Os desafios de lidar com o envelhecimento
dos pais - e como evitar conflitos
Uma dura fase marcada
por conflitos e dificuldades. É assim que especialistas resumem a forma como o
envelhecimento dos pais é encarado diversas vezes, porque muitos filhos não
estão preparados para lidar com as exigências desse período.
À medida que a idade
avança, uma pessoa tende a precisar de cada vez mais apoio, seja em atividades
simples do dia a dia ou mesmo uma ajuda financeira - e isso pode cobrar um
preço de quem fica responsável por esses cuidados, como apontam especialistas.
“Em alguns casos,
esses filhos podem experimentar níveis significativos de estresse e sobrecarga
ao lidar com as demandas do envelhecimento dos pais, especialmente quando há
questões de saúde ou limitações funcionais”, diz a psicóloga Deusivania Falcão,
professora de Psicogerontologia – área da psicologia que estuda o
envelhecimento – da Universidade de São Paulo (USP).
Há, inclusive, um nome
para definir esse senso de obrigação dos filhos em apoiar pais mais velhos:
responsabilidade filial.
“É uma obrigação
baseada em um padrão cultural, relacionado à percepção de que esse é um
comportamento socialmente responsável em resposta ao envelhecimento e a
dependência dos pais”, explica Falcão.
"Ou seja, de que
é dever do filho adulto ajudar ou ser responsável pelos pais idosos."
Esse tipo de situação
e a discussão sobre como encarar estes desafios são cada vez mais frequentes
com aumento de idosos no Brasil.
O número de pessoas
com mais de 60 anos passou de 20,5 milhões no Censo de 2010 para 32,1 milhões
no mesmo levantamento em 2022 – um crescimento de 56% em pouco mais de uma
década.
E as estimativas
apontam que a população de idosos deve se tornar ainda maior ao longo das
próximas décadas.
Dados da Organização
Mundial da Saúde (OMS) mostram a tendência de que o brasileiro deve viver cada
vez mais: a expectativa de vida, que era de 69,8 anos no início dos anos 2000,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje é de
75,5 anos.
Isso não só aumenta o
período em que uma pessoa pode precisar de auxílio, mas também torna mais comum
que os filhos acompanhem diferentes fases do envelhecimento dos pais.
Um ponto importante
nesse período é a forma como filhos encaram o envelhecimento dos pais - e, como
em tantas outras fases da vida, não há uma cartilha universal a seguir.
Essa experiência,
dizem especialistas, costuma ser influenciada por padrões familiares do passado
e pela forma como uma pessoa foi criada, além de aspectos culturais,
históricos, sociais e religiosos de uma família.
"Há vários
modelos de envelhecimento e de velhice. Cada indivíduo envelhece de maneira
diferenciada, na singularidade de suas condições genéticas, ambientais,
familiares, sociais, educacionais, econômicas, históricas e culturais",
diz Falcão.
“Isso tudo depende do
tipo de sistema desenvolvido (pela família) ao longo dos anos.”
• Pais teimosos x filhos mandões
Um dos principais
desafios e motivos de atrito está nos papéis que pais e filhos assumem nessa
fase da vida, apontam especialistas.
De um lado, os filhos
podem enxergar uma pessoa fragilizada, adoecida e que precisa de cuidados e
limitações e tentam proteger seus pais e fazer com que não se exponham a
riscos.
Do outro, há uma
pessoa que não quer perder sua autonomia e que pode até perceber que precisa de
cuidados, mas tem dificuldade de aceitar isso, afirma a geriatra Fernanda
Andrade.
“Na imensa maioria das
vezes, há uma grande diferença entre a visão dos filhos e dos pais. Os filhos
não costumam lidar bem com as escolhas dos pais nesse período", afirma
Andrade.
Um dos comentários
mais recorrentes que a médica ouve dos filhos é que seus pais são “teimosos”
por não seguirem à risca como os filhos acreditam que eles devem agir.
"É angustiante
assistir ao envelhecimento – e, muitas vezes, ao adoecimento – de uma pessoa
que se ama e não conseguir controlar nada disso."
Mas, por trás dessa
“teimosia”, apontam especialistas, estão características que podem ser
atribuídas à idade avançada.
