E os precarizados que alimentam a IA?
No âmbito da análise
do Projeto de Lei No 2.338 de 2023, que
cria um marco legal para a Inteligência Artificial no Brasil, na Comissão
Temporária sobre Inteligência Artificial, os signatários desta carta ressaltam
tema ainda ausente no texto. Saudamos a importância da análise pelo Senado
Federal e pela Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no
Brasil (CTIA) do Projeto de Lei. O relatório do senador Eduardo Gomes (PL-TO)
avançou e apontou para a fixação de diretrizes e obrigações fundamentais para o
desenvolvimento e uso dos sistemas de Inteligência Artificial, incluindo
medidas para mitigar riscos e assegurar direitos aos vários grupos afetados,
especialmente aqueles mais vulneráveis.
O texto tem ensejado
intensos debates, com forte e perigoso lobby de setores empresariais contrários
ao estabelecimento de necessárias regras para evitar efeitos prejudiciais da
implementação e adoção dessas tecnologias. Esta ofensiva das empresas já tem
produzido efeitos, com flexibilizações de obrigações fundamentais para garantir
o uso responsável e que mitigue consequências danosas para a população. Por
isso, é mais do que urgente que a sociedade se mobilize em torno do tema e que
o Senado continue persistente em sua autonomia, determinado a aprovar uma nova
lei sobre tema da maior relevância para o presente e o futuro de
desenvolvimento e bem-estar da população brasileira. Uma legislação soberana,
que considere as oportunidades, mitigando riscos e respeitando direitos,
colocará o Brasil em posição favorável na cadeia produtiva da economia digital.
Nas últimas discussões
na CTIA no Senado Federal, o relator, senador Eduardo Gomes, incorporou uma
emenda fundamental para incluir um tema até então pouco tratado entre as
medidas: o do trabalho. O acréscimo é de extrema importância, uma vez que o
impacto da IA nas relações laborais tem ensejado preocupações em todo o mundo.
Reiteramos a importância das propostas
de proteção dos trabalhadores contra os efeitos prejudiciais da implementação
dos sistemas de IA incluídos no texto. Sobretudo, faz-se necessário incluir a
avaliação de riscos por órgãos competentes, vinculados a instituições que regem
a saúde e o direito do trabalho, bem como
adotar medidas de transparência de gestão e proteção dos trabalhadores
com a obrigação de negociar a
implementação desses sistemas junto a
entidades representativas dos trabalhadores.
Contudo, há ainda um
tema chave ausente do PL: os direitos de trabalhadores envolvidos no
desenvolvimento da Inteligência Artificial. Pesquisas acadêmicas têm
demonstrado como este processo envolve uma quantidade enorme de pessoas em
todas as fases do ciclo de produção dos sistemas, da coleta e anotação de dados
à revisão e aperfeiçoamento dos modelos. Embora se trate de um processo
essencial ao aprendizado de máquinas, esse trabalho é externalizado
principalmente para plataformas digitais ou para redes especializadas de
terceirização, submetendo os trabalhadores a desproteção trabalhista, bem como
a formas de vigilância violadoras dos direitos à privacidade e à proteção dos
dados pessoais. Infelizmente, estudos
têm revelado como tais trabalhadores têm experimentado condições precárias,
especialmente nos países do Sul Global, incluindo o Brasil. Um estudo mostrou
que 33% dos trabalhadores neste segmento têm nessas plataformas sua principal
fonte de renda; 66% contam com uma quantia mínima de dinheiro a ser obtida nas
plataformas para pagar suas contas e possuem rendimento médio 31,5% menor do
que a população brasileira.
Outros estudos
revelaram que estes trabalhadores sofrem não somente com baixos pagamentos, mas
também com trabalho não pago, perfazendo
o montante de 8,5 horas por semana. Grupos enormes de trabalhadores são
reunidos em fazendas de cliques sem condições trabalhistas adequadas. A esses
trabalhadores é imposta uma condição de autônomo, o que retira o acesso a
direitos trabalhistas e do sistema de proteção social, como a seguridade
social. De um lado, empresas de IA não revelam quem está sendo contratado nas suas
cadeias produtivas, de outro muitas companhias e plataformas que fazem este
serviço estão fora do Brasil, o que aumenta a vulnerabilidade destes
trabalhadores. Essa situação torna as relações de trabalho e as precárias
condições de vida destas pessoas
invisibilizadas, pois ao não existirem perante a lei, não conseguem sequer reivindicar melhores
condições.
A IA é uma tecnologia
que se torna cada vez mais relevante na sociedade, mas seu desenvolvimento não
pode ser feito às custas da dignidade de trabalhadores. Neste sentido, as
evidências dos estudos produzidos pela academia mostram a importância das legislações
sobre IA tratarem da proteção ao trabalho e trabalhadores (referente ao
Capítulo X, seção II do referido PL) não somente na perspectiva dos efeitos de
seu uso e implementação, mas também levando em conta o trabalho envolvido nessa
cadeia produtiva, o que implica:
– Estender os
normativos e políticas públicas delegados à autoridade competente, autoridades
setoriais, o CTIA e o Ministério do Trabalho também aos trabalhadores
envolvidos no desenvolvimento dos sistemas de IA.
– Incluir estes
trabalhadores nas avaliações de risco e nas obrigações de supervisão humana
para decisões tomadas por sistemas automatizados.
– Incluir obrigações
de transparência para empresas de IA no tocante às empresas e trabalhadores
contratados na sua cadeia produtiva para permitir a fiscalização das
autoridades de inspeção do trabalho.
– Assegurar aos
trabalhadores envolvidos no desenvolvimento de IA direitos básicos trabalhistas
previstos na legislação trabalhista quando cumpridos os requisitos para tal,
indicando a necessidade de fiscalização das autoridades nesse setor.
