Uma
comunista surpreende o Chile
No dia
29 de junho, ocorreram eleições primárias no Chile, marcando o início do
processo que culminará na escolha de um novo governo no final de 2025. Pela
primeira vez desde a implantação do sistema de primárias, a direita tradicional
decidiu não participar — o que exigiria um acordo entre suas diferentes facções
—, e apenas o progressismo foi às urnas. [Na primeira pesquisa após as primárias, realizada pelo
Panel Ciudadano, Jeannette Jara tem 26% das intenções de voto, superando o
ultradireitista José Antonio Kast (23%) e a direitista Evelyn Matthei].
Com um
sistema de voto voluntário que excluía apenas os militantes formais dos
partidos que não participaram, a aliança Unidade pelo Chile inscreveu quatro
candidaturas: Jeannette Jara (Partido Comunista e Ação Humanista), Gonzalo
Winter (Frente Ampla), Carolina Tohá (Partido pela Democracia, Partido
Socialista, Partido Liberal e Partido Radical) e Jaime Mulet (Federação
Regionalista Verde Social).
Logo
após as inscrições, a ex-ministra do Interior Carolina Tohá saiu na frente, com
o dobro a intenção de voto dos concorrentes, com um nível de reconhecimento
público próximo a 80%, segundo as principais pesquisas. A representante da
coalição Socialismo Democrático começou sua carreira política nos protestos
contra Augusto Pinochet na Universidade do Chile e foi uma das fundadoras do
Partido pela Democracia (PPD). Trabalhou como subsecretária no governo de
Ricardo Lagos e, nos anos seguintes, atuou como deputada, ministra e prefeita
da comuna de Santiago.
Filha
de José Tohá, ministro do Interior de Salvador Allende, cresceu exilada no
México após o assassinato do pai e, 50 anos depois, ocuparia o mesmo cargo: sua
longa experiência no serviço público foi requisitada pelo governo de Gabriel
Boric para reestruturar seu gabinete em meio a uma crise de segurança sem
precedentes e com níveis de medo “os mais altos do mundo”. Embora a gestão de
Tohá tenha conseguido reverter o aumento na taxa de homicídios e aprovar mais
de 60 leis — incluindo a criação do Ministério da Segurança Pública —, sua
candidatura não conseguiu se distanciar dos problemas nessa área.
A
campanha de Tohá tentou se distanciar da gestão do governo do qual fez parte
até poucas semanas atrás, recorrendo a técnicos da era da Concertação (coalizão
de centro-esquerda de socialistas e democratas-cristãos que liderou a transição
pós-ditadura) e explorando seus atributos de liderança firme. No entanto, sua
estratégia de se diferenciar do Frente Ampla e do Partido Comunista resultou em
discussões pouco relevantes para a maioria dos eleitores.
Isso
contrastou com a campanha de Jara, que adotou um estilo empático e evitou
polêmicas com seus concorrentes. Para vencer, Jeannette Jara partiu do
princípio de que apenas 34% da população a conhecia no início da campanha e
focou todos os esforços em se tornar conhecida.
Natural
do bairro El Cortijo (Conchalí), na periferia de Santiago, a candidata cresceu
na “mediagua” (como são chamadas as moradias de emergência no Chile) da avó,
enquanto frequentava a escola pública.
Quando
os debates televisivos e a opinião pública focaram em seu militantismo
comunista, Jara conseguiu se distanciar parcialmente de sua filiação
partidária, explicitando as diferenças com a liderança do partido de forma
cortês e descontraída, enquanto concentrava sua estratégia digital em partes de
sua biografia direcionadas ao público jovem.
No
Chile, como aponta uma pesquisa de Nicolás Angelcos, em vez da dicotomia
esquerda-direita, os setores populares tendem a avaliar seus representantes por
sua proximidade, e os políticos são especialmente penalizados quando vivem em
bairros privilegiados e parecem defender interesses próprios. Num contexto de
baixo entusiasmo popular pelas primárias, Jara entendeu que seu crescimento
dependia de evitar as complexas interpelações de Winter e Tohá, enquanto sua
origem humilde contrastava naturalmente com a de suas rivais. Foi assim que ela
conquistou o apoio do independente Matías Toledo, prefeito de Puente Alto, uma
das comunas mais populosas de Santiago.
Mas as
estratégias que consolidaram o apoio majoritário do progressismo a Jara só
funcionaram devido a seus feitos como ministra do Trabalho e Previdência.
Indicada por Boric e peça fundamental de seu Comitê Político no governo, Jara
aprovou a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, o aumento do
salário mínimo (hoje o mais alto da América Latina) e a maior reforma
previdenciária em 43 anos (após três governos consecutivos fracassarem na
tentativa). Esse último ponto ilustra sua habilidade de negociação política,
pois a reforma foi apoiada por parte da direita tradicional no Parlamento,
enquanto era criticada pelo ex-pré-candidato comunista Daniel Jadue — derrotado
por Boric em 2021 —, que a considerou tímida.
