Justiça
fiscal: A bizarra desigualdade no Brasil
As
propostas de justiça tributária apresentadas pelo governo Lula despertaram
forte reação dos setores conservadores da sociedade brasileira, como no
Congresso e na Grande Mídia. Em uma manobra articulada entre as presidências da
Câmara e do Senado o decreto do Executivo sobre o IOF foi derrubado, algo que
não ocorria desde 1992.
Após
análise da Controladoria Geral da União, a derrubada do decreto chegou até o
STF e o governo lançou diversas campanhas relacionadas a temática da justiça
social.
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Mas afinal, qual é o tamanho da desigualdade no Brasil?
Podemos
considerar que vivemos em um país de contrastes, já que enquanto somos a oitava
maior economia do mundo, estamos entre os dez países mais desiguais do planeta,
o que revela que o crescimento da economia tradicionalmente não é compartilhado
pela maioria da população brasileira. Vivemos em um país no qual o 5% mais rico
detêm a mesma fatia de renda que os demais 95% da população (OXFAM, 2016).
No
Brasil, “seis bilionários brasileiros concentram uma riqueza equivalente à
da metade mais pobre da população nacional” (OXFAM, 2017). Ou seja, se
você reunir todo o capital dos 100 milhões de brasileiros com menor riqueza,
não chegará à fortuna destas 6 pessoas. Para termos uma ideia do poder
econômico deste seleto grupo, se estes bilionários gastassem um milhão de reais
por dia, juntos, levariam 36 anos para esgotar o equivalente ao seu patrimônio
(OXFAM, 2017).
A
grande fortuna dos super-ricos brasileiros também pode ser percebida por meio
da concentração de terras. Segundo relatório da Oxfam (2016) “menos de 1% das
propriedades agrícolas no país detêm quase metade da área rural brasileira”. Ou
seja, embora as propriedades com mais de 1.000 hectares representem apenas 0,9%
dos estabelecimentos rurais, elas concentram 45% do total da área agricultável
existente no Brasil” (OXFAM, 2016). Por outro lado, as pequenas propriedades
com até 10 hectares correspondem a 47,8% dos estabelecimentos, mas ocupam
apenas 2,3% da área rural” (OXFAM, 2016).
As
razões para uma concentração fundiária tão absurda são históricas e remontam a
políticas implementadas tanto no período em que o território era uma colônia de
Portugal, quanto em outras que foram executadas após a independência do Brasil.
Podemos
citar aqui a divisão da colônia em capitanias hereditárias e a distribuição de
sesmarias que deram origem aos primeiros latifúndios do território que hoje
constitui o Brasil. Durante séculos estes latifundiários ampliaram suas
fortunas por meio do uso da mão-de-obra escrava e suas terras por meio do
ataque e do genocídio de populações indígenas.
Em
1850, quando foi proibido o tráfico negreiro, o Estado brasileiro atuou na
atração de imigrantes europeus e na publicação da Lei de Terras. A referida lei
proibiu o acesso à terra por meio da posse, medida fundamental para garantir
que somente os proprietários de terra continuariam possuindo o monopólio sobre
a mesma. Isso porque, as pessoas escravizadas estavam automaticamente impedidas
de possuírem terras, por serem considerados eles próprios propriedades dos
latifundiários brasileiros. Por outro lado, os imigrantes, legalmente livres,
não possuíam os recursos econômicos necessários para adquirir terras. Assim
sendo, todos os trabalhadores foram excluídos do acesso à terra, o que
instituiu o monopólio daqueles latifundiários privilegiados desde o período
colonial.
Por
volta de 1870, o Estado brasileiro ainda criou a imigração subvencionada,
política pública pela qual os recursos nacionais eram destinados para o
pagamento da viagem de imigrantes europeus para trabalharem nas fazendas de
café. Tal política significou o desvio de recursos públicos para favorecer uma
elite localizada regionalmente. Isso porque, cada trabalhador recebido em uma
fazenda representava uma renda capitalizada recebida pelo latifundiário que não
precisava mais investir seus recursos na atração de mão-de-obra, podendo
utilizar este dinheiro para comprar mais terras, ampliando sua fortuna
(MARTINS, 2010).
