Extrema
direita soube capturar insatisfação global com o sistema político, diz
professor
O
crescimento da extrema direita no Parlamento Europeu após as eleições deste ano, com partidos extremistas como
o espanhol Vox, o alemão AfD e o português Chega!, indica uma insatisfação dos
europeus com a política, analisa o professor David Magalhães. Doutor em
relações internacionais, Magalhães tem concentrado suas pesquisas no tema da
transnacionalização da direita radical e na política externa de governos
ultradireitistas.
Em
entrevista ao podcast Pauta Pública, Magalhães discute a capacidade da direita
de conseguir capturar o sentimento de insatisfação com o sistema, não só na
Europa, mas também no Brasil e nos Estados Unidos. Para ele, apesar das
diferenças nas plataformas eleitorais em cada país, as eleições europeias
“impactam e dão uma certa revitalidade aos grupos de extrema direita brasileira
que comemoraram a vitória dos europeus no Parlamento”.
Na
discussão, Magalhães ressalta que, do ponto de vista das “direitas”, a Europa é
historicamente muito distante do Brasil. Por isso, desde a redemocratização, o
movimento brasileiro tem se espelhado na direita americana. Atualmente, essa
tendência continua, com o alinhamento a Donald Trump e ao movimento nacional
populista, buscando replicar a sua forma e conteúdo.
Leia
os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo.
·
[Andrea Dip] Aqui, na
Alemanha, percebemos nitidamente como a questão migratória tem sido
significativa para o avanço da extrema direita. Ao menos desde 2014, essa
xenofobia foi intensificada e deu mais poder para a extrema direita. Nas minhas
investigações, eu tenho percebido como esses discursos xenófobos têm se tornado
cada vez mais violentos. Como, por exemplo, os discursos do primeiro-ministro
da Hungria, Viktor Orbán. Como esse aumento do discurso violento e
anti-imigração interfere nessas eleições?
No
caso da Alemanha, a AfD foi fundada em 2013 por ex-membros do partido da
ex-primeira-ministra Angela Merkel, a União Democrata Cristã (CDU). Esse
momento, segundo o cientista político holandês Cas Mudde, é chamado de “quarta
onda”, onde houve uma normalização das ideias e práticas da ultradireita.
Tudo aquilo que era visto como marginal foi trazido para o centro, moldando o
comportamento dos partidos tradicionais de direita. Já na Espanha, o partido
Vox foi fundado por ex-membros do Partido Popular (PP), que é historicamente de
centro-direita. Esse partido é conservador, mas tradicional, assim como a CDU
alemã.
Em
um primeiro momento, o AfD tinha pautas mais econômicas, com um perfil mais
tecnocrático, porque seus membros eram economistas de carreira. Esses membros
tinham discursos fundamentalmente contra a zona do euro e contra a ajuda que a
Alemanha vinha dando para países que foram abalados pela crise econômica
financeira, como a Grécia e a Espanha. Com a crise migratória de 2014 e
2015, quando houve um influxo significativo da população vinda do Oriente Médio
(especificamente sírios e afegãos), houve um impacto grande na mudança da
agenda dessas organizações.
Não
digo que a AfD já tinha uma agenda nativista [política de favorecer os
habitantes nativos de algum país], xenófoba e anti-imigração, mas o fluxo
migratório potencializou e redirecionou a agenda para um aspecto que tornou-se
a principal ênfase da AfD de 2014 em diante. A partir disso, surgiu o Der
Flügel, ala mais próxima à extrema direita neonazista alemã, que tem muita
força na região da Turíngia, na Alemanha Oriental.
A
mesma coisa aconteceu na Hungria. A plataforma eleitoral de Viktor Orbán em
2010, ano em que foi eleito, era basicamente o discurso contra o Partido Social
Democrático que havia ficado por oito anos no poder. A corrupção do Partido
Social Democrático é vinculada à crise econômica de 2009, que foi muito
impactante para o país. À época, ainda não havia a questão da imigração no
discurso de Orbán.
