quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Nas profundezas escuras da alma

Gaza não é apenas Gaza. Martirizada e indomável, é também um símbolo universal. Representa o mundo colonizado. Ao imigrante, ao oprimido, à mulher, ao índio, ao negro. O tratamento que Gaza recebe é o mesmo que o resto de nós receberá. “Gaza é a primeira experiência a considerar-nos todos descartáveis”: frase de Gustavo Petro, ecoada pelo político e escritor grego Yanis Varoufakis.

•        A gazificação do Terceiro Mundo como estratégia imperial

O genocídio em Gaza polarizou a humanidade. Por um lado, uma consciência solidária e anticolonial cresce a nível mundial, derivada do apoio ao povo palestino.

Numa tarde chuvosa de Bogotá, em junho, um megaconcerto é realizado na Plaza de Bolívar. Tendo como pano de fundo uma enorme bandeira palestina e o slogan Stop genocide, cantam músicos como Ahmed Eid, nascido em Ramallah, ou o grupo Escopetarra, porta-voz colombiano da não-violência. Com a kufiya preta e branca no pescoço, as meninas e meninos que esperam em longas filas sob a chuva chegam até transbordar a praça.

Por outro lado, em oposição e ligados aos interesses de Israel, estão enraizadas a intolerância, a xenofobia, a islamofobia e a implementação de métodos extremos de pilhagem, invasão e extermínio.

Mais ou menos na mesma data do concerto em Bogotá, no teatro Gubbangen, em Estocolmo, um grupo de nazis mascarados atacou uma reunião pró-palestina de partidos de esquerda, ferindo cinquenta pessoas. Em Nuseirat, no centro de Gaza, uma escola da ONU foi bombardeada por Israel, deixando cinquenta mortos e dezenas de feridos. Na cidade de Washington – quando os massacrados em Gaza já ultrapassam os quarenta mil – Benjamin Netanyahu apareceu e discursou perante o Congresso norte-americano, e foi aplaudido de pé.

Diante dos horrores da Segunda Guerra Mundial, o escritor George Bataille teve uma visão. Bataille viu “(…) a Terra projetada no espaço como uma mulher gritando com a cabeça em chamas”. A imagem se desenrola hoje diante de nossos olhos. Somos testemunhas do genocídio: essa será a nossa marca geracional.

As potências ocidentais que apoiam e encorajam essa monstruosa calamidade transformam a sua “ordem baseada em regras” numa ordem baseada na hipocrisia, na violência e na duplicidade de critérios: condenam a invasão da Ucrânia pela Rússia, mas toleram a invasão da Palestina por Israel.

A tolerância e a cumplicidade para com os crimes de guerra de Israel empurram o Ocidente para o abismo do desumano. Ao permitir-se o que tem tolerado de Israel, o Ocidente assumirá a guerra como um meio e a pilhagem como um fim. Não haverá raiva ou selvageria que ele não considere lícito e não use em seu próprio benefício.

Crianças despedaçadas; mulheres queimadas vivas; pessoas condenadas à sede e à fome; tortura de prisioneiros; recém-nascidos destinados a morrer; violação de qualquer asilo, seja escola, hospital ou campo de refugiados. Nem mesmo Hieronymus Bosch, em sua pintura mais delirante do inferno, poderia imaginar o que aparece nas mídias todos os dias, diuturnamente.

Renegando e ignorando a ONU, os Direitos Humanos, as organizações de ajuda humanitária ou os altos Tribunais Internacionais, e agora livres do peso da ética, do respeito e da compaixão, os impérios antigos e o império recente tornar-se-ão gradualmente máquinas furiosas, então libertadas.

Estarão armados até os dentes; eles já estão fazendo isso.

Diante de uma crise ambiental devastadora, que reduziu os recursos de subsistência e ameaça esgotá-los, os países ricos aperfeiçoam a arte da pilhagem. Eles encherão as suas despensas à custa do resto do mundo.

Uma vez desmascarado o seu hálito civilizador, tentarão manter a fachada justificando qualquer atrocidade em nome da defesa da democracia.

Não restará nenhum código de coexistência.

A distopia ocidental está se formando e mostra a sua face. Poderia prever-se que, tal como a queda de Constantinopla marcou a ruína do Império Bizantino, o genocídio de Gaza selou o fim da civilização ocidental.

O Império não assume passivamente a sua crise irreversível. Antes de perder a hegemonia, tentará arrastar o resto da humanidade para o seu calvário. À medida que seus privilégios são questionados, ele os defende com mordidas cada vez mais brutais.

Implanta medidas draconianas contra a imigração, como tirar as crianças dos pais e mantê-las em jaulas. Ou como o infame “asilo offshore”, que consiste em deter contingentes de imigrantes indocumentados para deportá-los para áreas desérticas e inóspitas do planeta, onde o isolamento, a fome e a morte os aguardam.

Entrincheira-se em fronteiras militarizadas e acumula arsenal. Levanta economias internas baseadas na indústria armamentista: desenvolvimento ao serviço da morte; tecnologia de ponta para o Armagedom; laboratórios farmacêuticos, não para a saúde, mas para armas biológicas; bombas táticas e estratégicas; mísseis hipersônicos. Brinquedos atômicos e outros apetrechos de destruição em massa.

