Imigração,
miscigenação, violência: como a história do Brasil deixou marcas até no nosso
DNA
Nas
aulas de história, aprendemos como o Brasil foi colonizado pelos portugueses a
partir do início de 1500 — e como se deu a dinâmica entre indígenas, europeus e
africanos pelos séculos seguintes.
Mas um
novo estudo, que acaba de ser publicado na prestigiada revista Science,
conseguiu encontrar pistas desse passado diretamente no DNA dos brasileiros de
hoje.
Ao
fazer o sequenciamento do genoma completo de 2,7 mil pessoas, os cientistas
detectaram diversas evidências relacionadas aos fluxos migratórios, à violência
e à miscigenação.
Um dos
achados, por exemplo, revela a participação significativamente maior de
mulheres indígenas e africanas e de homens europeus na ancestralidade do que
consideramos hoje o povo brasileiro (entenda mais detalhes a seguir).
"A
gente conhece a história a partir dos livros e das aulas", avalia a pesquisadora
Lygia da Veiga Pereira, uma das autoras do estudo e professora do Instituto de
Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).
"Mas
conseguir enxergar os efeitos disso no nosso DNA é algo muito potente, muito
forte", complementa ela.
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Como a pesquisa foi feita
A
investigação envolveu 24 pesquisadores de 12 instituições diferentes. Ela é um
dos primeiros resultados de um projeto chamado "DNA do Brasil", que
começou em 2019 e tem como objetivo construir um banco de dados sobre a
genética de brasileiros.
Essas
informações ficarão sob controle do Ministério da Saúde e serão usadas para
diversos tipos de trabalhos acadêmicos — como aqueles que tentam entender as
mutações ligadas a doenças mais frequentes no DNA da população e as formas de
diagnosticá-las e tratá-las.
Os
pesquisadores pretendem compilar o sequenciamento do genoma completo de cerca
de 12 mil brasileiros, para que seja possível ter uma representatividade
suficiente de todas as regiões do país e de diversas comunidades.
A
pesquisa recém-publicada traz os resultados preliminares desse esforço. Ela
leva em conta o perfil genético de 2.723 indivíduos que vêm de áreas urbanas,
rurais, ribeirinhas e, segundo os autores, "representam diversas origens
étnicas".
Vale
lembrar aqui que o DNA é o conjunto de informações que determina boa parte de
nossas características físicas e psicológicas, além da propensão a desenvolver
certas enfermidades.
Essas
moléculas ficam organizadas nos cromossomos, que estão guardados no núcleo de
todas as células que compõem nosso corpo (com exceção dos espermatozoides e dos
óvulos).
O
genoma que carregamos é herdado de nossos progenitores — metade da mãe, metade
do pai.
Isso
permite entender como se deu a combinação dos genes a cada geração. Afinal,
nossos pais herdaram o material genético deles de nossos avós, que herdaram de
nossos bisavós, e assim por diante.
E, com
a evolução do conhecimento científico e das tecnologias de sequenciamento, hoje
é possível estudar e até reconstruir parte do passado através do DNA.
"Nós
conseguimos contar não apenas a história dos últimos 500 anos, mas também o que
acontecia antes disso nas Américas e também na África", acrescenta a
geneticista Tábita Hünemeier, que também coordenou o projeto.
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Miscigenação no passado
Uma das
primeiras constatações do trabalho reforça a ideia de como os primeiros séculos
de colonização do Brasil foram marcados pelo que os pesquisadores classificam
como "relacionamentos assimétricos".
Para
entender esse assunto, precisamos conhecer dois conceitos importantes: as
linhagens do DNA mitocondrial e do cromossomo Y.
A
mitocôndria é uma estrutura responsável pela produção de energia dentro das
células. Ela carrega genes próprios, que ficam separados do restante do genoma,
e são chamados de DNA mitocondrial (ou mtDNA).
Mas o
importante aqui é que nós herdamos o mtDNA exclusivamente das nossas mães.