Porém,
não foi apenas no período imperial em que o Estado brasileiro criou políticas
públicas para enriquecer a elite brasileira à revelia dos interesses populares.
Podemos citar a política de valorização do café, surgida no período
republicano, segundo a qual os recursos públicos eram destinados a compra do
café excedente, transferindo riqueza do povo brasileiro para as mãos de uma
pequena elite, tradicionalmente privilegiada e favorecida pelo poder público.
Nem mesmo a transição da república oligárquica para a Era Vargas foi
acompanhada de mudanças significativas no que se refere a presença de políticas
públicas voltadas para os interesses das elites brasileiras, sejam elas
agrárias ou urbanas.
Podemos
dizer o mesmo em relação ao período da Quarta República Brasileira (1945-1964),
no qual as principais propostas de justiça social foram dificultadas pelo
Congresso e pela atuação da Grande Mídia, sempre atuantes na manutenção dos
privilégios dos milionários brasileiros. Por sua vez, o período da Ditadura
Civil-Militar foi marcado por uma gigantesca concentração de renda que permitiu
às elites brasileiras multiplicarem suas fortunas às custas da espoliação do
povo. Já a redemocratização foi marcada pela tentativa de implementação de um
Estado de bem-estar social por meio da promulgação da Constituição de 1988,
porém, manobras políticas ocorridas ao longo da história, até os dias atuais,
impediram a consolidação da justiça social estabelecida pela Constituição
Cidadã.
Embora
o discurso da meritocracia seja historicamente difundido no país por políticos
e meios de comunicação financiados por estes bilionários, não é possível
sustentar que existe algum tipo de justiça no acúmulo destas fortunas, já que
60% da riqueza dos bilionários foi herdada ou adquirida através de favoritismo,
corrupção ou monopólio do poder (OXFAM, 2025). Mas como estes mecanismos
que permitem este grande acúmulo de fortuna funcionam na prática?
Existem
numerosos exemplos de empresas de bilionários brasileiros e estrangeiros que
foram beneficiadas com contratos públicos que permitiram a estas famílias
acumular verdadeiras fortunas. Muitos destes contratos públicos apresentaram
indícios de fraudes e leniência de agentes públicos para favorecer determinadas
empresas. Em 2024, por exemplo, o TCU apontou superfaturamento e indícios de
fraudes em contratos de órgãos federais na gestão Bolsonaro envolvendo
licitações na compra de blindados, em obras de pavimentação e serviços de
publicidade.
A
prática do favoritismo também fica evidente na atuação do Congresso Nacional
que dificulta a aprovação da isenção de impostos para quem ganha até
R$5.000,00, mas é favorável a distribuição de mais de 800 bilhões em isenções
fiscais para empresas de milionários e bilionários brasileiros.
Outro
exemplo que nos ajuda a entender como poucas famílias conseguem acumular
riquezas tão desproporcionais é a distribuição do crédito rural no Brasil. Isso
porque as grandes propriedades acessam cerca de 43% de todo o crédito rural
oferecido, enquanto os pequenos produtores, que correspondem a mais de 80% dos
estabelecimentos, ficam com uma parcela que varia, apenas, entre 13% e 23%” do
financiamento disponível (OXFAM, 2016).
Embora
os pequenos produtores sejam responsáveis por garantir mais de 70% dos
alimentos que chegam às mesas da população brasileira, os verdadeiros
beneficiados com o crédito rural são os bilionários que cultivam de acordo com
os interesses do mercado internacional, visando a exportação.