Isso
muda de maneira substancial após seu segundo mandato, quando a Hungria vira um
dos corredores de imigração porque alguns refugiados acabaram ficando (ainda
que de maneira provisória) quando passaram pela fronteira com a Sérvia. O país
tinha menos de 1% de população imigrante, ou seja, boa parte da população do
país não sabia exatamente o que era imigração.
Orbán
começou a mudar a sua agenda do ponto de vista do nativismo e xenofobia, da
política de imigração. Ele aprofundou essas conexões entre a ideia de uma
identidade húngara tradicionalista e católica, ameaçada pelos imigrantes. Ele
passa a culpar as forças internacionais por apoiar o processo migratório. A
figura do filantropo George Soros, um judeu húngaro, aparece justamente como
“bode expiatório” da destruição da identidade húngara. A partir disso, houve
uma campanha muito forte contra as ONGs que protegem refugiados.
No
Brasil, a direita radical não tem agenda nativista e xenofóbica porque a
imigração não é uma questão de relevância. No país também temos taxas de
imigração abaixo de 1%, em termos de refugiados e imigrantes. Temos muito mais
a agenda xenofóbica inter-regional, que seria o preconceito contra pessoas de
origem nordestina. O preconceito no Brasil com imigrantes já aconteceu na
região Norte do país com refugiados venezuelanos. Mas aqui o nativismo e
xenofobia não fazem parte da pauta porque realmente a imigração não é um tema
da conjuntura brasileira.
·
[Andrea Dip] Sabemos
que existem diferenças entre a extrema direita na Europa e no Brasil, como, por
exemplo, a agenda da xenofobia posto por você. Mas também existem as
semelhanças. Quais conexões você vê entre a extrema direita europeia e a
brasileira?
Primeiro,
eu queria tentar distinguir o que é a extrema direita europeia, porque podemos
compreender nessa extrema direita qual parte mais se aproxima da brasileira.
Por exemplo, eu vejo uma diferença muito grande ao comparar Holanda e França,
porque são dois países que têm uma cultura secular, laica, com tradição liberal
iluminista muito forte. De maneira que o discurso de um nacionalismo de
identidade religiosa pega muito pouco nesses países.
Eu
estou acompanhando bastante a campanha do Jordan Bardella, estrela da direita
radical francesa, que pode se tornar o primeiro-ministro francês durante as
Olimpíadas. O candidato francês praticamente não comenta questões como
ideologia de gênero, destruição da família tradicional etc. Não há discurso
anti-LGBTQIA+ e antiaborto (aprovado como direito constitucional na França). O
mesmo acontece na Holanda. Geert Wilders, do Partido da Liberdade (PVV), que
agora está formando o governo, em momento algum usa discurso religioso ou
cristão.
Mas, se
pegarmos países que têm um contexto histórico religioso e cristão, como o caso
da Hungria, Polônia, Espanha e Itália, conseguimos encontrar alguns traços
muito parecidos com a direita radical brasileira. A direita do nosso país fez
algo no contexto do bolsonarismo, falar de cristianismo e não falar de
catolicismo nem de protestantismo. Ou seja, foi uma aliança de conveniência que
aconteceu às vésperas da ascensão do Bolsonaro como força política.
Antes
de Bolsonaro surgir como candidato à unificação dos dois grupos, o Olavo de
Carvalho vivia atacando o Edir Macedo e os grupos neopentecostais e os
pentecostais no Brasil, houve uma aliança para viabilizar essa candidatura
religiosa cristã brasileira. Esse é um traço muito comum que possibilita a
interlocução global desses grupos.
Eduardo Bolsonaro tornou-se, de certa forma, o elemento de
internacionalização da direita brasileira. Foi ele quem se aproximou do
Steve Bannon junto com Filipe Martins, que está preso agora, mas foi assessor
de relações internacionais da Presidência. As duas figuras transnacionalizaram
as relações do bolsonarismo com grupos e organizações de ultradireita. Eduardo
Bolsonaro se aproximou do partido português Chega!, de André Aventura, e também
do partido espanhol Vox, de Santiago Abascal.
