Por que Japão, 'carrasco' do Brasil na
Olimpíada, é tão bom nos esportes
No futebol feminino, o
Japão fez gol nos acréscimos e venceu a seleção brasileira. No skate, Rayssa
Leal, medalha de bronze, só não esteve em um lugar mais alto no pódio porque
duas japonesas ficaram na frente.
No judô, a campeã
olímpica Rafaela Silva perdeu a disputa do bronze para uma judoca japonesa. E
esses são só alguns exemplos dos primeiros dias de Jogos Olímpicos...
O Japão tem se
mostrado um "carrasco" para os atletas brasileiros nos Jogos de Paris
2024 — o que, como tudo no Brasil, deu origem a uma onda de memes nas redes
sociais.
Até o perfil oficial
do Comitê Olímpico do Brasil (COB), o @Time Brasil, entrou na brincadeira e
anunciou que "bloqueou" o perfil oficial dos japoneses, o @TeamJapan.
Até esta terça-feira,
30/7, o Japão era o primeiro no quadro de medalhas em Paris, com sete ouros e
13 medalhas no total.
Na última Olimpíada,
em Tóquio, o Japão terminou em terceiro lugar, com 27 medalhas de ouro e 58 no
total, um recorde para o país,
O desempenho de
destaque dos japoneses ocorre em meio a investimentos na área de esportes,
impulsionados pelos Jogos de Tóquio, e uma cultura que valoriza o esporte desde
as escolas.
"Não é apenas e
edição de 2020 dos Jogos, em Tóquio, que leva o Japão a esse lugar. Isso começa
com os primeiros jogos no país, em 1964, quando se criou uma cultura
esportiva", diz o professor Nelson Todt, coordenador do Grupo de Pesquisa
em Estudos Olímpicos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS) e presidente do Comitê Brasileiro Pierre de Coubertin, dedicado ao
francês que criou os Jogos da era moderna.
"E essa cultura
se sustenta pelo sistema educacional, por uma política que investe no esporte,
patrocinadores... Não é algo só de agora."
Desde 2015, o país
mantém ainda projetos como o chamado "melhoria da capacidade
esportiva", segundo o Ministério de Cultura, Esporte, Ciência e
Tecnologia.
Isso acontece em meio
a um crescente orçamento do governo japonês para o setor de esportes, segundo
dados reunidos no site Statista.
Mas como o país se
tornou uma potência olímpica?
• Esportes ocidentais chegam ao Oriente (e
às escolas)
A história do país com
a prática de esportes começa bem antes da chegada das modalidades
"ocidentais" - que hoje são a maioria em competições como os Jogos
Olímpicos -, segundo a Embaixada do Japão no Brasil.
Os esportes
tradicionais do Japão, muitos nascidos por volta do século 12, eram chamados de
"budo", com destaque para o kendo (esgrima japonesa com bastões de
bambu), jujutsu (que deu origem ao judô e ao jiu-jitsu), kyudo (arco e flecha
japonês) e o karatê.
Após a chamada
Restauração Meiji, em 1868, quando imperador Meiji chegou ao trono e iniciou o
processo de modernização e internacionalização mais vertiginoso da história
japonesa, varias modalidades esportivas do Ocidente foram introduzidas, como
beisebol, atletismo, rugby, futebol e patinação no gelo.
A popularização veio
principalmente pelo sistema educacional a partir de 1870, com a inclusão da
educação física no currículo escolar, com esportes como remo e tênis. Os
esportes, segundo o texto da embaixada, também vieram acompanhados da ideia de "de
que eram maneira de se obter disciplina mental".
A Associação de
Esportes Amadores do Japão (JASA) foi organizada em 1911, em preparação para os
5º Jogos Olímpicos, que aconteceram no ano seguinte em Estocolmo, na Suécia. O
Brasil viria a participar dos jogos a partir de 1920.
Além das aulas de
educação física, desde o século 20 as escolas japonesas realizam eventos
esportivos anuais nos quais todos os alunos participam. São os chamados
undokai.
Até hoje, eles ocorrem
no início de outubro, num feriado nacional conhecido como Dia dos Esportes.
Esses eventos
escolares incluem uma variedade de atividades, como caminhadas, corridas,
natação, competições de esportes com bola, esqui e escalada.
Segundo pesquisadores,
os eventos escolares oferecem aos participantes oportunidades "de cultivar
virtudes como cooperação, solidariedade, trabalho em equipe e
responsabilidade".
Os esportes também
fazem parte das chamadas bukatsu - algo que poderia ser traduzido como
"atividades extracurriculares".
Esses clubes escolares
preenchem o horário livre das crianças, que escolhem qual atividade esportiva
ou cultural pretendem seguir. Dependendo do bukatsu, as crianças podem treinar
durante um turno e participar de jogos amistosos nos finais de semana ou dias
de folga.
• O papel das grandes empresas
Na segunda metade dos
anos 1940, o Japão estava devastado após a derrota na Segunda Guerra ao lado da
Alemanha nazista e da Itália fascista. O país também tinha sido arrasado pelas
bombas atômicas jogadas pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki.
Os anos que se
seguiram ficaram conhecidos como o "milagre econômico japonês", com o
apoio dos americanos em meio à Guerra Fria. Esse período de reconstrução teve
um grande impulso com o surgimento de empresas locais, que passaram a exportar
produtos inovadores e relativamente baratos para o mundo.
Nesse cenário, surgem
grandes empresas japonesas de eletrônicos, como a Toshiba, e de carros, como a
Honda.
Essas novas grandes
empresas também tiveram papel importante no fortalecimento do esporte no país,
segundo mostra artigo da revista Nipponia, mantida pelo Ministério das Relações
Exteriores japonês nos anos 2000.
