Por
que câncer colorretal, que matou Preta Gil, cresce 'assustadoramente' em
pessoas de até 50 anos
"Assustador".
"Preocupante". "Problema global". "Alerta
mundial". Esses foram alguns dos termos usados por médicos entrevistados
pela BBC News Brasil para descrever o crescimento dos casos de câncer
colorretal na população mais jovem, com menos de 50 anos.
No
domingo (20), a cantora e apresentadora Preta Gil morreu aos 50 anos após
complicações de câncer colorretal. No caso dela, o tumor foi descoberto em
janeiro de 2023, quando tinha 48 anos.
Esse
tipo de câncer, que afeta o intestino grosso (o cólon) e o reto, está entre os
mais impactantes na saúde e na qualidade de vida. E, nas últimas décadas, uma
tendência estranha chamou a atenção dos especialistas.
Em
várias partes do mundo, os casos de câncer colorretal permaneceram
relativamente estáveis entre os mais velhos — que proporcionalmente continuam a
representar a maioria dos acometidos pela enfermidade.
No
entanto, as taxas de casos desse tumor começaram a subir com rapidez entre
indivíduos com menos de 50 anos.
"Se
você comparar os números atuais com a taxa que tínhamos há 30 anos, alguns
trabalhos chegam a apontar um aumento de 70% na incidência de câncer colorretal
em pacientes jovens", resume o oncologista clínico Paulo Hoff, presidente
da Oncologia D’Or.
Essa
diferença nas estatísticas já provocou algumas mudanças de saúde pública: nos
Estados Unidos, um dos primeiros países a detectar o fenômeno, a idade mínima
para a realização de exames preventivos que flagram o tumor colorretal
precocemente (sobre os quais falaremos adiante) caiu de 50 para 45 anos.
No
Brasil, alguns dados preliminares obtidos pela reportagem também apontam para
um crescimento da doença numa idade precoce.
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O que dizem os números
Um
relatório da Sociedade Americana de Câncer divulgado no início de 2023 calculou
que 20% dos diagnósticos de tumor colorretal realizados nos EUA em 2019
aconteceram em pacientes com menos de 55 anos.
Essa
taxa é o dobro do que era observado em 1995. Os autores do documento calculam
que as taxas de detecção dessa enfermidade em estágio avançado cresceram cerca
de 3% ao ano entre indivíduos que ainda não completaram 50 anos.
Em
2023, as estimativas americanas apontam 19,5 mil casos e 3,7 mil mortes por
câncer colorretal entre os mais jovens.
Tendências
parecidas foram observadas em diversos países europeus, como o Reino Unido.
A BBC
News Brasil consultou o Instituto Nacional de Câncer (Inca) para descobrir se
um cenário parecido também acontece no país.
Para
responder os questionamentos da reportagem, a epidemiologista Marianna Cancela,
pesquisadora titular da Vigilância e Análise de Situação da Coordenação de
Prevenção e Vigilância (Conprev) do Inca, analisou as taxas ajustadas por idade
da incidência de câncer colorretal no Brasil entre 2000 e 2017.
"No
caso do câncer colorretal, é verdade que há um aumento no Brasil, mas isso
ainda ocorre em todas as faixas etárias", diz ela.
"A
gente observa que, no ano 2000, havia em torno de 5 casos desse tumor por 100
mil habitantes entre homens de 20 a 49 anos. Em 2017, tivemos cerca de 6 casos.
Isso é algo estatisticamente significativo", calcula a especialista.
"Entre
as mulheres mais jovens, também observamos essa tendência de aumento, mas ela
ainda não é significativa do ponto de vista estatístico."
Em
outras faixas etárias — entre 50 e 59 anos e acima dos 60 anos — também há um
crescimento, numa magnitude maior (uma vez que a doença se torna mais comum
conforme envelhecemos).
Cancela
ainda destacou duas pesquisas que ela publicou recentemente sobre o tema. Numa
delas, o grupo de cientistas analisou se o Brasil será capaz de cumprir as
metas da ONU de redução das mortes prematuras por câncer.
Embora
em nenhum dos tumores o Brasil deva alcançar os objetivos traçados pelas Nações
Unidas, a maioria deles terá uma redução significativa na mortalidade quando
comparados os períodos de 2011-2015 e 2026-2030.
A única
exceção da lista é justamente o câncer colorretal, que possui uma previsão de
crescimento nos óbitos no futuro, tanto para homens como para mulheres.
Um
segundo artigo publicado por Cancela mostra como esse tumor vem ganhando
protagonismo no Brasil. Ela analisou a quantidade de anos de vida produtiva que
são perdidos para vários tipos de câncer.
Entre
2001 e 2005, o câncer colorretal era o sétimo tumor mais impactante para os
homens, seguindo esse critério — atrás de pulmão/traqueia; estômago;
cérebro/sistema nervoso central; leucemia; boca e garganta; esôfago.
