Francisco
Fernandes Ladeira: Esquerda, enfim, pautou a agenda pública
Pelo
menos desde a eleição presidencial de 2018, a extrema direita tem dominado a
agenda pública nacional. Ou seja, os assuntos que a maioria das pessoas vão
comentar em seus cotidianos, independentemente do posicionamento ideológico.
Via de regra, a extrema direita leva a agenda pública para o campo moral, em
que se sente mais confortável, aproveitando o conservadorismo de grande parte
da população brasileira.
Por
outro lado, a esquerda, tomada pelo identitarismo, corriqueiramente cai nessa
armadilha. Ao invés de denunciar que o mantra bolsonarista “conservador nos
costumes” é uma cortina de fumaça para seu verdadeiro propósito, “liberal na
economia”, lança-se em empreitadas também moralistas, como a cultura do
cancelamento e as tentativas de mudanças arbitrárias na linguagem.
No
entanto, nos últimos dias, vídeos feitos por Inteligência Artificial (IA),
exaustivamente compartilhados em perfis progressistas nas redes sociais, têm
denunciado que o Congresso Nacional, dominado pela direita, está a serviço dos
interesses da elite econômica. Em bom português, defende o que é bom para o
rico e, consequentemente, ruim para o pobre. O velho Marx chamava isso de luta
classe: o principal antagonismo em uma sociedade capitalista. E não as
diferenças entre identidades, como querem os anteriormente mencionados
identitários. É a esquerda voltando às suas origens materialistas.
O
caráter didático, indo direto ao assunto, sem academicismos e malabarismos
retóricos, explicando a quem, de fato, o congresso atende, fez com que os
vídeos feitos com IA alcançassem um público amplo. Usando termos atuais:
viralizaram e furaram bolhas. Pautaram a tão almejada agenda pública.
A Rede
Globo, porta-voz dos ricos, sentiu o golpe. Na última quinta-feira (3/7), o
principal noticiário da emissora, o Jornal Nacional, dedicou quase sete minutos
para atacar o governo, o PT, a esquerda e os vídeos supracitados.
Na
matéria em questão, um panfleto da Faria Lima, travestido de “jornalismo
profissional”, contanto com a “participação especial” de parlamentares
bolsonaristas, denunciar o legislativo inimigo do povo brasileiro virou “ataque
direto ao Congresso Nacional”. Pedir justiça tributária é “radicalização”. A
derrubada do decreto sobre o IOF no parlamento foi “derrota do governo Lula”
(não do país). E a divisão do Brasil entre ricos e pobres não é consequência da
exploração inerente ao sistema capitalista, mas “divisão feita PT”. Nem nos
grupos de zap terraplanistas encontramos realidade tão paralela!
Como
nos alertou Brizola, “se a Rede Globo for a favor, somos contra. Se for contra,
somos a favor”. O grande temor da família Marinho (e da elite brasileira em
geral) é que o pobre tenha consciência de classe. Saber que os interesses dos
ricos, inexoravelmente, não são os seus. É isso que os “vídeos da esquerda” que
viralizaram demonstram claramente. Como a Globo ficou incomodada, e pediu por
“moderação”, é sinal de que, agora sim, a esquerda está no caminho certo: o do
confronto.
¨
Populismo de ocasião ou guinada à esquerda? Por Thiago
Turíbio
Há
pouco tempo, em artigo postado no site A Terra é
Redonda,
argumentei que a esquerda hegemônica, cada vez mais institucionalizada,
desaprendeu a língua da revolta e rifou o ódio de classe inteiro ao outro lado.
A extrema direita se alimentou dele. Hoje, ela é a força política mais capaz de
mobilizar as forças populares na defesa de suas pautas reacionárias e
excludentes.
A
recente disputa acesa entre o Congresso e o Partido dos Trabalhadores em torno
do decreto editado pelo governo que aumentou o IOF prenuncia uma mudança no
jogo. O sinal foi dado: o bloco político dominante na Câmara e no Senado não
vai aprovar mais nenhuma pauta de interesse do governo até as eleições.
Acuado,
o PT se lançou à luta aberta. Vídeos produzidos por inteligência artificial
dramatizando o conflito entre ricos e pobres tomaram as redes. Num deles,
assalariados carregam enormes sacos sobre as costas, nos quais se lê
“impostos”. Em contraste, ricos em suas gravatas trazem comodamente à mão
pequenas sacolas. O vídeo termina anunciando a taxação BBB (bilionários, bancos
e bets), cujo objetivo é financiar a isenção do imposto de renda daqueles que
ganham até cinco mil: “imposto é necessário, mas justiça também é”.
Noutro
vídeo, convivas conversam numa mesma mesa no “Boteco do Brasa”. Um homem do
povo questiona o engravatado: “Você consumiu champagne, caviar, lagosta e vai
pagar menos que a gente, que só ficou na brejinha e no torresminho?”.