Estes
são apenas alguns dos exemplos que nos ajuda a entender como uma porcentagem
tão pequena na população brasileira acumulou tanta terra e tantas fortunas. É
possível perceber que todo este acúmulo esteve historicamente muito mais
relacionado ao recebimento de recursos provenientes de políticas públicas do
que a alguma capacidade extraordinária na gestão de seus negócios. As relações
destes bilionários com o poder político permitiram chegarmos a uma situação em
que o Estado brasileiro atua muito mais como um financiador das grandes
fortunas do que como indutor do desenvolvimento econômico e social do país.
Historicamente,
o financiamento de campanhas políticas e de grandes veículos de comunicação por
parte destes bilionários constituiu e constitui, ainda hoje, um eficiente
instrumento de perpetuação de seus imensos privilégios. Isso porque o Congresso
Nacional vota sistematicamente contra políticas de justiça social e a favor
daquelas que transferem dinheiro público para elite, contribuindo para a
perpetuação de suas fortunas. Ao mesmo tempo, a Grande Mídia formula discursos
que visam impedir que a população perceba o tamanho da desigualdade brasileira
e do quanto o Congresso Nacional atua com foco na manutenção e na ampliação das
regalias dos super-ricos, em detrimento dos interesses populares.
Para
exemplificarmos como a defesa da fortuna dos bilionários brasileiros afeta a
sobrevivência da população brasileira, podemos citar alguns dados relacionados
a geografia da exclusão constituída a partir da desigualdade social brasileira.
A Mortalidade infantil na periferia de São Paulo é 23 vezes maior do que em
bairros nobres, conforme apontou o Mapa da Desigualdade em 2020. A idade média
ao morrer em Moema é 80,6 anos, enquanto que na Cidade Tiradentes é de 57,3
anos. Vale ressaltar que ambos os bairros ficam na cidade de São Paulo e que
apenas 27 km separam as duas regiões. Porém, se a distância em quilômetros é
pequena, em renda ela é gigantesca. E é justamente este abismo social que
separa populações tão próximas geograficamente que nos ajuda a entender como
aquelas que vivem em um bairro nobre podem viver, em média, 23 anos a mais do
que as que vivem na periferia.
Para
termos uma ideia de como a justiça social poderia transformar a vida dos
brasileiros comuns, se o PIB brasileiro (de 2024) fosse dividido igualmente
pelo número de habitantes cada família de 4 pessoas teria uma renda mensal de
R$18,415,81. Porém, como a riqueza e as terras estão concentradas nas mãos de
pouquíssimos brasileiros a realidade das famílias brasileiras está muito
distante da apresentada acima.
Diante
deste cenário e do impasse na aprovação da revisão do IOF e da taxação das
grandes fortunas cabe questionarmos: Como estas medidas poderiam
contribuir para a justiça tributária e para a diminuição das desigualdades no
Brasil?
Para
respondermos esta questão é necessário refletirmos sobre o que é o IOF, quem
paga tal imposto e qual a proposta do governo sobre o tema. O IOF nada mais é
do que um imposto que o governo cobra sobre algumas operações financeiras, como
por exemplo: operações de câmbio, de crédito e relacionadas a títulos ou
valores imobiliários.
A
proposta apresentada pelo governo Lula estabelece pequenos aumentos na alíquota
de operações de crédito para empresas, mantendo taxas menores para empresas
menores (Simples Nacional) e sem alterações para pessoas físicas. Além disso,
prevê aumentos para operações realizadas em cartão internacional e remessas de
capital ao exterior; e para planos de VGBL ou previdência com aportes mensais
acima de R$50 mil mensais. Por fim, o Executivo propôs taxar em 5% as Letras de
Crédito Imobiliário (LCIs) e as Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs), hoje
totalmente isentas de Impostos de Renda.
Como
podemos observar, todas estas medidas incidem apenas em operações financeiras
realizadas por milionários e bilionários, não tendo impacto naquelas realizadas
por brasileiros comuns. Tais medidas permitiriam maior arrecadação pelo
governo, contribuindo para a manutenção de serviços públicos em áreas
estratégicas para o bem-estar de toda a população, como saúde e educação. Além
disso, em um contexto em que o Congresso aprova mais de R$800 bilhões de
isenções para empresas de membros da elite, o reajuste do IOF torna-se
necessário para o ajuste das contas públicas, oneradas por políticas que
distribuem benesses para os mais ricos.
