governo, formada pela União
Democrata Cristã (CDU) e pelo SPD.
Para o
deputado verde Harald Ebner, o resultado da cooperação entre os países é
decepcionante: "Seis das oito usinas previstas nem chegaram a sair do
papel. E as outras duas também não foram um sucesso. Há 40 anos, Angra 3 é um
canteiro de obras inacabado, e Angra 2 foi finalizada em 2000, após 24 anos em
construção, como a usina nuclear mais cara do mundo na época."
Ebner
ressalta ainda que Angra 2 foi construída numa região vulnerável a terremotos,
deslizamentos de terra e inundações, enquanto em sua área cada mais se acumulam
resíduos nucleares altamente perigosos. "O Brasil e a Alemanha estavam
equivocados sobre o acordo que fracassou em grande parte", conclui.
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Ressurgimento da energia nuclear
Para
Ebner, a energia nuclear pertence ao passado. Mas nem todos partilham essa
visão: pelo contrário, a ela vive atualmente um renascimento. Um estudo da
Agência Internacional de Energia (IEA) aponta que 40 países buscam expandir
esse tipo de geração para atender à crescente demanda de eletricidade.
No
Brasil, apenas 3% da eletricidade é de origem nuclear. Antigo crítico dessa
fonte energética, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva demonstrou grande
interesse na experiência da Rússia com pequenas usinas nucleares durante uma
reunião com seu homólogo russo, Vladimir Putin, em Moscou há algumas semanas.
E até
na Alemanha, onde esse debate parecia ter sido encerrado, ele voltou a ganhar
fôlego. Em 2011, logo após o acidente com um reator em Fukushima, no Japão, a
então chanceler federal alemã, Angela Merkel, promoveu o desligamento de todas
as usinas nucleares no país. Durante a última campanha eleitoral no início
deste ano, vários políticos, porém, defenderam reativar essas usinas.
A atual
ministra da Economia alemã, a democrata-cristã Katherina Reiche, também parece
estar aberta ao uso da energia nuclear. Recentemente, ela se reuniu com colegas
na Aliança Nuclear Europeia, uma associação de países como França, Suécia e
Polônia a favor da promoção desta fonte energética.
O
deputado Thomas Silberhorn, também da CDU, considera o acordo entre Brasil e
Alemanha um marco das relações bilaterais e um exemplo de parceria tecnológica.
"Hoje, a cooperação está focada em hidrogênio e energias renováveis, mas a
abertura tecnológica e a independência da política energética continuam sendo
relevantes para o Brasil, e também voltaram a ganhar importância na Alemanha e
na Europa."
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Nas mãos dos social-democratas
O
futuro do acordo parece depender dos social-democratas na coalizão de governo.
Durante muito tempo, os governos alemães e o SPD evitaram o tema por não querer
contrariar o Brasil, enquanto parceiro estratégico no Sul Global. Uma rescisão
unilateral poderia ser interpretada como um gesto hostil.
Mas
para a porta-voz de política energética da bancada do SPD no Bundestag, Nina
Scheer, esse seria o momento ideal para o fim do tratado: "O acordo de
coalizão prevê uma intensificação da parceria estratégica como Brasil. Devido à
importância da transição energética para o potencial de desenvolvimento
sustentável e estratégico, isso também envolve a substituição do acordo nuclear
Brasil-Alemanha por parcerias na transição para energias renováveis."
Essa
seria a posição de Berlim que Miriam Tornieporth espera. Ela trabalha para a
organização antinuclear alemã Ausgestrahlt, fundada em 2008 e que há anos faz
campanha pelo fim do acordo nuclear entre os dois países. "Essa cooperação
já passou da validade e não possui nenhum mecanismo de segurança, por exemplo,
que deveria ser incluído na perspectiva atual", afirma.
O
controverso acordo se tornou particularmente explosivo devido aos novos
acontecimentos geopolíticos, mais especificamente a invasão da Ucrânia pela
Rússia, desencadeando uma guerra que já dura mais de três anos. A empresa
francesa Frematome produz batões de combustível para usinas nucleares em
Lingen, no estado alemão da Baixa Saxônia, em parceria com a estatal russa
Rosatom, que, por sua vez, fechou com o Brasil um acordo de fornecimento de
urânio.
"Presumimos
que o material russo seja processado na usina de enriquecimento de urânio de
Gronau, também na Alemanha, assim como em Lingen, e posteriormente enviado ao
Brasil. Ao contrário de outras formas de energia, a indústria nuclear russa
escapou das sanções", explica Tornieporth. "Como a Alemanha fechou
suas usinas nucleares, seria consequente também fechar as usinas de Gronau e
Lingen."
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O
fracasso do acordo nuclear entre o Brasil e a Alemanha
Em 27
de junho de 1975, a imprensa brasileira foi pega de surpresa. Em Bonn, então
capital da Alemanha Ocidental, representantes do governo local e da ditadura militar brasileira anunciavam a
assinatura de um ambicioso acordo entre as duas nações. Negociado em segredo, o
documento oficializava a transferência de tecnologia alemã para o desenvolvimento do programa nuclear
brasileiro,
prevendo a construção de oito usinas nucleares nos estados do Rio (Angra 2, 3,
4 e 5) e em São Paulo (Iguapé 1, 2, 3 e 4).