As
divergências com o ex-rival de Boric e até com o presidente do PC, Lautaro
Carmona, foram constantes durante a campanha. No final da campanha, Carmona
negou violações de direitos humanos na Venezuela mencionadas por Jara, chamou
Cuba de “democracia avançada” e sugeriu um terceiro processo constituinte — o
que a candidata desmentiu imediatamente (após duas constituições rejeitadas em
plebiscito, poucos chilenos querem ouvir falar em nova convenção).
“A
vitória de Jara nas primárias é o triunfo de uma liderança pessoal notável e
também das novas gerações comunistas pavimentadas por Guillermo Teillier no PC,
que amadureceram politicamente, adquirindo habilidades de gestão estatal e
cultura de coalizão nos governos de [Michelle] Bachelet e Boric”, explicou o
historiador Alfredo Riquelme, autor do livro Ocaso Vermelho: O
comunismo chileno entre ditadura e democracia (2009), ao jornal La
Tercera.
Em
resumo, Jara – que procurou deixar de lado a simbologia do PC na campanha –
conseguiu não se envolver em discussões internas com seus concorrentes de
centro-esquerda e, ao mesmo tempo, contornar as tentativas da direção do
partido de impor sua linha ideológica. Dessa forma, conseguiu focar no
essencial: consolidar atrás de si a maior parte da base de apoio do governo
Boric. Com isso, conseguiu encurralar o próprio candidato da Frente Ampla, a
força política do presidente, unificada em um único partido no final de 2024:
Winter ficou relegado a apenas 9% dos votos.
Próximo
colaborador de Boric antes que este chegasse ao Palácio de La Moneda, durante
seu mandato como deputado Winter aproveitou sua habilidade discursiva para
assumir o papel de espadachim nos principais meios de comunicação e
especialmente nas redes sociais. Mas desta vez, em vez de “defender os pontos”
do governo, sua campanha optou por evitar ser o candidato da continuidade para
se conectar com as frustrações de sua própria base.
Nessa
linha, a campanha da Frente Ampla reabriu a discussão sobre o ciclo de governos
da Concertação, do qual Tohá foi uma figura relevante. Mas enquanto se
intensificava o embate entre Tohá e Winter sobre a interpretação de um período
que terminou há 16 anos, Jara já havia fincado sua bandeira com força. Sua
vitória esmagadora com mais de 60% dos votos só é comparável ao triunfo de
Michelle Bachelet na primária presidencial de 2013, quando obteve 73% das
preferências.
O dado
mais importante de uma eleição primária para prever as gerais é a participação.
Embora o comparecimento de 1.420.435 eleitores tenha sido menor que o
registrado na primária entre Boric e Jadue em 2021, superou amplamente a
participação da direita em suas primárias de 2013 e 2021. E a votação pessoal
de Jara ficou a apenas 2.000 votos de alcançar a votação de Sebastián Piñera na
primária do Chile Vamos em 2017, após a qual foi eleito presidente da
República.
De
qualquer forma, a comparação com a participação em primárias anteriores deve
considerar que tanto o primeiro quanto o segundo turnos presidenciais ocorrerão
com o sistema de voto obrigatório, que incorporou mais de 3 milhões de
eleitores que antes não votavam. Em outras palavras, Jara precisará triplicar
sua votação para chegar ao segundo turno presidencial, o que impõe grandes
desafios de negociação no campo progressista e o enfrentamento de uma forte
campanha anticomunista contra ela.
Nestas
primárias, a direita não foi o único ator que se autoexcluiu das eleições.
Apesar de ter participado da aliança eleitoral progressista nas últimas
eleições locais, o Partido Democrata Cristão decidiu se afastar diante da
possibilidade de ter que apoiar uma candidata comunista. O partido não faz
parte da aliança governista, mas tem sido um apoio fundamental de Boric no
Congresso. Embora a votação democrata-cristã tenha caído significativamente nas
últimas décadas, o longo caminho que a Unidade pelo Chile precisará percorrer
para chegar ao segundo turno deve incluir um entendimento com os setores
moderados reticentes.
Jara já
adiantou que tentará seduzir a Democracia Cristã. Há 20 anos, o Chile vive uma
situação hoje mais comum na região: quase nenhum governo democrático consegue
passar a faixa presidencial a outro do mesmo espectro político. Desse ponto de
vista, a direita – que lidera as pesquisas – está melhor posicionada para as
eleições de 16 de novembro próximo.
A
oficialização de Jara como candidata do progressismo chileno pode ter efeitos
díspares no campo das direitas. Por um lado, José Antonio Kast (Partido
Republicano) e Johannes Kaiser (Partido Nacional Libertário) – que busca
repetir o fenômeno Javier Milei na Argentina – poderiam radicalizar seu
discurso contra a esquerda, atribuindo a herança do comunismo no mundo a todos
os setores democráticos. Por outro lado, Evelyn Matthei poderia tentar ocupar o
centro político. Favorita nos últimos meses, a candidata da União Democrata
Independente (UDI) teve que enfrentar problemas em sua campanha e o desgaste de
liderar as pesquisas por muito tempo, e hoje luta contra a ameaça persistente
de Kast, que chegou a superá-la nas pesquisas.