Ele treina na gestão de catástrofes existenciais. Se você apagar o rastro do passado e a batida do presente, sobre o portal do futuro levantarão a bandeira: “Nada terá sido. Nada será”.

Com o seu aparelho político envelhecido e obsoleto e as suas instituições desacreditadas, o poder colonialista tem uma saída, que aceita sem grandes reservas: dar rédea solta à ascensão do fascismo. O trânsito está acontecendo tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Se não for detido, eles estabelecer-se-ão como nações bárbaras, uma sombra da sua própria sombra.

•        O fim do domínio americano

Estes são os sinais do seu declínio. O que o vencedor do Prémio Pulitzer, Chris Hedges, caracteriza como “o fim do domínio americano”.

Quando um império cai, é porque já caiu.

Apesar do barulho, numa praça de Bogotá cantam jovens que apoiam Gaza. E nas universidades norte-americanas – centros de conhecimento e poder – os estudantes montaram acampamentos, confrontando a administração e a Polícia, para denunciar Israel.

A resistência se fortalece, o público cresce. Milhões de pessoas em todo o mundo – especialmente os jovens – expressam a sua indignação face ao horror desencadeado contra o povo palestino.

Nunca antes tantos saíram para se manifestar nas ruas. Rios de pessoas, dezenas de milhares, em Londres, Bagdá, Viena, Joanesburgo, Cairo, Cidade do México, Kuala Lumpur, Washington, Madrid. Nem mesmo durante o Vietnã a população global foi mobilizada em tais proporções, desafiando punições, acusações, prisões e demissões.

No calor do protesto, está a ser forjada uma geração anticolonial que não se afilia ao modelo de civilização ocidental. Busca uma maneira nova, digna e justa de viver e pensar.

Os indignados da Terra são encorajados, como David contra Golias. Na América Latina, na África, na Ásia, no Oriente Médio, os povos submetidos a velhas e novas sujeições deixam de olhar para o Norte para se olharem. Eles encontram afinidades e traçam caminhos para a liberdade. Ao se reconhecerem, invertem o mapa geopolítico.

A consciência anticolonial, que começa apenas como um boato, um vapor, uma expectativa, está se condensando no Terceiro Mundo e na agitada periferia das grandes cidades do Primeiro. Transformada num ponto de fuga, a efervescência da rebelião pode ser concretizada num programa político e num plano de ação.

“No fundo escuro da minha alma, invisíveis, forças desconhecidas travavam uma batalha em que meu ser era o solo, e todo eu tremia num embate incógnito”.

(Fernanda Pessoa)

Se a fé move montanhas, a consciência coletiva sobe cadeias de montanhas.

Os governantes ocidentais são deixados sozinhos no ato abjeto de abraçar e felicitar o genocida, fornecendo-lhe armas e recursos para que possa completar o seu trabalho de extermínio.

Existem exceções. Embora poucas, honradas: aqueles que, no pleno uso da independência e da dignidade, denunciaram o genocídio perpetrado em Gaza por Israel. São os governos da África do Sul, Irlanda, Espanha, Brasil e da Colômbia.

Aqui e ali acenam lenços de despedida. Farewell, arrivederci, adeus, até mais aos Trumps, os Bidens, os Netanyahus. Adeus aos Macrons, aos Trudeaus, aos Sunaks. Chao-chao Milei e Úrsula von der Leyen. A história irá lembrá-los como arquitetos do genocídio.

Há outras vozes que são ouvidas hoje. A corrente anticolonial tem os seus profetas, os seus YouTubers, os seus ativistas e poetas. Juntos formam um coro, abrem caminhos, tecem filosofia. Acompanham Julian Assange no compromisso de desvendar verdades para expor os crimes do poder.

Seus nomes são Noam Chomsky, Chris Hedges, Lula da Silva e Tarik Ali. Yanis Varoufakis, Ramón Grosfoguel, Jeremy Corbin, Susan Sontag e Jean-Luc Mélenchon. Roger Waters, do Pink Floyd. A escritora australiana Caitlin Johnston. Amy Goodman do Democracy Now. A deputada irlandesa Clare Daly. E Gustavo Petro. (E sem dúvida Saramago, se ainda aqui estivesse…). Todos concordam no repúdio ao sionismo e no apoio a Gaza.

Porque Gaza representa as pessoas pobres do planeta, os deserdados, os saqueados e explorados e depois demonizados, desprezados e considerados descartáveis. A política de extermínio concebida para Gaza é apenas um modelo. Uma experiência do que se pretende aplicar, e já está a ser aplicado, às massas de migrantes, de raças não-brancas, de religiões não-cristãs.

Yo pisaré las calles nuevamente

de lo que fuera Gaza ensangrentada

y en una hermosa plaza liberada

me detendré a llorar por los ausentes.

(Parafraseando Pablo Milanés)

Uma Gaza libertada quebraria a sequência automática de destruição. Simbolizaria o sepultamento da velha ordem e o acesso a um espaço de possibilidades deslumbrantes e inesperadas. Um milagre secular.

 

Fonte: Por Laura Restrepo e Pedro Saboulard, em La Jornada - tradução: Ricardo Kobayaski, em A Terra é Redonda

 

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