Essa
informação permite estabelecer, portanto, que existem linhagens ininterruptas
formadas só por mulheres ao longo de diversas gerações e milhares de anos.
Afinal,
toda filha tem uma mãe. Mas nem toda mãe tem uma filha: se a mulher gerar um
menino, ou não tiver descendentes, o mtDNA dela não será passado adiante.
Em
termos genéticos, portanto, é possível traçar quem é a mãe, da mãe, da mãe, da
mãe… De forma sucessiva, ao longo dos tempos.
Já a
linhagem do cromossomo Y representa a mesma coisa, só que do lado masculino
dessa história.
Em
linhas gerais (e com algumas exceções), os caracteres sexuais de seres humanos
são definidos por esses cromossomos: XX em mulheres, XY em homens.
Nesse
sentido, é possível rastrear, por meio do cromossomo Y, quem é o pai, do pai,
do pai, do pai…
O
estudo sobre o DNA do Brasil revelou uma "vasta maioria", que supera
os 70%, de ancestralidade europeia nas linhagens do cromossomo Y (ligadas ao
sexo masculino).
Já as
linhagens mitocondriais (ligadas ao sexo feminino) trazem com mais força a
ancestralidade africana (presente em 42% das amostras) ou indígena (35%).
Segundo
os autores, o achado revela um passado marcado pelos tais relacionamentos
assimétricos, que envolveram, de um lado, homens europeus e, de outro, mulheres
indígenas ou africanas.
"E
isso ilustra como os dados genômicos ajudam a revelar a história da colonização
e suas consequências na diversidade genética da população dos dias de
hoje", escrevem os pesquisadores.
O
estudo lembra que "a maioria dos primeiros colonizadores europeus eram
homens" e devemos considerar "o histórico da colonização, que gerou
uma alta mortalidade entre homens indígenas e africanos, e da violência sexual
voltada às mulheres desses grupos".
Hünemeier
pontua que, mais recentemente, entre o fim do século 19 e o começo do 20, a
tendência dos relacionamentos assimétricos foi substituída por um padrão
seletivo.
"Ou
seja, as pessoas passaram a se casar preferencialmente dentro do mesmo grupo
étnico. Mestiços se casam com mestiços, brancos com brancos, indígenas com
indígenas", informa a pesquisadora, que atua no Laboratório de Genômica
Populacional Humana da Universidade Pompeu Fabra em Barcelona, na Espanha.
"Isso
revela uma outra face do processo de segregação, agora relacionada às condições
socioeconômicas e culturais desses grupos", complementa a especialista,
que também atua no IB-USP.
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Embaralhamento de genes
O
estudo lembra que a colonização europeia das Américas deu início "ao maior
deslocamento intercontinental de populações da história da humanidade".
Entre
os séculos 15 e 20, aproximadamente 5 milhões de europeus vieram ao Brasil — e
forçaram pelo menos 5 milhões de escravizados africanos a tomar o mesmo rumo.
Quando
os primeiros europeus chegaram à costa brasileira, estima-se que 10 milhões de
indígenas habitavam o território e falavam mais de mil idiomas diferentes. Os
dados mostram que entre 83% e 98% desta população foi dizimada.
Hünemeier
destaca que as populações de várias partes do mundo que se encontraram e se
misturaram no Brasil a partir do século 16 estavam separadas há cerca de 15 mil
anos.
Vale
lembrar aqui que o ser humano surgiu na África e, ao longo de milhares de anos,
viajou e se estabeleceu por todos os continentes — a começar pela Europa e pela
Ásia, por questões geográficas.
As
evidências apontam que a entrada dos primeiros homens e mulheres nas Américas
se deu a partir da Beríngia, uma enorme "ponte" de terra e gelo que
se formou em períodos de glaciação entre a Sibéria (na atual Rússia) e o Alasca
(na América do Norte).
A
partir dali, os grupos se espalharam por todo o continente americano, inclusive
pelos territórios do que hoje chamamos de Brasil, ao redor de 13 mil anos
atrás.