O
desafio de Jara é chegar ao segundo turno e, nesse caso, tentar reduzir a
vantagem da direita. Embora o objetivo máximo do progressismo seja repetir o
governo, o objetivo mínimo é que a direita não obtenha 4/7 das cadeiras
parlamentares, o que lhe permitiria reformar a Constituição. Para isso, a
vitória de Jara nas primárias deixa algumas lições úteis.
¨
Quem é Jeannette Jara, a comunista candidata à
presidência do Chile? Por Ana Prestes
Pela
primeira vez, uma comunista vai liderar um conjunto de partidos progressistas e
de esquerda nas eleições presidenciais chilenas, que ocorrerão em 16 de
novembro deste ano. Jeannette Jara, dirigente do PCCh e ex-Ministra do Trabalho
do Governo Boric apoiada pelos partidos Esquerda Cristã e Ação Humanista,
venceu as primárias do último dia 29 de junho. Ela enfrentará José Antonio
Kast, do Partido Republicano, e Evelyn Matthei, da União Democrática
Independente (UDI), apoiada pela Renovação Nacional.
As
primárias partidárias e de frentes de partidos são opcionais no Chile,
diferente das primárias obrigatórias da Argentina. No domingo 29 de junho, um
milhão e meio de pessoas (perto de 10% dos habilitados para votar) foram às
urnas. Enquanto Jara alcançou amplo apoio, com pouco mais de 60% dos votos
(pouco mais de 800 mil votos), sua principal concorrente, Carolina Tohá, do
Partido pela Democracia (PPD), que contou com o apoio do Partido Socialista
(PS), do Partido Radical (PR) e da Democracia Cristã (DC) teve 28% dos votos.
Tohá carrega o sobrenome do paí, José Tohá, ministro do governo golpeado de
Salvador Allende, assassinado pela ditadura em março de 1974. O candidato do
partido do Boric, Frente Amplio, foi o deputado Gonzalo Winter, e obteve 9% dos
votos. Jaime Mulet, do Partido Regionalista Verde Social, ficou com 2,7% dos
votos.
Segundo
Mario Amorós, biógrafo da gigante Gladys Marín, o triunfo de Jara é
historicamente enorme se considerarmos que desde 1932 somente em duas ocasiões
militantes comunistas participaram de uma corrida presidencial: Elías Lafertte,
em 1932, e Gladys Marín, em 1999. E nunca como líderes de uma frente de
partidos de esquerda. Em 2021, o ex-prefeito da Recoleta, Daniel Jadue,
participou das primárias presidenciais, mas foi derrotado por Gabriel Boric,
que se tornou o candidato da esquerda. Hoje, Jadue encontra-se em prisão
domiciliar em um absurdo caso de lawfare.
Jeannette
nasceu em 1974 na comuna Conchalí, na região metropolitana de Santiago, em uma
família de pai operário e mãe dona de casa. Foi a mais velha de cinco irmãos e
a primeira da família a ter ensino superior, titulada pela Universidade de
Santiago, em direito e administração pública. Desde muito jovem, 15 anos, se
integrou às Juventudes Comunistas do Chile (JJCC) e foi presidente da Federação
de Estudantes da sua universidade em 1997. Teve cargos políticos no governo
Bachelet, como vice-ministra do Desenvolvimento Social e no governo Boric, como
ministra do Trabalho. Suas principais conquistas foram a elevação do salário
mínimo, a redução da jornada de trabalho para quarenta horas semanais e a
reforma da previdência.
As
inscrições para candidaturas presidenciais vão até o dia 16 de agosto e é
possível que surjam outras candidatas ou candidatos do centro e mesmo do campo
da esquerda. Por isso, os primeiros dias de ação da nova candidata tem sido a
costura da frente de esquerda em torno do nome dela. No dia 2 de julho ela
reuniu uma série de partidos, no que ficou estabelecido como uma mesa política
de coordenação da Unidade por Chile, com partidos de esquerda, centro-esquerda,
progressistas e independentes. Fazem parte desta coordenação os partidos Frente
Ampla, Partido Socialista, Federação Regionalista Verde Social, Partido pela
Democracia, Partido Radical, Partido Comunista e o Partido Ação Humanista.
Tanto
em seu discurso após os resultados das primárias como na reunião dos partidos e
demais integrantes da frente política Unidade por Chile, Jeannette apontou para
Salvador Allende, Gladys Marín e Michelle Bachelet como seus referenciais na
política. Ao que Amorós acrescentou todos os líderes históricos do PCCh, ao
dizer que o partido de Recabarren e Lafferte, de Pablo Neruda e Francisco
Coloane, de Violeta Parra e Víctor Jara, de Luis Corvalán e Gladys Marín
alcançou um triunfo que sacode o país em tempos de genocídio em Gaza, do
imperialismo e da extensão da ameaça da ultradireita. O grande desafio será
debater com a população os porquês das debilidades do governo Boric e renovar a
esperança na esquerda em um país que viveu tempos de rebeldia e de frustração
no seu persistente enfrentamento ao neoliberalismo legado pela ditadura
pinochetista.
Fonte: Por
Tomás Leighton, no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues, em Outras Palavras/Opera
Mundi

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