Benefício
que aumenta salário de magistrados em até 33% já custou mais de R$ 284 milhões
Enquanto
o Congresso não decide sobre a proposta de aumento de 5% do salário do topo do
funcionalismo público a cada cinco anos de serviço, os magistrados criaram mais
um penduricalho que infla seus contracheques. A partir de uma resolução do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a categoria implementou em outubro do ano
passado a licença compensatória: uma gratificação que dribla o teto
constitucional e tem turbinado a remuneração de juízes e desembargadores em até
um terço.
Um
levantamento da ONG Transparência Brasil a pedido da Agência
Pública mostra que o benefício já consumiu pelo menos R$ 284 milhões dos
cofres públicos até maio deste ano. As informações obtidas em 27 órgãos
estaduais e federais do Judiciário ainda são subnotificadas, conforme alertou a
diretora executiva da Transparência Brasil, Juliana Sakai.
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Por que isso importa?
- Resoluções do Judiciário têm permitido que teto
constitucional seja desrespeitado e o impacto financeiro do efeito cascata
dessas decisões nos cofres públicos ainda é desconhecido em sua
totalidade, devido à falta de padronização e transparência de alguns
órgãos.
“Há
uma falta de padronização nos dados. Só consideramos no levantamento o que vem
carimbado no contracheque explicitamente como licença compensatória, mas ela
pode estar incluída em outras categorias”, explicou. Segundo Sakai, a
organização identificou mais de 2 mil categorias diferentes, ou seja, “dados
com nomes diferentes”. “Na prática, a gente não consegue fazer um mapeamento
completo, e isso prejudica a transparência”, observou.
O
benefício garante aos magistrados que acumulam funções administrativas ou
“processuais extraordinárias” um dia de descanso ou compensação financeira a
cada três dias de trabalho. Em um mês, eles podem tirar até dez dias de folga
ou receber o valor desse período como indenização. O limite é de 120
compensados por ano. A categoria tem direito também a até dois meses de férias
anuais, podendo converter parte delas em dinheiro.
Como
o penduricalho tem caráter indenizatório, ele não incide no Imposto de Renda e
não está sujeito ao teto constitucional, que é vinculado ao subsídio dos
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), no valor de R$ 44 mil. A
Transparência Brasil identificou que, além do aumento da remuneração líquida
média, que pode chegar a até R$ 14,7 mil por mês, com a nova gratificação, mais
magistrados passaram a ganhar acima do teto.
No
Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), por exemplo, os supersalários saltaram de
874 em agosto de 2023 para 933 em setembro do mesmo ano – quando a licença
compensatória começou a ser paga. No último mês, esse número cresceu para
1.059.
Informações
publicadas pelo professor da Fundação Dom Cabral Bruno Carazza no livro O
país dos privilégios mostram que, em 2022, 94,8% dos juízes e
desembargadores tiveram um rendimento líquido superior ao dos ministros do STF
e em 2023 foram 93%. “Às vezes, um juiz no início de carreira, por causa desses
penduricalhos, ganha mais do que o ministro do Supremo. É uma subversão,
inclusive, da ordem lógica das coisas”, ressaltou.
Ele
avalia que “é necessário acabar com a possibilidade de se criar benefícios com
a classificação de verbas indenizatórias”. “Isso é um caminho para você furar o
teto. Precisamos recuperar a autoridade do teto, ele tem que ser cumprido e não
pode ser ultrapassado”, acrescenta Carazza, cuja obra mostra ainda que de 2018
a 2023 foram pagos R$ 39,8 bilhões em penduricalhos.
A Resolução 528/23 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abriu caminho para
que o Judiciário de todo o país adotasse a licença compensatória. A norma
assinada em 20 de outubro de 2023 pelo presidente do CNJ, ministro Luís Roberto
Barroso, reeditou uma resolução de 2011 do conselho que já garantia aos juízes
e desembargadores os mesmos “direitos” dos procuradores e promotores.
Dois
tribunais de justiça, o de Mato Grosso do Sul (TJMS) e o do Paraná (TJPR) se
anteciparam ao CNJ e concederam o benefício antes mesmo da publicação da
resolução. Entre os 27 órgãos analisados pela ONG Transparência Brasil, o TJPR também se destaca por ser o que mais gastou com a
licença compensatória até o momento: ao todo, foram R$ 98,7 milhões.
A
aprovação da resolução ocorreu em meio à discussão no Senado da Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) 10/2023,
que estabelece um adicional de 5% do salário a cada cinco anos para a elite do
funcionalismo, que inclui os magistrados. A PEC do Quinquênio, como ficou
conhecida, foi retirada de pauta após a tragédia do Rio Grande do Sul.
·
Ganha-ganha com
dinheiro público
A
norma do CNJ permitiu que os órgãos do Judiciário replicassem a licença
compensatória adotada pelo MP em janeiro de 2023.
O
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) já havia garantido o benefício
baseado no bônus pelo exercício cumulativo, criado pelo próprio Judiciário em
2020, mas o valor era uma gratificação, parte do salário, ou seja, sujeito à
regra do teto.
