quinta-feira, 10 de julho de 2025

Francisco Fernandes Ladeira: Esquerda, enfim, pautou a agenda pública

Pelo menos desde a eleição presidencial de 2018, a extrema direita tem dominado a agenda pública nacional. Ou seja, os assuntos que a maioria das pessoas vão comentar em seus cotidianos, independentemente do posicionamento ideológico. Via de regra, a extrema direita leva a agenda pública para o campo moral, em que se sente mais confortável, aproveitando o conservadorismo de grande parte da população brasileira.

Por outro lado, a esquerda, tomada pelo identitarismo, corriqueiramente cai nessa armadilha. Ao invés de denunciar que o mantra bolsonarista “conservador nos costumes” é uma cortina de fumaça para seu verdadeiro propósito, “liberal na economia”, lança-se em empreitadas também moralistas, como a cultura do cancelamento e as tentativas de mudanças arbitrárias na linguagem.

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No entanto, nos últimos dias, vídeos feitos por Inteligência Artificial (IA), exaustivamente compartilhados em perfis progressistas nas redes sociais, têm denunciado que o Congresso Nacional, dominado pela direita, está a serviço dos interesses da elite econômica. Em bom português, defende o que é bom para o rico e, consequentemente, ruim para o pobre. O velho Marx chamava isso de luta classe: o principal antagonismo em uma sociedade capitalista. E não as diferenças entre identidades, como querem os anteriormente mencionados identitários. É a esquerda voltando às suas origens materialistas.

O caráter didático, indo direto ao assunto, sem academicismos e malabarismos retóricos, explicando a quem, de fato, o congresso atende, fez com que os vídeos feitos com IA alcançassem um público amplo. Usando termos atuais: viralizaram e furaram bolhas. Pautaram a tão almejada agenda pública.

A Rede Globo, porta-voz dos ricos, sentiu o golpe. Na última quinta-feira (3/7), o principal noticiário da emissora, o Jornal Nacional, dedicou quase sete minutos para atacar o governo, o PT, a esquerda e os vídeos supracitados.

Na matéria em questão, um panfleto da Faria Lima, travestido de “jornalismo profissional”, contanto com a “participação especial” de parlamentares bolsonaristas, denunciar o legislativo inimigo do povo brasileiro virou “ataque direto ao Congresso Nacional”. Pedir justiça tributária é “radicalização”. A derrubada do decreto sobre o IOF no parlamento foi “derrota do governo Lula” (não do país). E a divisão do Brasil entre ricos e pobres não é consequência da exploração inerente ao sistema capitalista, mas “divisão feita PT”. Nem nos grupos de zap terraplanistas encontramos realidade tão paralela!

Como nos alertou Brizola, “se a Rede Globo for a favor, somos contra. Se for contra, somos a favor”. O grande temor da família Marinho (e da elite brasileira em geral) é que o pobre tenha consciência de classe. Saber que os interesses dos ricos, inexoravelmente, não são os seus. É isso que os “vídeos da esquerda” que viralizaram demonstram claramente. Como a Globo ficou incomodada, e pediu por “moderação”, é sinal de que, agora sim, a esquerda está no caminho certo: o do confronto.

¨      Populismo de ocasião ou guinada à esquerda? Por Thiago Turíbio

Há pouco tempo, em artigo postado no site A Terra é Redonda, argumentei que a esquerda hegemônica, cada vez mais institucionalizada, desaprendeu a língua da revolta e rifou o ódio de classe inteiro ao outro lado. A extrema direita se alimentou dele. Hoje, ela é a força política mais capaz de mobilizar as forças populares na defesa de suas pautas reacionárias e excludentes.

A recente disputa acesa entre o Congresso e o Partido dos Trabalhadores em torno do decreto editado pelo governo que aumentou o IOF prenuncia uma mudança no jogo. O sinal foi dado: o bloco político dominante na Câmara e no Senado não vai aprovar mais nenhuma pauta de interesse do governo até as eleições.

Acuado, o PT se lançou à luta aberta. Vídeos produzidos por inteligência artificial dramatizando o conflito entre ricos e pobres tomaram as redes. Num deles, assalariados carregam enormes sacos sobre as costas, nos quais se lê “impostos”. Em contraste, ricos em suas gravatas trazem comodamente à mão pequenas sacolas. O vídeo termina anunciando a taxação BBB (bilionários, bancos e bets), cujo objetivo é financiar a isenção do imposto de renda daqueles que ganham até cinco mil: “imposto é necessário, mas justiça também é”.

Noutro vídeo, convivas conversam numa mesma mesa no “Boteco do Brasa”. Um homem do povo questiona o engravatado: “Você consumiu champagne, caviar, lagosta e vai pagar menos que a gente, que só ficou na brejinha e no torresminho?”.