Eis,
então, configurado o eixo populista. De acordo com teóricos como Ernesto Laclau
e Chantal Mouffe, não se trata de ideologia ou regime específico. O populismo é
uma forma: o povo contra a elite, nós contra eles. Ele articula demandas
difusas não atendidas por aqueles a quem se atribui o poder e por meio delas
constrói discursivamente a figura do povo. Por isso, aceita tudo. Não é de
direita nem de esquerda. Bolsonaro, sabemos, tem o seu povo: cidadãos de bem,
em geral brancos e heterossexuais, que pagam impostos e não devem nada ao
Estado — ao menos assim a extrema direita pretende construí-lo.
Por
outro lado, há quem afirme que o populismo pode ser a única chance da esquerda.
E não apenas no Brasil. Nancy Fraser, por exemplo, propõe o que chama de
populismo progressista de esquerda, o único capaz de mobilizar extensivamente
as classes trabalhadoras estadunidenses, internamente clivadas por conflitos de
raça e gênero, tão amplamente atiçados pela extrema direita trumpista.
Na
mesma direção, Chantal Mouffe defende que a esquerda precisa reivindicar seu
próprio populismo. Nele, a democracia e seus valores igualitaristas se oporiam
aos limites formais do liberalismo e da oligarquia, que por toda parte controla
efetivamente o Estado.
É cedo.
Mas a estratégia do PT parece dar razão a essas pensadoras. Nos últimos dias, o
engajamento das esquerdas nas redes aumentou de forma consistente. Hugo Motta,
presidente da Câmara, acusou o golpe. Satirizado como “Hugo Nem se Importa”,
ele tem sido um dos principais objetos das críticas feitas por militantes de
esquerda, que agora replicam seus próprios vídeos de Inteligência artificial.
Em resposta, o presidente da Câmara critica o PT por querer inventar a
polarização social.
No
Brasil de Hugo Motta, a sociedade não está polarizada. Não há hierarquias e
todos compartilham as mesmas condições materiais. Já o Jornal Nacional convocou
a tropa de especialistas de sempre, numa longa matéria, para defender o
Congresso e abominar o “aumento de impostos”.
O PT
acionou o STF questionando a constitucionalidade da derrubada do IOF, já que a
competência legal para fixar a taxa é do Executivo. O tribunal, na figura de
Alexandre de Moraes, entrou em cena para acalmar os ânimos. O ministro
suspendeu as decisões e convocou os chefes dos poderes a uma reunião a ser
realizada no próximo dia 15, cujo fim é encontrar solução consensual para o
imbróglio. De toda forma, mais um indício do acerto da estratégia.
No
entanto, talvez por estar satisfeito com o resultado da batalha até aqui, em
evento em Duque de Caxias, Lula elogiou o Congresso: “eu sou muito agradecido à
relação que eu tenho com o Congresso Nacional, até agora, nestes dois anos e
meio, o Congresso aprovou 99% das coisas que a gente mandou”. Isso nos sugere a
pergunta: a atual campanha explicita um populismo de ocasião para costurar
acordos de cúpula ou sinaliza uma consistente guinada à esquerda?
No
artigo a que me referi no começo do texto, concluo que a esquerda hegemônica
poderia recuperar uma dicção de classe ao encampar pautas como o fim da escala
6×1, a taxação de grandes fortunas e a isenção do imposto de renda das classes
trabalhadoras. Todas elas entraram na ordem do dia. Apontava, porém, uma
condição: a defesa dessas medidas deveria ir além de gesto eleitoral na hora do
desespero. O objetivo deve ser reconstruir as pontes que conectam a esquerda
com a tradição dos oprimidos.
Assim,
caso a atual campanha seja apenas a antecipação de slogans com o fim de
garantir a isenção do imposto de renda como capital para uma futura reeleição,
andaremos em círculo. Afinal, há toda uma montanha a escalar: as
contrarreformas de Temer e Bolsonaro (trabalhista, previdenciária, do Ensino
Médio) permanecem vigentes e inquestionáveis.
O teto
de gastos é relíquia sagrada diante da qual o governo se mantém de joelhos.
Mesmo com uma eventual isenção do Imposto de Renda, o imposto sobre consumo
continuará sendo o principal pilar do nosso regressivo sistema tributário. Uma
autêntica guinada à esquerda deve enfrentar estes e outros nós estruturais.
A
estrada que levou a extrema direita até aqui também foi pavimentada por
defecções, promessas abandonadas, radicalismos performáticos. Dilma Rousseff,
em 2014, fez uma campanha popular à esquerda e, tão logo eleita, convocou
Joaquim Levy para desfilar seu rosário de cortes. O golpe que a derrubou não
foi reação a uma radicalização à esquerda. Ao contrário. Ao se eleger com uma
pauta popular e governar com o programa derrotado, Dilma perdeu a base que
poderia resistir em seu nome. Foi como chutar madeira podre.