O
que gerou o efeito cascata de aumento nos contracheques das duas categorias foi
o fato de que, ao adotar a licença compensatória em forma de indenização, o MP
não considerou a obrigação de o pagamento ser parte do salário e ficar dentro
do limite remuneratório estabelecido pela Constituição.
O
Judiciário entendeu estar em “desvantagem” e também transformou o benefício em
verba indenizatória. Ou seja, a gratificação passou a ser paga aos magistrados
livre de descontos, ou como dia de descanso.
Se
monitorar os gastos do Judiciário é uma tarefa hercúlea devido à falta de
padronização dos dados, a mesma missão em relação ao Ministério Público,
segundo a diretora executiva da Transparência Brasil, seria ainda mais
desafiadora, uma vez que o CNMP não disponibiliza, em uma única base de dados a
informação dos salários dos procuradores e promotores. “Não há dados abertos
para o MP. O trabalho da sociedade civil fica infinitamente maior. O que nos
permite dizer que o Ministério Público é um órgão super ‘opaco’”.
# 2011
Resolução
do CNJ equipara “direitos” das carreiras de juiz, procurador e promotor com
fundamento no princípio da simetria constitucional. Norma garante pagamento de
auxílios, diárias, indenizações e licenças.
# 2015]Leis
criam a gratificação por exercício cumulativo, bônus a magistrados federais
que, por exemplo, trabalham em mais de um juízo.
# 2020
CNJ
autoriza benefício também para os tribunais estaduais. Recomendação não cita
obrigação de pagamento ser parte do salário, logo, dentro do limite do teto
constitucional.
# 2023
Janeiro
CNMP
regulamenta gratificação por esse acúmulo, como indenização em dias de folga,
no Ministério Público da União. Procuradores e promotores podem vender folgas
na proporção de uma folga a cada 3 dias de trabalho. Valor passa a poder
exceder o teto.
# 2023
Outubro
CNJ
avalia desvantagem remuneratória do Judiciário em relação ao MP e reedita
resolução de 2011 para garantir mesmos direitos que o MP.
# 2023
Novembro
Conselho
da Justiça Federal e Superior Tribunal de Justiça, pelo princípio de simetria,
editam normas próprias e adotam modelo do CNMP. Efeito cascata já atinge
Justiça Estadual.
“Essa
arte, esse truque, esse ilusionismo de converter verbas adicionais da
remuneração em verbas indenizatórias é o grande pulo do gato. Desta forma, não
só multiplicam ao infinito a remuneração dessas carreiras de forma fraudulenta
e desonesta – porque chamam de indenização o que é uma remuneração –, mas,
ainda por cima, sobre essa remuneração não incidem impostos. Então é
profundamente ilegal isso”, ressaltou o professor de direito constitucional da
Universidade de São Paulo (USP) Conrado Hübner.
Segundo
ele, “não há nenhum lugar da Constituição que está sendo dito que a simetria
entre as carreiras implica dever de absoluta igualdade remuneratória”. “É um
salto interpretativo deles. Claro que lhes interessa afirmar isso, normalizar
isso e dar isso como um argumento inquestionável. Mas, se for assim, então,
ministérios públicos e judiciários do país inteiro, estadual e federal,
deveriam ganhar o mesmo salário.”
Em
nota, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) defendeu que a resolução
do CNJ “apenas garantiu a equiparação de direitos e deveres entre membros da
magistratura e do Ministério Público, em conformidade com o que determina a
Constituição”. O CNJ não respondeu aos questionamentos da Pública sobre
o assunto.
·
Técnicos do TCU
apontaram indícios de irregularidade
Após
a resolução do CNJ, o Conselho da Justiça Federal (CJF), o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) editaram suas
próprias normas e tornaram o pagamento da gratificação por acúmulo de serviço
um benefício que foge do teto, em um efeito cascata que repercutiu na Justiça
Estadual.
De
acordo com a resolução do CJF, têm direito a esse benefício magistrados que dirijam escola de
magistratura ou fórum federal, coordenem conciliação, sejam conselheiros
dirigentes de associação, integrem ou auxiliem a cúpula dos Tribunais Regionais
Federais, entre outros.
O
penduricalho foi estendido também para os ministros do Tribunal de Contas da
União (TCU), uma vez que, segundo a Constituição, eles têm equiparação de
prerrogativas e direitos com os membros do STJ.
Conforme mostrou a Folha
de S.Paulo, um parecer da Unidade de Auditoria Especializada em Pessoal do
TCU sugeriu a interrupção do pagamento do benefício, mas foi ignorado pelos
ministros da corte.
A área
técnica do órgão constatou a existência “de robustos indícios de
irregularidades” e chamou o pagamento de “peculiar” e “totalmente
desproporcional”. Segundo os técnicos, a medida tem potencial de representar um
dano de cerca de R$ 865 milhões ao erário.
Apesar
disso, o relator do processo, ministro Antonio Anastasia, pediu o arquivamento
do caso. Ele foi acompanhado pelos demais ministros.
Fonte:
Por Alice Maciel, da Agência Pública
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