– Delegar à ANPD, em
parceria com o CRIA e o Ministério do Trabalho, a emissão de normativos que
limitem a coleta abusiva de dados de trabalhadores no âmbito do desenvolvimento
e uso de sistemas de IA, incluindo dados psicológicos e relativos a sentimentos.
– Acrescer às
diretrizes do capítulo a transparência nos contratos e termos, na definição da
alocação de trabalho, na definição de remuneração, na tomada de decisões
disciplinares e nos critérios utilizados pelos sistemas de IA, bem como
direitos de recurso às decisões tomadas por estes e ou com o auxílio
deles.
Compreendemos que este
é um momento crucial e final de tramitação do PL 2.338 de 2023 na CTIA, mas não
poderíamos nos furtar de alertar para a importância do assunto uma vez que o
tema do trabalho passou a fazer parte do escopo. Ao mesmo tempo, somamo-nos aos
alertas contra os riscos do lobby das empresas de vários setores que atuam para
descaracterizar o texto do PL.
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Assinam esta carta:
Laboratório de
Pesquisa DigiLabour
Projeto Fairwork
Laboratório de
Trabalho, Saúde e Processos de Subjetivação (LATRAPS)
Laboratório de
Pesquisa em Economia, Tecnologia e Políticas da Comunicação (Telas)
Centro de Pesquisa em
Comunicação e Trabalho da Universidade de São Paulo.
ILO Essex Observatory for Work in the Digital Economy, capítulo
Brasil
Sociedade Brasileira
de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM)
Associação Brasileira
de Ensino de Jornalismo (Abej)
Associação Brasileira
de Linguística (ABRALIN)
Associação Brasileira
de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR)
Associação Brasileira
de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber)
Associação Brasileira
de Pesquisadores em Jornalismo
Associação Brasileira
de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (ABRASTT)
Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP)
Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)
ADUFC – Seção Sindical
dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará
Compolítica –
Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política
Frente Ampla em Defesa
da Saúde dos Trabalhadores
Rede de Pesquisa
Trabalho e Identidade do Jornalista (Retij – SBPJor)
Rede Lavits
Rede Nacional de
Combate à Desinformação (RNCD)
União Latina de
Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura, Capítulo Brasil
(ULEPICC-Brasil)
Instituto Distributed AI Research (DAIR)
Grupo de Pesquisa
Digital Platform Labour (DiPLab)
Cátedra Luiz Beltrão
de Comunicação da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)
Centro de Estudos
Subjetividade, Saúde e Trabalho (CESST)
ComunicAtivistas
Coordenação Coletiva
Setorial de C&T,I e TI PR RS
CPCiente
Departamento de
Técnicas Profissionais e Conteúdos Estratégicos – FACOM/UFJF
EMERGE-UFF – Centro de
Pesquisa e Produção em Emergência, Universidade Federal Fluminense
Grupo de Estudos e
Pesquisas para o Trabalho (GEPT/UnB)
Grupo de Pesquisa
Classes Sociais e Trabalho
Grupo de Pesquisa
CPCienTE – Interfaces em Comunicação Pública da Ciência, Tecnologias e
Educação: políticas públicas, Comunicação digital e métricas, divulgação
científica
Grupo de Pesquisa e
Estudos das Poéticas do Cotidiano – EPCO/UEMG
Grupo de Pesquisa
Economia Polìtica da Comunicação da PUC-Rio/CNPq
Grupo de Pesquisa em
Comunicação, Economia Polítia e Diversidade – Grupo Comum – UFPI
Grupo de Pesquisa
Trabalho e Teoria Social (GPTTS) da UnB
GT Inteligência
Artificial e Trabalho da Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados
da Universidade de São Paulo (IEA-USP)
InfoCom – Grupo de
Pesquisa em Competências InfoComunicacionais
Instituto Brasileiro
de Políticas Digitais – Mutirão
Instituto de Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas
International Center for Information Ethics
Laboratório ARIDA (Advanced Research in Databases)
Laboratório de
Investigação em Comunicação Comunitária e Publicidade Social (Laccops/UFF)
Laboratório de
Metodologias de Ensino e Tratamento de Resíduos da Universidade Federal do
Ceará
Laboratório de
Psicologia Social Jurìdica (UFMG)
Laboratório de
Tecnologias Livres -UFABC
MediaLab.UFRJ
Movimento FeliciLab
Núcleo de Jornalismo e
Audiovisual (PPGCOM UFJF)
Núcleo de Tecnologia
do MTST
Núcleo de Estudos
Organizacionais Sociedade e Subjetividade
Núcleo de Pesquisa em
Jornalismo e Comunicação-nujoc-UFPI
Observatório de
Economia e Comunicação da Universidade Federal de Sergipe (OBSCOM-UFS)
Observatório da Ética
Jornalística (objETHOS/UFSC)
Observatório das
Plataformas Digitais (OPD/UFMG)
Observatório dos
Impactos das Novas Morfologias do Trabalho sobre a Vida e Saúde da Classe
Trabalhadora (Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo)
Observatório do Futuro
do Trabalho
SETORIAL DE CIÊNCIA E
TECNOLOGIA DO PT-RS
Sindicato Nacional dos
Auditores Fiscais do Trabalho – SINAIT
SINDPD-PE – Sindicato
dos Trabalhadores em Processamento de Dados, Informática e Tecnologia da
Informação do Estado de Pernambuco
SOS Viamão
Trab21 – Grupo de
Pesquisa Trabalho no Século XXI
TRAMPO Pesquisa
University of Salento
Fonte: Outras Palavras
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