Entre elas, o
sentimento de solidão, a perda de sentido da vida, a saudade de amigos ou
parentes que já faleceram e o medo da morte.
Além disso, o temor de
depender dos outros, ainda que sejam os próprios filhos, causa preocupação em
muitos idosos e faz com que sejam resistentes a cuidados.
“Imagina passar 50
anos da sua vida totalmente independente e começar a precisar de alguém para ir
ao mercado para você, te ajudar a vestir uma roupa ou realizar sua higiene
íntima?”, diz Andrade.
Para não perder a
autonomia, diz Fernanda, muitos idosos não querem parar de dirigir, não aceitam
ir ao médico ou não querem abandonar outras atividades que costumavam fazer
sozinhos.
Aí é que podem surgir
conflitos na relação com os filhos, caso não haja uma comunicação aberta na
família sobre as expectativas, desejos e necessidades dos dois lados, pontuam
os especialistas.
Muitas vezes, é
preciso entender que se trata de uma fase de constante adaptação às demandas
que surgem com o passar dos anos.
Por isso, é
fundamental perceber que as necessidades dos pais podem mudar ao longo do
tempo.
Uma das principais
dificuldades na relação entre pais e filhos nessa fase é causada por falhas de
comunicação em razão do conflito geracional, diz Renato Veras, que é professor
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e diretor do projeto Universidade
Aberta da Terceira Idade (UnATI).
“O ideal é que os pais
conversem muito com os filhos e mostrem as diferenças geracionais", afirma
o médico.
"Esse diálogo é
importante, mas é difícil, porque muitos pais não conseguem puxar essa conversa
e muitos filhos se consideram senhores da verdade, o que dificulta muito essa
situação.”
• Inversão de papéis?
Nos casos em que os
idosos preservam sua autonomia, é importante que as decisões e escolhas dos
pais sejam respeitadas pelos filhos, dizem os especialistas.
“Incentivar a tomada
de decisões (dos pais) sempre que possível e respeitar suas escolhas contribui
para uma relação mais positiva”, afirma Falcão.
A dificuldade em
respeitar a autonomia dos pais pode ocorrer por estereótipos relacionados à
velhice e pelo etarismo (ou idadismo), o preconceito com pessoas mais velhas.
Mas, enquanto muitos
idosos conseguem permanecer independentes, outros precisam de auxílio
constante.
Em diversos cenários,
principalmente quando se fala em cuidados intensos, muitas mulheres acabam
sobrecarregadas.
Um levantamento
divulgado em 2023 pela Fundação Seade, um sistema de análise de dados, mostrou
que 90% dos cuidadores de pessoas com demência em São Paulo são do sexo
feminino.
O número ilustra uma
realidade que pesquisadores sobre o envelhecimento apontam que ocorre em todo o
país.
“Comumente, as filhas
que assumem o cuidado de pais idosos com doença de Alzheimer, por exemplo, com
a evolução da demência, percebem uma inversão hierárquica de papéis, em que
elas passam a ter mais poder e controle em relação a eles, levando-as muitas vezes
a terem a sensação de que passaram a ser mãe deles”, diz Falcão.
Mas a geriatra
Fernanda Andrade diz que o envelhecimento, embora implique que pais e filhos
assumirão novos papeis, não significa que estes papeis serão invertidos e que
os pais passam a ser os filhos da relação.
“Os pais nunca se
tornam filhos. Filhos estão aprendendo, filhos estão sendo preparados para a
vida adulta e são uma tela em branco para os pais colorirem da forma que julgam
melhor”, diz.
"Pessoas idosas
são telas rabiscadas, cheias de experiências e valores prévios já muito bem
estabelecidos."
Cuidar de um pai ou
mãe idosa ou de um filho pequeno são situações bem diferentes, diz Andrade.
"Um pai com
sequela de AVC ou uma mãe com Alzheimer não está no script da vida de ninguém.
Isso vira a vida dos filhos de cabeça para baixo, afeta o trabalho e aumenta os
custos familiares, sem planejamento algum”, pontua.
"Coletivamente
falando, são poucas as pessoas compreensivas com os filhos cuidadores. Ai de
você caso falte no emprego porque a sua mãe teve febre!”, acrescenta Andrade.
