Da
pandemia à mudança climática
O livro
mais recente de José Maurício Domingues, Da pandemia à mudança climática,
combina uma reflexão teórica sofisticada do contexto contemporâneo a partir da
sociologia política e o conceito de subjetividades coletivas, que o autor
desenvolveu ao longo de sua trajetória acadêmica, com uma análise crítica
empírica primordial da pandemia COVID-19 e da mudança climática.
O livro
é uma coletânea de artigos do próprio autor, publicados entre 2020 e 2024, que
buscam compreender o contexto social e político contemporâneo e as
possibilidades de transformação emancipatória. Além da introdução, onde José
Maurício Domingues delineia aspectos centrais da sua perspectiva, o livro está
dividido em duas partes, a primeira analisa a questão da saúde e a pandemia
COVID-19, em três capítulos, e a segunda parte, a questão ambiental e
climática, também em três capítulos.
Esta
resenha tem como foco o tema da mudança climática, e está estruturada em
reflexões sobre três questões centrais tratadas no livro e particularmente no
terceiro, quarto e quinto capítulos, respectivamente: a relação homem-natureza,
os conceitos e enquadramentos (framing) da mudança climática, e o diálogo com
as teorias econômicas e de desenvolvimento.
Importante
destacar que a análise da mudança climática é desenvolvida de forma
transdisciplinar, em diálogo com outras disciplinas das ciências sociais e
também abertura para o engajamento com as ciências exatas, e “se funda na
produção de uma crítica imanente e ecumênica, ou seja, aberta a diversos pontos
de vista críticos à civilização moderna e fincada na necessidade de
transformá-la, sem de modo algum, por outro lado, descontar ou descartar suas
enormes conquistas, em que pese o que se configura em muitos aspectos como sua
unilateralidade e consequências deletérias; a política se encontra em seu
centro” (p.11-12).
A
perspectiva política subjacente defende que “estrategicamente, não devemos opor
projetos mais localizados e possivelmente mais radicais que ponham em questão o
crescente “consenso da descarbonização” a outros que veem no Estado um agente
fundamental na luta contra a mudança climática, sua prevenção e mitigação,
nossa adaptação às alterações que sejam irreversíveis e o enfrentamento de seus
efeitos disruptivos” (p.12), e é particularmente benvinda, dada conjuntura
atual de polarização política e crise democrática em diversos países do mundo,
onde a agenda climática tem sido capturada pela extrema direita a partir do
‘negacionismo climático’ e/ou ‘obstrucionismo climático’, impossibilitando
consensos mínimos para implementar agendas efetivas na escala temporal e
territorial necessária.
Também
crucial é o caráter global atribuído aos processos de transformação; como
afirma José Maurício Domingues, ela precisa necessariamente abarcar toda
espécie humana; todos têm responsabilidades, não apenas burgueses dos países
industrializados, ainda que se deva diferenciar a distribuição dos custos
financeiros da transição (p.15).
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Relação homem-natureza
A
relação homem-natureza é uma questão particularmente relevante no debate
climático, que José Maurício Domingues trabalha no quarto capítulo (A dimensão
política da modernidade e a insuperável exterioridade da natureza) e sexto
capítulo (Teoria Crítica e Mudança Climática: Subjetividade coletiva, evolução
e modernidade).
Sua
posição neste debate é que (p.86): “em vista de algumas tentativas de superar o
que considero ser uma divisão intransponível, argumento que a exterioridade da
“natureza” vis-à-vis a “sociedade” (moderna) não é facilmente dissipada”. A
natureza é entendida, assim, como uma construção social, e como tendo invadido
a vida social, em particular a dimensão política (p.92).
Embora
concorde que as principais perspectivas alternativas existentes atualmente
terminem em geral por objetificar a natureza, uma vez que humanos são seus
porta-vozes de uma forma ou de outra, como José Maurício Domingues afirma, a
discussão da relação homem-natureza ainda é um projeto em andamento na teoria
crítica, e tem implicações não apenas sobre a justiça climática, mas sobre a
teoria democrática (p.111, p.143-144).
José
Maurício Domingues explora de forma original a ideia de causalidade coletiva da
natureza a partir do conceito de subjetividade coletiva (p.103-104), mas o
diálogo com Milja Kurki, teórica da disciplina de Relações Internacionais
poderia ampliar a discussão sobre responsabilidades coletivas.