Cinquenta
anos depois, o tratado ainda subsiste, mas como um
elefante branco. Das oito usinas, só uma saiu do papel – Angra 2, no estado do
Rio de Janeiro, em operação desde 2001. Outra, Angra 3, também no Rio, segue em
construção desde 1986, tendo consumido mais de R$ 20 bilhões. Dadas as
circunstâncias, é natural ligar o fracasso do programa nuclear brasileiro ao
acordo com a Alemanha. Mas de quem é a culpa?
Essa
pergunta ocupou, durante seis anos, os pesquisadores Dawisson Belém Lopes e
João Paulo Nicolini, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A
conclusão foi publicada recentemente na revista acadêmica Science and Public
Policy, de Oxford, no artigo intitulado Who's to blame for the
Brazilian nuclear program never coming of age? (De quem é a culpa pelo
programa nuclear brasileiro nunca ter amadurecido?), cuja pesquisa contou com
25 entrevistas com especialistas de todo mundo e a análise de documentos
históricos. A princípio, a resposta é simples.
"Foi
muito mais da gestão brasileira dos militares que de outros parceiros ou
organizações internacionais", diz Nicolini, cuja tese de doutorado,
orientada por Lopes, deu origem ao artigo.
"O
maior problema foi a falta de interlocução com a comunidade acadêmica, com o
empresariado e com a sociedade. Demos um passo maior que a própria perna e a
falta de planejamento dos militares acarretou nisso", explica ele à DW.
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Ambições
O
tratado foi assinado durante a gestão do general Ernesto Geisel (1974-1979),
mas Nicolini também atribui os problemas aos governos de Emilio Médici
(1969-1974), envolvido na negociação, e de João Figueiredo (1979-1985), também
responsável pela implementação.
Da
perspectiva do contexto da época, o acordo surgia como ideal para os dois
lados, o que levou a imprensa alemã a classificá-lo como o "negócio do
século", prevendo que o governo em Bonn receberia cerca de 10 bilhões de
dólares com as exportações de produtos nucleares aos brasileiros. Por causa da
crise do petróleo de 1973, Brasil e Alemanha Ocidental tinham visto seus
respectivos "milagres econômicos” das décadas anteriores caírem por terra.
Os
europeus enfrentavam o maior desemprego em 20 anos, que passara de 500 mil em
1974 para mais de um milhão em 1975 – afetando principalmente a indústria. O
Brasil, por sua vez, com uma inflação perto de 30% impactada pelo custo do
petróleo, buscava a diversificação da matriz energética e, claro, um lugar ao
sol junto às potências atômicas mundiais.
Além
disso, era uma jogada dos dois países também para fugir da tutela dos Estados
Unidos. A Alemanha, pioneira nos estudos sobre fissão atômica nos anos 1930
durante o governo nazista, ficara para trás na corrida nuclear por imposições
dos aliados após a Segunda Guerra. Já o Brasil adquirira dos americanos sua
primeira usina nuclear, a de Angra 1, em 1973, num modelo conhecido como
"turning key", sem transferência de tecnologia nem troca de
aprendizado.
Logicamente,
os americanos não viram com bons olhos o "drible" de brasileiros
e alemães ocidentais e tentaram de todas as formas boicotar a acordo. Não era
interessante para os americanos que houvesse outra nação com poderio nuclear no
território de influência na América Latina, nem a de que os alemães ocidentais
estivessem abocanhando parte do mercado da tecnologia nuclear, aponta Belém
Lopes.
"Naquele
momento, esse movimento representava uma microrruptura. Esse canal direto entre
Brasil e Alemanha Ocidental era uma forma de passar um recado para os Estados
Unidos e de diminuir nossa dependência em relação a eles", afirma o
professor de política internacional da UFMG.
A
Alemanha Ocidental, inclusive, estava no radar brasileiro há pelo menos duas
décadas. Em 1953, a compra de ultracentrífugas alemãs pelo Brasil tinha sido
embargada por quatro anos pelos Estados Unidos e só chegou aqui quando já
estava obsoleta.
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Aposta equivocada
Foi no
meio dos anos 1975, ressalta Lopes, que o jogo para a busca da tecnologia
nuclear estava sendo efetivamente jogado no tabuleiro da geopolítica
internacional. Naquele momento, as potências internacionais, lideradas pelos
EUA, buscavam limitar o desenvolvimento da tecnologia para outros países. Uma
das formas oficiais para isso era o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP),
cujos termos o Brasil só assinaria em 1998, sob o governo de Fernando Henrique
Cardoso.
"O
Brasil também queria conservar para si um programa nuclear que eventualmente
possibilitasse o uso dual, ou seja, de bomba atômica", diz o professor da
UFMG. Esse objetivo, no entanto, aparece de forma esparsa nos documentos da
época, acrescenta Nicolini. Afinal, as dificuldades já tinham começado na
construção das usinas.