Inclusive,
o Brasil faz parte de uma organização conhecida como Fórum de Madri. Essa
organização teria sido criada para ser uma oposição ao Foro de São Paulo –
suposta organização de esquerda de teor conspiracionista – porém o Fórum de
Madri é uma organização de direita conservadora, claramente radical.
A
reivindicação de uma identidade mobiliza um senso de cristianismo e tradição de
família católica ou protestante. O caso brasileiro oscila de um lado para o
outro, mas de certa forma reivindica a mesma tradição cristã. Ou seja, a
ideia de identidade não é nacional secular, como é observado na França ou
Holanda, é uma identidade que quer recuperar uma tradição cristã. Como é visto
na discussão em torno do aborto no país, esse elemento vem de uma reivindicação
identitária cristã muito importante nesses grupos.
·
[Andrea Dip] David,
você trouxe alguns elementos muito importantes. Eu gostaria de saber como as
eleições europeias refletem no Brasil?
Eu
ouvi alguma militância digital de grupos bolsonaristas celebrando a vitória da
direita radical, embora eles não entendam exatamente essas diferenças
relatadas. No momento que souberem que o partido de Marine Le Pen, a
Rassemblement National, é em massa a favor do aborto, vão começar a chamá-la de
esquerdista. A visão que eles têm é de um grupo conservador crescendo.
Independente de essa percepção ser verdadeira ou não, ela impacta e dá uma
certa revitalidade a esses grupos, como se houvesse uma janela de oportunidades
de crescimento.
Não
estamos diante de uma direita conservadora normal, mas de grupos
verdadeiramente extremistas e hostis à democracia. Eu acredito que existem
alguns elementos que fortalecem os movimentos com um discurso geralmente contra
o sistema. A direita populista radical na Europa adota uma postura que é, em
certa medida, contra o sistema, envolvendo tanto a centro-esquerda quanto a
centro-direita. As eleições europeias têm mostrado isso: há um cansaço com o
pêndulo centro-esquerda e centro-direita.
Os
problemas também advém da democracia liberal, que se mostrou bastante incapaz
de resolver problemas fundamentais de origem social, econômica e de
desigualdade. Há uma sensação de insatisfação. Houve, por mais de uma década,
uma coalizão na Alemanha entre centro-esquerda e centro-direita com o Partido
Social-Democrata (SPD) e a União Democrata Cristã (CDU), que governaram juntos
desde a época da Alemanha Ocidental.
Na
Espanha, com o Partido Socialista Obrero (PSOE), há a mesma alternância entre
os dois grupos. Existe uma sensação de desgaste geral em relação ao
sistema, o consenso liberal que une centro-direita e centro-esquerda está sendo
questionado. A esquerda não conseguiu capturar essa energia. Já a direita
consegue capturar esse sentimento na Europa, Estados Unidos e também aqui no
Brasil. Esse é um ponto que tende a reforçar o discurso
antissistema.
Porém
nada se compara com a possibilidade de Donald Trump vencer as eleições
americanas. O cenário eleitoral nos Estados Unidos tende a ser muito mais
impactante para a direita brasileira do que o cenário europeu. A Europa,
do ponto de vista “das direitas” é muito distante historicamente, por isso a
direita brasileira tem mimetizado a direita norte-americana. Desde o processo
de redemocratização, o principal farol das nossas direitas radicais tem sido os
EUA.
Desde
o período do neoconservadorismo, com o ex-presidente americano George W. Bush e
a Guerra do Iraque, até quando a direita começa a virar uma direita nacional
populista com o também ex-presidente Donald Trump. Inclusive, a extrema direita
tenta copiar a forma e o conteúdo da alt-right que ascende com
o supremacista branco Richard Spencer. Em termos de pacto, temos que prestar
muito mais atenção no que vai acontecer nas eleições dos Estados Unidos agora
no final do ano do que nas eleições europeias. A Europa é vista como algo muito
distante da direita radical brasileira.
Fonte:
Por Andrea DiP, da Agencia Pública
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