"Após a Segunda
Guerra Mundial, um número crescente de graduados desejava continuar
participando de esportes. Eles foram atraídos por grandes corporações, que
usaram parte dos lucros obtidos durante os períodos de crescimento para
estabelecer clubes esportivos internos", escreveu Tamaki Masayuki,
respeitado escritor de esportes no país.
"Os times
corporativos competiam entre si, e logo se percebeu que os melhores jogadores
eram uma excelente propaganda para suas empresas. Em pouco tempo, os programas
esportivos corporativos estavam treinando os melhores atletas do Japão”.
No livro Japanese
Sports: A History (Esportes no Japão, um história, em tradução livre), os
autores Allen Guttmann e Lee Thompson escrevem que, no país que se reerguia no
pós-guerra, a população também buscava o reconhecimento em "esportes
modernos" que ganhavam espaço no mundo.
"Apesar da
devastação, as crianças brincavam entre as ruínas e os adultos começavam,
timidamente, a reconstruir as organizações e a infraestrutura material dos
esportes japoneses. Como seus avós no período Meiji, eles queriam não apenas a
oportunidade de participar em esportes tradicionais e modernos, mas também o
reconhecimento internacional de suas conquistas atléticas", dizem os
autores no livro.
O esporte que atraiu
cada vez mais atenção após a guerra foi o beisebol, esporte em que o Japão
levou o ouro nos Jogos de Tóquio (em Paris, a modalidade não está no programa).
Os patrocinadores corporativos utilizaram o esporte como uma "ferramenta de
publicidade e promoção", segundo Masayuki.
Mas a relação íntima
entre empresas e esporte japoneses arrefeceu desde os anos 1990, já que crises
econômicas levaram a menos investimentos nos clubes esportivos das companhias.
• Grandes eventos e investimentos
Se as empresas
ajudaram a popularizar alguns esportes, foram os grandes eventos que atraíram
os japoneses para o esporte de alto rendimento.
Foi justamente no
cenário pós-Guerra que o Japão sediou a Olimpíada de 1964 - o país chegou a ser
excluído das competições em 1948, em Londres, mas foi readmitido em 1952, em
Helsinque.
"Nesse Jogos de
Tóquio, foi feita toda uma política esportiva para colocar o Japão como uma
força mundial depois da Segunda Guerra", explica Nelson Todt, do Grupo de
Pesquisa em Estudos Olímpicos da PUCRS.
A edição de 1964,
segundo o Comitê Olímpico Internacional (COI), ocorreu "em meio a um novo
movimento político para enfatizar a importância da educação física entre os
jovens da nação. Políticas educacionais que promoviam esportes ao longo da vida
foram introduzidas antes do evento, uma abordagem que continuou nas décadas
seguintes".
Além desse esforço
olímpico, desde 1946, o Japão sedia anualmente o chamado Kokumin Taiiku Taikai
(Festival Nacional de Esportes). A ideia era reerguer as modalidades e levantar
o moral da população.
Em 1951, o Japão
participou dos primeiros Jogos Asiáticos, realizados em Nova Délhi, Índia, onde
já se consagrou como maior medalhista da região.
Esses eventos são
encarados por pesquisadores como exemplos que promoveram "entusiasmo dos
japoneses pelas grandes competições esportivas".
Na esteira da segunda
edição dos jogos de verão em solo japonês, realizados em Tóquio em 2021 em meio
a pandemia de covid-19, o governo japonês lançou uma série de programas para
incentivar o esporte.
"Nenhuma edição
sozinha de Jogos vai melhorar a longo prazo a cultua esportiva. A curtíssimo
prazo melhora, como o Brasil em 2016, o Reino Unido em 2012, porque tem
investimento, atenção da mídia. Isso potencializa os resultados", diz
Todt.
Para o professor, os
Jogos de 2020 no fim serviram mais "para modernizar o Japão, com pelo
menos oito anos de preparo em novos esportes". "O país se atualizou e
entendeu a lógica que precisa 'mudar para não ser mudado', compreendendo a necessidade
de adaptação a novas culturas esportivas", diz o pesquisador, com exemplos
como o sucesso no skate.
O Japão também sediou
os Jogos Olímpicos de inverno 1972 e 1998, além da Copa do Mundo de futebol em
2002, junto com a Coreia do Sul.
Segundo os dados, o
investimento em esporte foi crescendo ano após ano, com um grande aumento
principalmente em 2016, na preparação para os Jogos Olímpicos.
O chamado
"projeto de melhoria da capacidade esportiva" de 2015 determina
recursos para que "cada organização esportiva realize acampamentos de
treinamento para a equipe nacional japonesa, enviar atletas para competições
internacionais, nomear treinadores nacionais".
Outro programa,
chamado J-STAR, apoia jovens que almejem competir em competições
internacionais. O site oficial do programa diz que "através de medições e
avaliações de sua força física e capacidade atlética, os participantes
encontrarão o esporte que melhor se adapta a eles e passarão por treinamentos,
como acampamentos de treinamento conduzidos por treinadores de alto
nível".
O governo japonês
também oferece benefícios para o setor privado investir, como deduções fiscais
para doadores de atividades esportivas.
Para Todt, a visão
japonesa de longo prazo pode ensinar ao Brasil. O professor avalia que o Time
Brasil faz "milagre", com aumento de atletas, medalhas e participação
feminina a cada edição."Temos uma monocultura, do futebol. Não adianta o
foco nos atletas só a cada quatro anos, com mídia e investidores. Tem que
pensar no 'olimpismo 365', todos os dias do ano".
Fonte: BBC News Brasil
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