Primeiramente,
a pressão dos Estados Unidos recaiu sobre a tecnologia oferecida. Como a
principal fornecedora de equipamentos era a Urenco, empresa de capital dividido
entre Inglaterra, Holanda e Alemanha, houve pressão americana sobre o governo
holandês para impedir a venda ao Brasil, diz Nicolini. Por causa disso, a
Alemanha Ocidental ofereceu outra tecnologia, ainda experimental, chamada
jet-nozzle. Não funcionou, e o Brasil acabou gastando mais energia do que
produzindo.
No
entanto, o argumento por parte dos militares de que a tecnologia seria a
principal culpada pelo fracasso do acordo é contestada por outro exemplo – a do
programa nuclear da África do Sul, por volta da mesma época e que também contou
com parceria alemã. "Os sul-africanos aperfeiçoaram o jet-nozzle e
conseguiram enriquecer urânio e transformar em seis ogivas nucleares”, conta o
cientista político.
Uma das
teses que defendem o acordo afirma que o conhecimento tecnológico aprendido com
os alemães foi utilizado para a criação do programa nuclear paralelo
brasileiro, mantido em segredo até a transição democrática, em 1985.
"Mas,
com a falta de interlocução com a sociedade e com o sistema de inovação
brasileiro, aquilo nunca chegou a um nível que pudéssemos usar para a produção
em escala industrial – enriquecimento de urânio, produção de reatores",
afirma Nicolini. Hoje, um dos frutos do programa paralelo é o submarino de
propulsão nuclear, cujo projeto data da década de 1970 e cujo lançamento, em
parceria com a França desde 2009, deve ser lançado só em 2040, com custo de
cerca de R$ 1 bilhão por ano ao Orçamento.
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Quem lucrou com o acordo?
A falta
de transparência no Brasil sobre as negociações com a Alemanha também impediu
um debate público sobre o tema. Como explica Helen Miranda Nunes, doutora em
história pela FGV Rio, o acordo só prosperou por causa do caráter
antidemocrático do regime militar. Segundo ela, a própria imprensa da época só
divulgou a assinatura na última hora.
"A
opção pela tecnologia do jet-nozzle foi muito criticada pelos cientistas
nucleares quando veio à tona. Se estivéssemos numa democracia à época, era
possível que o acordo não deslanchasse, porque foi secreto e se valeu da
privação de direitos da população”, diz ela, que pesquisou o tema na tese de
doutorado.
Parte
das obras do complexo de Angra dos Reis (RJ) ficou a cargo da Odebrecht, que
assumiu a empreitada sem licitação. De acordo com Nunes, a empreiteira
desenvolveu, a partir dessa época, um know-how na construção de obras estatais.
Em 2017, durante a Operação Lava Jato, a delação de
executivos da construtora acabou levando à prisão do almirante Othon Luiz
Pinheiro da Silva,
conhecido como um dos pais do programa nuclear brasileiro.
Mas, no
geral, os maiores benefícios ficaram com as
empresas alemãs –
principalmente a Siemens, cuja subsidiária Kraftwerk Union (KTU) foi
responsável por fornecer os reatores às usinas nucleares e tecnologia para
Angra 2 e Angra 3. "Além disso, os bancos alemães emprestaram dinheiro
para o Brasil e fizeram a festa aqui. Para a Alemanha, o acordo foi
benéfico", diz a historiadora. Segundo ela, o trato escoou a produção
nuclear alemã justamente num momento em que os movimentos ambientalistas
pressionavam o país contra o uso da energia nuclear.
Não foi
por acaso que o acordo ficou conhecido como "Negócio do Século", diz
Rafael Brandão, professor de história da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ). O setor nuclear alemão vinha acumulando déficits e viu no
Brasil a sua salvação. Ele lembra que a Nuclebrás Equipamentos Pesados
(Nuclep), estatal brasileira criada em 1975 com os alemães, tinha três
instâncias de decisões – as duas primeiras com membros do governo brasileiro,
mas a última só com integrantes alemães. "É claro que a última palavra era
da KWU-Siemens", conta.
Em
1979, uma reportagem do Jornal do Brasil apresentou denúncias de
superfaturamento nos insumos vendidos pela KWU em relação aos preços de mercado
internacionais, além de críticas de envolvidos no projeto nuclear brasileiro
que não havia troca de informações com cientistas alemães. Entre 1978 e 1982,
suspeitas de corrupção levantadas pela revista alemã Der Spiegel já
tinha levado à criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o
Acordo Brasil-Alemanha, contando inclusive com depoimentos de Norberto
Odebrecht. Terminou em pizza.
Hoje,
um movimento parecido ocorre a cada cinco anos no Parlamento Alemão, quando se
abre a janela para a revogação do acordo unilateralmente – o último foi em
2024. Mesmo com pressão dos Verdes, o
cancelamento nunca aconteceu. Do lado do Brasil,
finalizá-lo também seria largar o projeto de Angra 3 pelo caminho. "O
acordo está vivo também por uma dificuldade nossa de concluir o que estava
previsto. A culpa é da ineficiência do planejamento nuclear brasileiro",
conclui João Paulo Nicolini.
Fonte:
DW Brasil

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