Por
isso, mais que uma queda de braço pontual com o Congresso, o que está em jogo
hoje é a capacidade da esquerda de recuperar uma gramática que a permita voltar
a disputar corações e mentes. O horizonte é de longo prazo. Convocar o signo do
povo para então abandoná-lo em nome da velha governabilidade pode fazer a
vitória de momento passar em seu contrário, fortalecendo ainda mais a extrema
direita.
A
história, sabemos, não é mestra da vida. O futuro não repete o passado. Mas nem
por isso devemos repetir os mesmos erros esperando que dessa vez as coisas
sejam diferentes.
¨ Lula tem a faca, o
queijo e a fome de mudança nas mãos. Por Fernando Castilho
Sim, os
vídeos gerados por Inteligência Artificial abalaram o status quo e
surpreenderam uma direita que já se acostumara com a apatia do governo.
Confiante na falta de reação, o campo conservador e reacionário já se preparava
para sangrar Lula até 2026 e garantir uma vitória fácil nas próximas eleições
presidenciais. Mas o cenário mudou — e mudou rápido. A esquerda voltou ao jogo.
No
entanto, esse tipo de linguagem — impactante, mas volátil — tende a se esgotar
com o tempo. Por isso, não basta que o PT ou os demais partidos de esquerda
aproveitem o calor do momento. É essencial que Lula, ele mesmo, coloque algo de
concreto para cozinhar no centro do debate político.
Parte
da sociedade civil já começou a se movimentar. No dia 10 de julho de 2025, está
marcada uma manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, convocada por
movimentos sociais e partidos de esquerda. O ato terá como principais
bandeiras:
- Críticas ao
Congresso Nacional e ao Centrão, sob o lema “Congresso inimigo do povo”;
- Defesa da
taxação dos super-ricos, com apoio à chamada “Taxação BBB: Bilionários,
Bancos e Bets”;
- Justiça
tributária, incluindo apoio ao projeto que isenta do Imposto de Renda quem
ganha até R$ 5 mil;
- Reação à
ofensiva da direita e do bolsonarismo, com firme apoio ao governo Lula.
A
concentração será em frente ao MASP (Museu de Arte de São Paulo), a partir das
18h.
Paralelamente,
está em andamento um plebiscito popular que trata exatamente desses temas:
isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês e taxação dos
super-ricos. A iniciativa foi lançada por mais de 70 entidades da sociedade
civil — entre elas MST, MTST, UNE e CMP — e conta com urnas físicas e digitais
organizadas por voluntários em bairros e cidades de todo o país. O período de
votação vai até 7 de setembro de 2025, com divulgação dos resultados prevista
para 6 de outubro.
Além
disso, começou a circular o abaixo-assinado Somos 99%, organizado
pelo Instituto Conhecimento Liberta (ICL). O documento denuncia que 1% da
população brasileira detém o dobro da riqueza acumulada pelos outros 99%
somados. E vai além: propõe uma ampla agenda de mudanças, que inclui a
moralização não apenas do Legislativo, mas também do Judiciário.
Estamos
diante da continuidade direta de um movimento que ganhou corpo na última
semana. Embora tenha como principais beneficiários os pobres e a classe média —
independentemente de sua posição política —, esse processo pode representar uma
guinada real do governo à esquerda.
O povo
começa a se mexer. A indignação ganhou forma, pauta e direção. Mas o que virá
disso? Vai depender de quem souber escutar — e agir.
É
preciso lembrar que a oposição, hoje momentaneamente calada por ter sido
surpreendida, inevitavelmente reagirá — e o fará com aquilo que melhor domina:
a mentira. Por isso, entra em cena a necessidade de uma comunicação eficiente.
Se, por meio das redes sociais, foi possível atingir um grande público, agora é
hora de o governo ir além: um pronunciamento oficial à nação, direto, claro e
didático, explicando o que significam, por exemplo, a isenção do Imposto de
Renda (que, por incrível que pareça, ainda não foi compreendida totalmente por
uma população que é bombardeada todos os dias com a falsa informação de que
esse governo só pensa em aumentar impostos) a taxação dos super-ricos e o fim
da escala 6×1.
Lula
tem diante de si um momento raro: pode se tornar o condutor de um novo ciclo
popular, ético e progressista. Mas, para isso, é preciso mais do que carisma ou
aceno simbólico. É hora de agir com ousadia, frieza e cálculo. Embora a pauta
ainda seja genérica (eles contra nós), povo está pronto —agora é preciso que o
governo monte um grupo (gabinete do amor?) para traçar estratégias para manter
o movimento aquecido e guiá-lo sem deixá-lo esfriar.
A
história não costuma esperar.
Fonte:
Jornal GGN/A Terra é Redonda/Viomundo

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