Outra
questão importante é compreendermos qual a importância da proposta de taxação
dos super-ricos enviada pelo governo Lula para a promoção de justiça
tributária, e como a mesma pode contribuir para a reversão de desigualdades
históricas existentes em nosso país.
O
Projeto de Lei 1087/2025, enviado em março para a Câmara, propõe que seja
fixada uma alíquota de até 10% sobre os rendimentos. Tal medida tem sido
divulgada como uma maneira de taxação dos super-ricos porque hoje, aqueles que
possuem renda mensal acima de R$1 milhão pagam, em média, apenas entre 2% e 3%
de impostos sobre seus rendimentos. Isso ocorre porque desde 1995 é vigente uma
verdadeira aberração fiscal brasileira, que é a isenção de impostos sobre
lucros e dividendos. Enquanto trabalhadores assalariados que ganham acima de
R$5.000,00 pagam 27,5% de Imposto de Renda sobre seu salário, milionários que
vivem de aplicações financeiras podem, segundo a lei, não pagar um mísero
centavo sobre sua renda (Centro de Estudos Tributários da Receita Federal, 2023).
A
proposição do Executivo visa corrigir as distorções apresentadas acima,
estabelecendo que os super-ricos, que ganham acima de R$50 mil mensais paguem
alíquotas que variam de 2,5% até 10% sobre rendimentos que hoje são totalmente
isentos. Convém pontuar que a alíquota máxima de 10%, que seria cobrada somente
àqueles com rendimento acima de R$1,2 milhões por ano, ainda é menos da metade
daquela que professores, enfermeiros e militares pagam no imposto de renda
retido diretamente em seus salários.
O
aumento de impostos para os super-ricos atingiria apenas 141 mil brasileiros,
justamente aqueles que são os mais privilegiados por nosso sistema tributário.
Em contrapartida, o projeto de lei permitiria a isenção de Imposto de Renda
para, ao menos, 10 milhões de brasileiros, além de viabilizar uma redução no
imposto pago para milhões de brasileiros que ganham entre mais de R$5.000,00 e
R$7.000,00. Em porcentagens, a proposta do governo aumentaria o imposto para
0,2% dos contribuintes para isentar ou reduzir para 14,5% da população.
Deste
modo, podemos perceber que medidas de justiça tributária poderiam representar
uma importante ferramenta para o combate das desigualdades brasileiras. A
retirada mínima de privilégios da pequena parcela da população, historicamente
favorecida por políticas públicas, permitiria ao Estado brasileiro criar as
condições necessárias para melhorar a qualidade dos serviços públicos, como os
de saúde e educação. Ao mesmo tempo, a isenção ou a diminuição de impostos para
milhões de brasileiros, prevista pelo Projeto de Lei, permitiria uma melhora
considerável na qualidade de vida destas pessoas.
Portanto,
a derrubada do decreto do Executivo sobre o IOF, embora tenha representado uma
difícil derrota para a busca por justiça social no país, pode significar um
marco importante para que a sociedade brasileira compreenda a necessidade de
exigir o fim dos privilégios dos bilionários brasileiros, concedidos às custas
do conjunto da população brasileira. A derrota da proposta do Executivo
escancarou a postura do Congresso e da Grande Mídia na defesa de menos de 1% da
população à revelia dos interesses de 99% de brasileiros, que sofrem com as
mazelas de um país injusto e desigual. Cabe a mídia independente e a sociedade
civil organizada fornecer os elementos para que esta temática seja debatida por
toda a população brasileira, oprimida pelos interesses de poucas famílias
historicamente privilegiadas e tradicionalmente indutoras do comportamento do
Congresso e da Grande Mídia.
Fonte:
Por Diogo Comitre e Mauricio Alfredo, em Outras Palavras

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