Já em
2026-2030, ele ocupará a terceira posição do ranking, perdendo apenas para
estômago e pulmão/traqueia.
Entre
as mulheres, os tumores colorretais estavam na sexta posição em 2001-2005
(atrás de mama; colo de útero; cérebro; pulmão; leucemia). Em 2026-2030, a
doença estará no terceiro lugar (atrás apenas de mama e colo de útero).
Paulo
Hoff observou uma tendência parecida do Instituto do Câncer do Estado de São
Paulo (Icesp), do qual ele é diretor.
"Em
2019, publicamos um trabalho em que mostramos claramente um aumento substancial
na chegada de pacientes mais jovens com câncer colorretal", diz o médico,
que também é professor titular de Oncologia da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (FMUSP).
"Num
período de 10 anos, essa elevação tinha sido na ordem de 15%. Mas é muito
provável que esse número esteja subestimado", calcula o oncologista.
O
médico Alexandre Jácome também realizou um levantamento sobre o tema na
Oncoclínicas, onde ele atua como líder nacional de oncologia gastrointestinal.
"Nós
não encontramos um aumento significativo da incidência desse tumor nos
pacientes jovens em paralelo a uma estabilização entre os mais velhos, como
acontece nos EUA", destaca ele.
Os
especialistas trabalham agora para analisar com mais profundidade todas as
estatísticas disponíveis no Brasil — e avaliar se é necessário tomar alguma
atitude para proteger essa população mais jovem contra o câncer colorretal.
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O que explica o fenômeno?
Para o
oncologista Samuel Aguiar Jr., líder do Centro de Referência de Tumores
Colorretais do A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo, os dados representam
um "alerta mundial".
"Vemos
essa realidade no nosso dia a dia, e é assustador. Já virou normal ver pessoas
jovens, de 35 ou 40 anos, chegarem no consultório com o diagnóstico desse
tumor", relata ele.
"Esse
cenário preocupa, pois o impacto do câncer colorretal numa pessoa jovem é muito
grande", concorda Jácome, que também é membro do Comitê de Tumores
Gastrointestinais Baixos da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc).
"Falamos
de indivíduos que estão na idade de se estabilizar no emprego, de casar, de ter
o primeiro filho… Ou seja, há uma série de sonhos que ainda não foram
realizados.".
Mas,
afinal, o que explica esse cenário? Por que os tumores colorretais estão
subindo tanto entre jovens, a ponto de chamar a atenção de especialistas do
mundo todo?
"Existem
algumas hipóteses e teorias, mas nenhuma delas foi confirmada até o
momento", responde Hoff.
"A
primeira delas está relacionada à mudança dramática que ocorreu nas últimas
décadas, em que nós saímos de uma civilização agrária e rural para uma
sociedade predominantemente urbana. Isso alterou vários aspectos da vida, com o
avanço de uma dieta baseada em produtos ultraprocessados, com menor presença de
alimentos naturais, e mais sedentarismo", contextualiza o médico.
"Se
essa hipótese se confirmar, estamos diante de um quadro alarmante, uma vez que
os produtos industrializados se tornaram a base da alimentação moderna,
inclusive da merenda escolar das crianças", comenta Aguiar Jr.
Sabe-se
que o sobrepeso e a obesidade são fatores que estão relacionados a esse tumor —
e os quilos extras são um problema que afeta cada vez mais pessoas.
Além
dos aspectos que envolvem o estilo de vida, os pesquisadores também levantam
outras suspeitas.
"Também
não podemos descartar o impacto de algumas práticas, como o uso indiscriminado
de antibióticos, seja diretamente para tratar as pessoas ou na produção
pecuária, em aves e bovinos", destaca Jácome.
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O que fazer?
Como
mencionado no início da reportagem, as mudanças nas estatísticas sobre o câncer
colorretal nos EUA modificaram os programas de detecção precoce no país.
A
partir de 2021, as autoridades americanas passaram a indicar a realização de
exames preventivos para todo mundo com mais de 45 anos — antes, esses testes
eram preconizados apenas para quem estivesse acima dos 50.
No
Brasil, não existe nenhum esquema público de rastreamento do câncer colorretal
(como a mamografia para o câncer de mama ou o papanicolau para o câncer de
útero), mas o Inca está debatendo um programa específico para essa doença, que
deve ser lançado nos próximos meses.
"Eu
sei que essas discussões estão ocorrendo, porque temos notado um aumento na
incidência e uma necessidade de rastreamento", diz Cancela.
No caso
específico desse tumor, existem dois testes principais que podem ser
utilizados: o exame de sangue oculto nas fezes e a colonoscopia.