• Envelhecimento saudável
De forma geral, é
difícil prever quais serão exatamente os desafios enfrentados nesta fase da
vida.
"A realidade do
envelhecimento no Brasil é bem heterogênea", diz a geriatra Fernanda
Andrade.
"Envelhecer bem
não é só uma questão genética, mas também ambiental e está relacionada ao
acesso a melhores cuidados de saúde.”
Os especialistas
defendem que pessoas idosas não devem ser vistas como alguém que está
necessariamente doente ou que está perto de morrer.
Possíveis problemas de
saúde física ou mental, fragilidade e diminuição da capacidade funcional não
devem ser um impedimento para uma velhice confortável, dentro do possível que a
saúde permitir.
Em qualquer cenário,
que varia conforme os cuidados que os pais precisarem, é importante que os
filhos sempre tentem ser uma forma de apoio.
“Antigamente a pessoa
envelhecia, adoecia e morria. Ser velho era quase uma sentença de dependência
física ou cognitiva”, pontua Andrade.
"Hoje, temos uma
gama enorme de pessoas envelhecendo e bem. Ativas, trabalhando, saudáveis. Mas
isso ainda é recente. Leva-se tempo para mudar uma cultura.”
Cada situação e
condição de saúde dos pais vai exigir um tipo de apoio diferente.
Uma das principais
formas com que filhos podem apoiar seus pais nesse período, segundo
especialistas, é incentivar que uma pessoa idosa cuide das doenças crônicas que
surgem nessa idade para que tenham boa qualidade de vida.
Ao mesmo tempo, é
importante que os filhos incentivem os pais a se exercitarem fisicamente e
mentalmente – por meio de leituras e diferentes tipos de aprendizados, como o
de um novo idioma.
“É importante
reconhecer e apoiar o bem-estar emocional dos pais. Isso envolve estar atento a
sinais de depressão, solidão ou ansiedade, e buscar ajuda profissional quando
necessário”, diz Falcão.
• Os benefícios de se planejar e de ter
uma relação próxima
Uma forma de tornar
esse período da vida mais suave é se planejar para o envelhecimento, apontam as
especialistas ouvidas pela reportagem.
“Aqueles filhos que
participam de discussões sobre planejamento antecipado, como cuidados de saúde
e decisões financeiras, tendem a lidar de maneira mais eficaz com o
envelhecimento dos pais”, afirma Falcão.
Mas esse planejamento,
dizem as especialistas, ainda é pouco debatido nas famílias, que acabam
enfrentando cada problema conforme eles vão surgindo.
“A educação para o
envelhecimento é vital, pois nos capacita a enfrentar as transições com
compreensão e empatia, o que favorece a qualidade de vida e a autonomia”,
declara Falcão.
Ao mesmo tempo, nem
tudo é dificuldade quando se fala em acompanhar o envelhecimento dos pais. Há
benefícios ao tentar estar perto deles durante esse período.
“Conviver com os pais
mais velhos e cuidar deles permite que a gente reveja laços e acerte
pendências”, diz Andrade.
“Encarar o declínio e
a finitude da vida de alguém também nos faz refletir sobre a nossa própria
vida, valores e sobre como queremos ser cuidados na nossa velhice.”
O bom relacionamento
com os filhos costuma ser fundamental para que os pais encarem os momentos mais
difíceis do envelhecimento. Isso também pode ajudar os próprios filhos.
“A dinâmica familiar
positiva, com expressões de afeto e envolvimento do idoso nas atividades
familiares, contribui para melhorar o relacionamento entre pais e filhos”,
afirma Falcão.
Pesquisas sugerem que
os vínculos positivos com os pais idosos são também uma fonte de apoio para os
filhos cuidadores, acrescenta a especialista.
“É importante destacar
que, embora os desafios sejam comuns, o envelhecimento também pode trazer
oportunidades de crescimento pessoal, novos aprendizados e formas de se
envolver com a vida", diz Falcão.
"Adotar uma
abordagem positiva e proativa para enfrentar esses desafios pode contribuir
para um envelhecimento mais saudável e satisfatório.”
Fonte: BBC News Brasil
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