Milja
Kurki trabalha com o conceito de ‘response-abilities’ ao refletir sobre a
justiça climática em diálogo com autores como Bruno Latour, Donna Haraway e
Karen Barad, em contraponto com o conceito responsabilities, e de forma a
enfatizar a pluralidade ontológica das partes envolvidas e suas habilidades em
contribuir para respostas a mudança climática (Kurki 2024, p.1195).
Como a autora resume: “planetary response-abilities,
are not an ‘end’ of a spatial scale category for ‘wholes’ but perhaps rather
entail an attentiveness to ways of engaging worlds and becoming in relations.” (op. cit., p.1199).
Um
diálogo entre o conceito de subjetividades coletivas e responsa-habilidades
parece poder frutífero para o aprofundamento da reflexão sobre o papel do
direito e normas para implementação de consensos e formulação de políticas
públicas, e portanto, a democracia, dada perspectiva ontológica fluida embutida
em ambas as reflexões.
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Conceitos e enquadramentos (framing) da mudança climática
O
quinto capítulo (A mudança climática e seu léxico: uma visão analítica e
crítica) é extremamente didático e esclarecedor ao refletir criticamente sobre
os principais conceitos utilizados no debate climático: dano potencial
(hazard), vulnerabilidade, risco, ameaça e resiliência, e como são articulados
com os conceitos de adaptação, mitigação e precaução.
Como
José Maurício Domingues afirma, conceitos são polissêmicos, e seu objetivo no
capítulo é analisar sua mobilização no campo da mudança climática seguindo a
tradição da teoria crítica, ou seja, primeiramente elaborando uma crítica
imanente trazendo à tona bloqueios e saídas potenciais, e, posteriormente,
apontando como as relações de poder se entrelaçam e sustentam a produção desses
conceitos (p.117), confrontando desta forma seu caráter pretensamente técnico e
neutro.
A
discussão sobre “Capitaloceno”, outro conceito abordado neste capítulo, será
tratado na próxima sessão, mas uma sugestão que parece ser pertinente para a
reflexão sobre os conceitos acima mencionados, seria a incorporação da
discussão sobre os processos ‘securitização’ da agenda ambiental e climática, a
partir da obra de Barry Buzan (Buzan et all 1998, Falkner & Buzan 2024).
O
conceito de securitização vai além do conceito de politização, e se refere à
elevação do problema em questão ao nível de ameaça existencial, justificando
medidas extraordinárias, o que em geral implica suspensão de direitos e o
envolvimento de uso da força.
A
interface entre agenda de segurança e de mudanças climáticas inclui questões
tais como intervenções militares e operações de paz em resposta à conflitos
armados decorrentes de eventos climáticos extremos ou busca de minerais raros
necessários às transição energética, biopirataria (comercialização ilegal,
transporte, uso e patenteamento de material oriundo da fauna e da flora e dos
saberes das populações tradicionais acerca dos recursos naturais disponíveis a
eles), e migrações irregulares decorrentes de eventos climáticos extremos.
A
conjuntura global contemporânea geopolitizada e permeada de crises
militarizadas tais como a guerra na Ucrânia e no Oriente Médio, demanda
reflexões mais aprofundadas sobre o significado e consequências sociais dos
potenciais processos de securitização climática (Ribeiro Hoffmann 2025); um
diálogo do conceito de securitização por parte de José Maurício Domingues
poderia ser um caminho enriquecedor.
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Diálogo com teorias econômicas e de desenvolvimento
A
reflexão sobre a modernidade e o sistema capitalista permeia todo o livro, mas
o quinto e o sexto capítulo dialogam mais diretamente com teorias econômicas e
de desenvolvimento. Um primeiro
movimento é a análise dos conceitos de Antropoceno e Capitaloceno enquanto
parte do léxico da mudança climática.
O
Antropoceno se refere ao impacto do homem no sistema terra como originalmente
definido pelo químico holandês, Paul Crutzen. Entretando, como afirma José
Maurício Domingues: “Não haveria um Antropoceno genérico, mas sim um
Capitaloceno, em que o impulso incessante da acumulação capitalista implicaria
uma intervenção contínua e de fato crescente na natureza (ou a constituição
simultânea da natureza e da sociedade por meio do capitalismo, dialeticamente)”
(p.128).
A
problematização do capitalismo como fator determinante da mudança climática não
é consensual, Paul Crutzen, por exemplo, prefere enfatizar a ‘Grande
aceleração’ do crescimento econômico e populacional gerados por processos
industriais e uso de petróleo e gás, que também inclui os efeitos do
‘socialismo real’.