Como o
próprio nome indica, a primeira opção investiga se há sangue no cocô de um
indivíduo. Embora a presença do líquido vermelho ali não seja um sinal direto
de câncer (pode ser um indicativo de uma úlcera mais simples, por exemplo), ela
levanta um sinal amarelo para uma investigação mais aprofundada.
Já a
colonoscopia envolve inserir pelo ânus uma cânula com câmera na ponta. Essa
abordagem permite que o especialista visualize em tempo real o interior do
intestino e detecte algo de anormal nas paredes desse órgão.
Durante
esse procedimento, também é possível remover pólipos, lesões que podem se
desenvolver e virar um câncer no futuro.
Mas
qual dos testes é melhor? Depende do ponto de vista.
"A
colonoscopia é o exame padrão ouro, porque tem uma sensibilidade maior, ou
seja, uma capacidade superior de detectar as lesões com acurácia", aponta
Jácome.
"Além
disso, ela já é capaz de remover na mesma hora algumas dessas lesões",
complementa ele.
Mas
existem alguns problemas aqui, como a baixa disponibilidade de equipamentos e
profissionais capazes de fazer esse procedimento. Além disso, precisamos levar
em conta que esse teste exige toda uma preparação, o indivíduo fica sedado por
algumas horas e perde um dia de trabalho.
"É
praticamente impossível para qualquer país do mundo implantar um programa de
rastreamento do câncer colorretal baseado apenas na colonoscopia", defende
Hoff.
"O
exame de sangue oculto nas fezes é baratíssimo, fácil de fazer e, se realizado
uma vez ao ano, consegue detectar sinais precoces da doença, como
sangramentos", lista o oncologista.
"Mesmo
nos grandes programas de rastreamento populacional da Europa, que oferecem
gratuitamente a colonoscopia, a adesão das pessoas é baixíssima. Menos de 20%
da população realiza esse exame com periodicidade", calcula Aguiar Jr.
Seguindo
essa linha de raciocínio, o que os especialistas propõem é basicamente um
esquema de funil: o exame de sangue oculto nas fezes deveria ser indicado a
todo mundo com mais de 45 anos, como uma espécie de triagem.
Aqueles
que não apresentarem nenhuma alteração, estão liberados e voltam para um novo
check-up daqui a um ano. Já os indivíduos que tiverem a presença de sangue no
cocô devem ser encaminhados para uma avaliação mais aprofundada, com a
colonoscopia.
"Em
média, 5% da população vai ter algum achado no exame de sangue oculto nas fezes
e precisará de uma colonoscopia. Ou seja, essa estratégia é capaz de adiar esse
segundo exame para os 95% restantes", estima Aguiar Jr.
E que
fique claro: o achado de sangue nas fezes não significa que esses 5% estão com
câncer. Isso apenas sinaliza a necessidade de uma avaliação mais aprofundada,
segundo os especialistas.
Na
visão dos médicos, essa seria uma maneira de economizar recursos e só fazer
testes mais caros naquelas pessoas que precisam.
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Um cenário (cada vez mais) otimista
Apesar
da preocupação relacionada ao crescimento de casos entre os mais jovens, a boa
notícia é que o prognóstico do câncer colorretal tem melhorado.
Isso só
foi possível graças aos avanços nas técnicas cirúrgicas, que são a primeira
escolha de tratamento nos casos iniciais. Também foram lançados remédios que
ajudam a lidar com a enfermidade nos quadros mais avançados, como algumas
drogas que pertencem à classe dos quimioterápicos e dos imunoterápicos.
"Quando
esse tumor é detectado precocemente, as chances de cura ultrapassam os
95%", diz Hoff.
Nos
casos mais graves, em que a doença já se espalhou para outras partes do
organismo num processo conhecido como metástase, a taxa de sucesso diminui —
mas melhorou consideravelmente nas últimas décadas.
"Mesmo
quando não é possível buscar a cura, a expectativa de vida do paciente com esse
tumor é de três a quatro vezes mais alta do que tínhamos há 20 anos”",
avalia Hoff.
"Nos
anos 1990, ter o diagnóstico de câncer colorretal metastático era praticamente
uma sentença de morte. Hoje temos um número considerável de pacientes que se
curaram. Há uma mudança total de perspectiva", diz o médico.
Por
fim, Aguiar Jr. sugere que todas as pessoas fiquem atentas aos sintomas de que
algo não vai bem no intestino — independentemente da idade que tenham.
"Se
você está com sangue nas fezes, apresenta alguma alteração no ritmo intestinal,
sofre com cólicas abdominais ou qualquer outro incômodo no sistema digestivo, é
importante procurar um médico e investigar."
"Esses
sintomas não devem nunca ser negligenciados — mesmo que você seja jovem",
conclui ele.
Fonte:
BBC News Brasil

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