segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

'Meu filho é órfão de mãe viva': 5 relatos de mulheres acusadas de alienação após denunciar homens por violência

Cristiane foi obrigada a ficar sem contato com a filha e entregá-la ao pai por 90 dias. Isabela* foi ameaçada pelo companheiro. Jéssica* e o filho foram vítimas de violência física por parte do ex-marido. Juliana* e Soraia* denunciaram os pais de seus filhos por abusarem sexualmente das crianças.

(*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos menores de idade e de suas mães. Cristiane é a única cuja história já é pública e, por isso, concordou em dar seu nome verdadeiro.)

Todas elas foram acusadas por esses homens de promoverem alienação parental - prática prevista numa lei brasileira de 2010 criada para proteger as crianças em processos de separação, mas criticada por especialistas, que veem nela uma ameaça aos direitos de mulheres, crianças e adolescentes. Peritos da Organização das Nações Unidas já apelaram ao governo brasileiro para que elimine a lei -- a única do tipo no mundo, segundo o Ministério Público Federal (MPF). SAIBA MAIS AQUI.

O Judiciário acatou, em parte ou totalmente, os pedidos dos homens contra Cristiane, Isabela, Jéssica, Juliana e Soraia.

Os filhos de Isabela foram assassinados pelo pai, que se suicidou na sequência. Sob cuidados do pai, a filha de Cristiane também morreu, após maus-tratos. A criança de Jéssica fica sozinha com o pai violento. Soraia perdeu a guarda do filho para o ex-marido – à época, investigado por abuso sexual contra a criança. O filho de Juliana foi obrigado a estar reiteradas vezes na presença do pai, investigado pelo mesmo motivo (os inquéritos policiais acabaram arquivados).

<<<< Leia mais sobre cada caso abaixo.

·        “A guarda é minha, mas com muito peso”

“O único argumento que ele tem contra a mim é alienação parental, porque é algo subjetivo”, diz Jéssica que há seis anos enfrenta a acusação na Justiça, sem que o ex-marido tenha conseguido prová-la.

Ela -- que obteve duas medidas protetivas contra o ex-companheiro por conta de violência doméstica --, o filho e o pai da criança já foram submetidos a três perícias, e nenhuma delas constatou a alegada alienação por parte dela.

Nas três análises, o filho relatou o comportamento imprevisível do pai, que passa, rapidamente, de uma pessoa divertida a alguém violento, contou sobre as agressões que sofreu e expressou medo de ficar sozinho com ele.

A última perícia recomendou que o pai tenha acompanhamento psiquiátrico e psicológico. Segundo Jéssica, nada disso foi considerado pelo Ministério Público e nem pela Justiça, que mantém a guarda com ela, mas também um regime de visitas regulares ao pai, sem supervisão.

“Meu filho precisa ter um pai, sim, mas a única coisa que eu peço é proteção. Não quero um filho traumatizado a ponto de ser um adulto com problemas”, diz ela. Ao longo dos últimos anos, o menino desenvolveu crises de ansiedade e passou a tomar medicamentos.

“Meu filho chegou a me dizer que eu havia escapado da violência. Em seguida, me perguntou: ‘e eu?’”, conta a mãe.

·        “Alguém tem que parar ele”

Acusada de alienação parental pelo ex-companheiro, Isabela diz que nunca impediu que ele visse as crianças, mas se sentiu forçada a ceder a uma convivência muito maior para não perder a guarda.

Segundo ela, os relatos de violência doméstica e ameaças não foram analisados pela Vara da Família, que determinou o acompanhamento da família por um centro de assistência social. Nem quando o pai picotou as roupas das crianças na frente dos filhos esse órgão se sensibilizou.

“Como ele me acusava de ser alienadora, nada do que eu e as crianças dizíamos era prova”, afirma Isabela.

Em uma das sessões, Isabela relata ter dito à assistente social que “alguém tem que parar ele”, em referência ao ex-marido. Dias depois, o ex-companheiro assassinou as crianças com um tiro na cabeça de cada uma, e na sequência, suicidou-se.