Apesar
da crítica ao capitalismo, José Maurício Domingues avalia sua reprodução futura
como incerta, “nada nos diz que ele seja
intrinsecamente incapaz de retomar um padrão de acumulação intensiva parcial,
“antropogenética”, relacionada a serviços como saúde, educação, entretenimento
e mídia social […] Por mais que seja improvável, talvez o capitalismo possa
mesmo reformar sua relação com a “natureza”, produzindo a dimensão material da
vida social de maneira mais sustentável, regenerando-a em algum sentido e
mitigando a mudança climática, sem falar de se adaptar a ela (parcialmente em
modo “pós-antropogenético”, poder-se-ia sugerir)” (p.160).
Em
outras palavras, o autor argumenta que “perspectivas “ecomodernizadoras”
baseadas em soluções meramente tecnológicas frente ao Antropoceno devem ser
criticadas” (p.16), mas não devemos “supor que podemos descartar soluções
tecno-científicas de grande sofisticação e complexidade, as quais, sem dúvida,
serão necessárias” (p.16).
Para
José Maurício Domingues seria importante, portanto, avançar alternativas com
criatividade, combinar soluções locais com globais, e neste sentido há espaço
para diálogo entre perspectivas heterodoxas sociais democráticas (New Deals
verdes), do campo do socialismo ecológico, e do ‘bem viver’, conceito
originário das culturas indígenas dos Andes, especialmente Quéchua e Aymara,
embora se distancie de respostas simplificadoras ou românticas.
O
ecossocialismo e o ‘bem viver’ são avaliados como sem poder efetivo hoje,
sobretudo sem respaldo do poder estatal. Podem ser interessantes localmente,
mas não têm capacidade para transformação em grande escala. A solução proposta
seria, portanto, uma combinação de iniciativas inovadoras descentradas, e
coalizões incluindo também os social-democratas: “Nessa grande subjetividade
coletiva reformista há espaço, em todo o caso, para se batalhar pelo socialismo
ou outros projetos radicais.” (p.164).
Finalmente,
José Maurício Domingues critica a relação do regime internacional climático com
o sistema capitalista. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
das Nações Unidas (IPCC) e o conceito de comunidade epistêmica, da qual o IPCC
seria um ponto focal, são vistos como dependentes das relações de poder
constituintes da modernidade e do capitalismo (p.134).
Embora
concorde com as limitações das soluções de mercado, e as limitações do IPCC
existente, ainda que reconhecendo seu papel histórico crucial (Haas 2015,
Ribeiro Hoffmann 2024), considero que o conceito de comunidades epistêmicas,
assim como definido por Haas (1992, p.3): “uma rede de profissionais que
possuem reconhecida expertise e competência sobre um tema determinado e que
reclamam autoridade sobre um conhecimento que é relevante para a formulação de
políticas vinculadas a esse tema ou campo”, seja também polissêmico, e
portanto, válida uma ampliação do diálogo teórico com o conceito de
subjetividades coletivas.
Desta
forma seria possível imaginar possiblidades transformadoras dos consensos
gerados no âmbito do próprio IPCC a partir, por exemplo, da inclusão neste
espaço de cientistas sociais com visões alternativas às perspectivas econômicas
ortodoxas.
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Subjetividades coletivas e a COP30 em Belém
Para
concluir, a coletânea Da pandemia à mudança climática consolida a aplicação
prática da construção teórica de José Mauricio Domingues sobre a modernidade e
o contexto social contemporâneo. O conceito de subjetividades coletivas é
mobilizado nos campos da saúde e mudança climática, contribuindo assim tanto
para reflexão crítica como estratégias de ação, que podem e devem ser adotadas
tanto por governos como por atores sociais.
Um
maior engajamento político é de fato crucial dado contexto atual de crise
democrática e do multilateralismo, e uma crescente geopolitização da política
global e securitização de campos como a saúde e a mudança climática.
A
leitura do livro de José Maurício Domingues oferece diversas portas de entrada
para a mobilização, inclusive, tendo em vista a COP30, a ser realizada em Belém
em novembro de 2025. Como ele afirma: “A tarefa que finalmente se delineia é
como articular esses dois prazos, o imediato e o da longa duração, sem ficar
paralisado ou simplesmente abraçar mudanças restritas.” (p.138).
Fonte:
Por Andrea Ribeiro Hoffmann, em A Terra é Redonda

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