A
pesquisadora Maria Cátira Bortolini, que também assina o artigo na Science,
lembra que a América é um continente com diversos climas e ambientes — do calor
tropical às nevascas, das planícies desérticas às montanhas e às florestas
tropicais.
A
diversidade genética dos primeiros americanos — ou daqueles povos que habitavam
a Beríngia e se deslocaram em direção à América do Norte — foi fundamental para
permitir essa adaptação.
"As
populações que chegaram aqui foram muito bem sucedidas em colonizar todo esse
território num espaço de tempo relativamente curto", diz a especialista,
que é professora titular do Departamento de Genética da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS).
A
partir do ano 1500 da era comum, aconteceu a chegada dos europeus.
Pouco
depois, ainda no século 16, milhões de africanos — muitas vezes advindos de
povos que nunca chegaram a ter qualquer contato em seu continente de origem —
começaram a ser trazidos à força, como escravizados.
"Nosso
trabalho tenta entender como essa História antiga, dos povos originários, se
acopla com a entrada dos europeus e o processo escravagista",
contextualiza Hünemeier.
"Como
tudo isso embaralhou os genomas das pessoas de hoje? E quais os impactos que
isso traz em termos de diversidade e saúde?", questiona ela.
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As ondas de imigração
A
pesquisa recém-publicada conseguiu detalhar como diferentes subgrupos
contribuíram para a formação do povo brasileiro.
Das
ancestralidades europeias, por exemplo, é possível observar uma grande
influência das populações que vêm do sul do Velho Continente — embora
indivíduos no Rio Grande do Sul carreguem uma proporção maior de genes
relacionados ao norte da Europa.
"Esses
resultados são consistentes com os registros históricos, que mostram uma
predominância da imigração a partir de Portugal e Itália [sul da Europa], além
do fato de a região Sul do Brasil ter recebido muitas pessoas da Alemanha e do
norte da Itália durante os séculos 19 e 20", escreve os autores.
Sobre a
ancestralidade africana, a investigação revelou uma "alta
diversidade", com participação de grupos que vieram das porções oeste,
leste, norte e sul desse continente.
"Isso
sugere que grupos que nunca tiveram contato dentro da África se misturaram no
Brasil", apontam os cientistas.
Já a
ancestralidade indígena foi vista com mais força na região Norte, especialmente
nos Estados do Amazonas e do Pará.
"A
vasta maioria dos indígenas compartilham ancestrais comuns de grupos
etnolinguísticos do tupi e do karib, na região amazônica", detalham os
especialistas.
A
pesquisa também conseguiu localizar e sincronizar algumas pistas genéticas com
eventos que marcaram a História do Brasil.
Um
exemplo: houve um grande pulso de miscigenação entre diferentes populações num
período que compreende cinco a dez gerações passadas.
"Isso
corresponde à época que vai de 1750 a 1875 [...] e corresponde a eventos
demográficos significativos no Brasil, como o Ciclo do Ouro, que intensificou
abruptamente a imigração portuguesa para o Brasil", notam os autores.
Após o
boom da mineração, houve uma "tremenda expansão urbana, com aumento das
taxas de imigração".
"Nesse
mesmo período, os mercenários bandeirantes exploraram o interior do Brasil em
busca de ouro, pedras preciosas e a escravização de indígenas."
"Além
disso, a Família Real portuguesa fugiu ao Brasil em 1808 como resultado das
guerras napoleônicas e estabeleceu o Rio de Janeiro como a capital do império.
Isso contribuiu para a expansão do tráfico escravagista."
Ainda
no século 19, durante o período do império, o governo brasileiro implementou
políticas para encorajar a imigração, particularmente de pessoas do norte da
Europa, para o Sul e o Sudeste do país.
Para os
pesquisadores, esses detalhes ajudam a entender os motivos de o Brasil ter
"a população mais miscigenada do mundo".
"E
essa interação histórica única molda um mosaico complexo de diversidade
genética", concluem eles.
Fonte:
BBC News Brasil

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