“Nós vemos dois pesos e duas medidas”, diz a cientista social Vanessa Hacon, integrante dos coletivos Mães na Luta e Voz Materna. “Quando a criança diz: ‘não quero ver a mamãe’, o desejo dela vale. Já no sentido inverso, mesmo em casos de violência comprovada, impera o mito do bom pai. Há, nesses casos, um sobre esforço para a manutenção do vínculo com o pai em oposição a uma desconfiança quanto às denúncias das crianças e das mulheres-mães.”

·        “Meu filho é órfão de mãe viva”

Soraia não vê o filho desde 2016, quando ele, aos 5 anos, foi totalmente afastado dela e entregue ao pai, que, segundo ela, abusou sexualmente da criança. Naquele ano, o menino ainda dormia quando policiais, conta ela, invadiram a casa em que moravam para levá-lo.

Tudo começou quando o ex-marido entrou na Vara da Família com uma ação de guarda e regulamentação de visita, acusando Soraia de cometer alienação parental. À época, Soraia relata que já tinha feito um boletim de ocorrência por agressão física contra si e já tinha flagrado uma cena de abuso contra o filho.

“Um dia, depois de visitar o pai [enquanto a ação corria], meu filho chegou em casa muito machucado [no ânus]. Levei no Conselho Tutelar, fomos na delegacia fazer exame de corpo de delito e a própria delegada me disse: ‘você não vai mais entregar seu filho para esse homem’”, diz a mãe.

Na ação de guarda, Soraia foi diagnosticada com um distúrbio psiquiátrico (esquizofrenia paranoide) por uma psiquiatra indicada à Justiça, segundo ela, pelo ex-marido. Já o filho foi apontado como possível vítima de alienação parental.

Foi o que bastou para que a palavra dela deixasse de ser considerada no Judiciário -- os vários laudos que descartavam qualquer distúrbio psiquiátrico ou doença mental não foram suficientes para reverter essa situação.

Também não foi levado em conta um laudo psicológico indicando a influência inadequada de erotismo sobre o menino, nem o parecer psicológico, realizado na investigação policial contra o pai, que, apesar de inconclusivo, apontou que a criança havia apresentado um relato organizado e detalhado de abuso. O inquérito contra o pai foi arquivado.

O caso dela foi tema de uma reportagem do Fantástico em 2018, quando fazia pouco mais de um ano que ela estava sem ver o filho por ter sido considerada uma alienadora de grau severo. De lá pra cá, essa situação não mudou. Soraia levou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ainda não se manifestou se aceita ou não a denúncia.

“Meu filho é órfão de mãe viva. Ele pediu ajuda e entregaram ele para a pessoa que estava sendo investigada por abuso. Já eu fui considerada como uma pessoa ‘em surto’, a mãe que inventou uma denúncia para incriminar o pai”, diz Soraia.

Segundo a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do MPF, situações de abuso sexual contra crianças “que não têm testemunhas e não deixam vestígios, dificilmente serão provadas judicialmente”. Por isso, os relatos das mães, na visão do MPF, precisam ser levados em conta.

“Para esses casos, o relato das mães, das crianças e dos adolescentes vítimas pode ser ferramenta útil na tomada de decisão de medidas para a interrupção e reparação dos efeitos do abuso. A Lei da Alienação Parental se mostra, então, como uma ameaça para essas providências, pois formaliza a desconfiança frequente que paira sobre as denúncias de mulheres”, escreveu a Procuradoria em nota técnica de 2020.

·        “É como morrer em vida”

Quando seu filho ainda bebê mostrou, com bonecos, que o pai havia tirado sua roupa e colocado a cabeça entre suas pernas, o primeiro instinto de Juliana foi fazer um boletim de ocorrência -- na ocasião, ela já tinha deixado a casa onde morava com o pai do menino e estava tentando resolver a separação fora da Justiça.