Eis, então, configurado o eixo populista. De acordo com teóricos como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, não se trata de ideologia ou regime específico. O populismo é uma forma: o povo contra a elite, nós contra eles. Ele articula demandas difusas não atendidas por aqueles a quem se atribui o poder e por meio delas constrói discursivamente a figura do povo. Por isso, aceita tudo. Não é de direita nem de esquerda. Bolsonaro, sabemos, tem o seu povo: cidadãos de bem, em geral brancos e heterossexuais, que pagam impostos e não devem nada ao Estado — ao menos assim a extrema direita pretende construí-lo.

Por outro lado, há quem afirme que o populismo pode ser a única chance da esquerda. E não apenas no Brasil. Nancy Fraser, por exemplo, propõe o que chama de populismo progressista de esquerda, o único capaz de mobilizar extensivamente as classes trabalhadoras estadunidenses, internamente clivadas por conflitos de raça e gênero, tão amplamente atiçados pela extrema direita trumpista.

Na mesma direção, Chantal Mouffe defende que a esquerda precisa reivindicar seu próprio populismo. Nele, a democracia e seus valores igualitaristas se oporiam aos limites formais do liberalismo e da oligarquia, que por toda parte controla efetivamente o Estado.

É cedo. Mas a estratégia do PT parece dar razão a essas pensadoras. Nos últimos dias, o engajamento das esquerdas nas redes aumentou de forma consistente. Hugo Motta, presidente da Câmara, acusou o golpe. Satirizado como “Hugo Nem se Importa”, ele tem sido um dos principais objetos das críticas feitas por militantes de esquerda, que agora replicam seus próprios vídeos de Inteligência artificial. Em resposta, o presidente da Câmara critica o PT por querer inventar a polarização social.

No Brasil de Hugo Motta, a sociedade não está polarizada. Não há hierarquias e todos compartilham as mesmas condições materiais. Já o Jornal Nacional convocou a tropa de especialistas de sempre, numa longa matéria, para defender o Congresso e abominar o “aumento de impostos”.

O PT acionou o STF questionando a constitucionalidade da derrubada do IOF, já que a competência legal para fixar a taxa é do Executivo. O tribunal, na figura de Alexandre de Moraes, entrou em cena para acalmar os ânimos. O ministro suspendeu as decisões e convocou os chefes dos poderes a uma reunião a ser realizada no próximo dia 15, cujo fim é encontrar solução consensual para o imbróglio. De toda forma, mais um indício do acerto da estratégia.

No entanto, talvez por estar satisfeito com o resultado da batalha até aqui, em evento em Duque de Caxias, Lula elogiou o Congresso: “eu sou muito agradecido à relação que eu tenho com o Congresso Nacional, até agora, nestes dois anos e meio, o Congresso aprovou 99% das coisas que a gente mandou”. Isso nos sugere a pergunta: a atual campanha explicita um populismo de ocasião para costurar acordos de cúpula ou sinaliza uma consistente guinada à esquerda?

No artigo a que me referi no começo do texto, concluo que a esquerda hegemônica poderia recuperar uma dicção de classe ao encampar pautas como o fim da escala 6×1, a taxação de grandes fortunas e a isenção do imposto de renda das classes trabalhadoras. Todas elas entraram na ordem do dia. Apontava, porém, uma condição: a defesa dessas medidas deveria ir além de gesto eleitoral na hora do desespero. O objetivo deve ser reconstruir as pontes que conectam a esquerda com a tradição dos oprimidos.

Assim, caso a atual campanha seja apenas a antecipação de slogans com o fim de garantir a isenção do imposto de renda como capital para uma futura reeleição, andaremos em círculo. Afinal, há toda uma montanha a escalar: as contrarreformas de Temer e Bolsonaro (trabalhista, previdenciária, do Ensino Médio) permanecem vigentes e inquestionáveis.

O teto de gastos é relíquia sagrada diante da qual o governo se mantém de joelhos. Mesmo com uma eventual isenção do Imposto de Renda, o imposto sobre consumo continuará sendo o principal pilar do nosso regressivo sistema tributário. Uma autêntica guinada à esquerda deve enfrentar estes e outros nós estruturais.

A estrada que levou a extrema direita até aqui também foi pavimentada por defecções, promessas abandonadas, radicalismos performáticos. Dilma Rousseff, em 2014, fez uma campanha popular à esquerda e, tão logo eleita, convocou Joaquim Levy para desfilar seu rosário de cortes. O golpe que a derrubou não foi reação a uma radicalização à esquerda. Ao contrário. Ao se eleger com uma pauta popular e governar com o programa derrotado, Dilma perdeu a base que poderia resistir em seu nome. Foi como chutar madeira podre.

Por isso, mais que uma queda de braço pontual com o Congresso, o que está em jogo hoje é a capacidade da esquerda de recuperar uma gramática que a permita voltar a disputar corações e mentes. O horizonte é de longo prazo. Convocar o signo do povo para então abandoná-lo em nome da velha governabilidade pode fazer a vitória de momento passar em seu contrário, fortalecendo ainda mais a extrema direita.

A história, sabemos, não é mestra da vida. O futuro não repete o passado. Mas nem por isso devemos repetir os mesmos erros esperando que dessa vez as coisas sejam diferentes.

¨      Lula tem a faca, o queijo e a fome de mudança nas mãos. Por Fernando Castilho

Sim, os vídeos gerados por Inteligência Artificial abalaram o status quo e surpreenderam uma direita que já se acostumara com a apatia do governo. Confiante na falta de reação, o campo conservador e reacionário já se preparava para sangrar Lula até 2026 e garantir uma vitória fácil nas próximas eleições presidenciais. Mas o cenário mudou — e mudou rápido. A esquerda voltou ao jogo.

No entanto, esse tipo de linguagem — impactante, mas volátil — tende a se esgotar com o tempo. Por isso, não basta que o PT ou os demais partidos de esquerda aproveitem o calor do momento. É essencial que Lula, ele mesmo, coloque algo de concreto para cozinhar no centro do debate político.

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Parte da sociedade civil já começou a se movimentar. No dia 10 de julho de 2025, está marcada uma manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, convocada por movimentos sociais e partidos de esquerda. O ato terá como principais bandeiras:

  • Críticas ao Congresso Nacional e ao Centrão, sob o lema “Congresso inimigo do povo”;
  • Defesa da taxação dos super-ricos, com apoio à chamada “Taxação BBB: Bilionários, Bancos e Bets”;
  • Justiça tributária, incluindo apoio ao projeto que isenta do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil;
  • Reação à ofensiva da direita e do bolsonarismo, com firme apoio ao governo Lula.

A concentração será em frente ao MASP (Museu de Arte de São Paulo), a partir das 18h.

Paralelamente, está em andamento um plebiscito popular que trata exatamente desses temas: isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês e taxação dos super-ricos. A iniciativa foi lançada por mais de 70 entidades da sociedade civil — entre elas MST, MTST, UNE e CMP — e conta com urnas físicas e digitais organizadas por voluntários em bairros e cidades de todo o país. O período de votação vai até 7 de setembro de 2025, com divulgação dos resultados prevista para 6 de outubro.

Além disso, começou a circular o abaixo-assinado Somos 99%, organizado pelo Instituto Conhecimento Liberta (ICL). O documento denuncia que 1% da população brasileira detém o dobro da riqueza acumulada pelos outros 99% somados. E vai além: propõe uma ampla agenda de mudanças, que inclui a moralização não apenas do Legislativo, mas também do Judiciário.

Estamos diante da continuidade direta de um movimento que ganhou corpo na última semana. Embora tenha como principais beneficiários os pobres e a classe média — independentemente de sua posição política —, esse processo pode representar uma guinada real do governo à esquerda.

O povo começa a se mexer. A indignação ganhou forma, pauta e direção. Mas o que virá disso? Vai depender de quem souber escutar — e agir.

É preciso lembrar que a oposição, hoje momentaneamente calada por ter sido surpreendida, inevitavelmente reagirá — e o fará com aquilo que melhor domina: a mentira. Por isso, entra em cena a necessidade de uma comunicação eficiente. Se, por meio das redes sociais, foi possível atingir um grande público, agora é hora de o governo ir além: um pronunciamento oficial à nação, direto, claro e didático, explicando o que significam, por exemplo, a isenção do Imposto de Renda (que, por incrível que pareça, ainda não foi compreendida totalmente por uma população que é bombardeada todos os dias com a falsa informação de que esse governo só pensa em aumentar impostos) a taxação dos super-ricos e o fim da escala 6×1.

Lula tem diante de si um momento raro: pode se tornar o condutor de um novo ciclo popular, ético e progressista. Mas, para isso, é preciso mais do que carisma ou aceno simbólico. É hora de agir com ousadia, frieza e cálculo. Embora a pauta ainda seja genérica (eles contra nós), povo está pronto —agora é preciso que o governo monte um grupo (gabinete do amor?) para traçar estratégias para manter o movimento aquecido e guiá-lo sem deixá-lo esfriar.

A história não costuma esperar.

 

Fonte: Jornal GGN/A Terra é Redonda/Viomundo

 

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