“Meu advogado falou: ‘tem a questão da alienação parental. Você tem que agir com cautela’”, conta. O medo era de que a denúncia viesse a ser usada contra ela, que seguiu o conselho e não levou o caso às autoridades.

O ex-companheiro, no entanto, entrou com uma ação para divórcio e regulamentação de visitas, acusando-a de alienação, conforme Juliana.

No retorno de uma dessas visitas ao pai, a criança voltou a relatar que o pai o segurava e se esfregava nele. O menino pediu ajuda à mãe e à professora: queriam que elas falassem com o pai para que parasse.

“Eu pensava: se eu for na delegacia denunciar, vou perder a guarda. Me sentia uma inútil, porque não conseguia proteger meu filho”, diz Juliana.

Convencida pelo conselho tutelar, ela fez um boletim de ocorrência e a polícia começou a investigar. Com um laudo compatível para a hipótese de abuso sexual, a polícia pediu o indiciamento do pai da criança, mas o Ministério Público se manifestou pelo arquivamento.

O ex-companheiro, então, voltou a acionar a Vara da Família, acusando-a de alienação e requisitando a guarda da criança. As visitas aos finais de semana, suspensas quando a investigação policial começou, foram liberadas, sob pena de multa e de realização de busca e apreensão caso ela não entregasse o menino, conta Juliana.

Ela começou a gravar as recusas do filho de ir com o pai, relata. Acionado, o Conselho Tutelar não permitiu, em uma dessas ocasiões, que a criança fosse levada pelo pai -- ele, então, chegou a ameaçar telefonar para “seus contatos” na delegacia.

A Vara da Família novamente cortou as visitas, determinando, no entanto, encontros assistidos no fórum.

“Expuseram meu filho de novo a isso. E ele chorou, gritou, não quis entrar na sala de jeito nenhum”, conta Juliana.

Com a recusa explícita da criança, as visitas foram interrompidas, e os dois pais, submetidos a avaliações psíquicas. O laudo resultante afirma que ela não possui transtornos mentais, já ele foi apontado como alguém com falta de empatia e propenso a comportamentos violentos.

Segundo Juliana, depois disso, o Ministério Público pediu mais um laudo psicológico para saber se o menino, que passou a tomar medicamentos e em depoimento recente expressou repulsa ao pai, pode voltar a conviver com o pai.

“É uma tortura, é como morrer em vida. Eu vivo apenas para cuidar do meu filho, mas me sinto de mãos atadas”, diz ela.

·        “Prometi que ficaria viva para ver Justiça”

Pouco antes de a lei sobre alienação parental ser sancionada pelo então presidente Lula, em 2010, a filha de Cristiane Marcenal, Joanna Marcenal, de apenas 5 anos, morreu depois de, por decisão judicial, ser afastada da mãe e entregue para ficar 90 dias sob cuidados do pai.

“[A decisão] foi baseada em um laudo psicológico feito por três peritas que não ouviram nem a mim, nem a Joanna; apenas o pai, a madrasta e os avós paternos. O laudo dizia que eu praticava alienação parental e sugeria esse tipo de inversão de guarda”, conta Cristiane.

Semanas depois, ela soube que a filha estava internada no hospital com meningite. O laudo do IML confirmou que a menina sofreu maus-tratos, o que agravou seu estado de saúde -- Joanna tinha queimaduras nas nádegas, além de cicatrizes e feridas pelo corpo.

O pai da menina, André Marins, foi indiciado pela polícia por tortura -- à época, ele se disse surpreso com o resultado do inquérito -- e denunciado pelo Ministério Público pelos crimes de tortura e homicídio qualificado por meio cruel. Ele chegou a ser preso e foi solto meses depois. Em 2020, a Justiça determinou que ele não irá a júri popular.

“Prometi para a Joanna no túmulo que eu ficaria viva todos os dias para ver a Justiça pra ela”, diz Cristiane. “Estou viva e esperando Justiça, sempre”.

 

Fonte: g1

 

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