Conflito
entre os Ka’apor leva Justiça a suspender projeto de carbono no Maranhão
A
JUSTIÇA FEDERAL suspendeu temporariamente a implementação de um projeto de
geração de créditos de carbono na Terra Indígena Alto Turiaçu, uma das últimas
porções protegidas da Amazônia no Maranhão.
Publicada
no final de maio, a decisão aponta como justificativa possíveis falhas no
processo de consulta aos Ka’apor — um dos quatro povos que vivem no território
— e a falta de regras para esse mercado em terras indígenas.
Créditos de carbono são
certificados gerados a partir da redução de gases de efeito estufa da
atmosfera. Um dos instrumentos que permite isso é o REDD+, que recompensa
comunidades por protegerem a floresta e evitarem o desmatamento. Empresas
poluidoras compram esses créditos para compensar suas emissões — e o Brasil,
com suas florestas, têm crescido nesse mercado.
“A
ausência de regulamentação específica sobre a comercialização de créditos de
carbono em terras indígenas, reconhecida inclusive pela Funai [Fundação
Nacional dos Povos Indígenas], em manifestação nos autos, impõe uma conduta
judicial pautada pela cautela”, escreveu a juíza Aliana Rubim Cabral Capeletto
na decisão de primeira instância.
A juíza
também destacou que, embora não se possa afirmar que o projeto seja ilegal,
tampouco é possível garantir que a consulta livre, prévia e informada tenha
ocorrido de forma legítima e “representativa de toda a coletividade indígena
afetada”. A Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da
qual o Brasil é signatário, exige a consulta a populações afetadas por projetos
econômicos.
Sposati/Repórter
Brasil/2022)
A TI Alto Turiaçu, regularizada em
1982, tem 530 mil hectares (3,5 vezes o tamanho da cidade de São Paulo) e
abriga mais de 4 mil indígenas das etnias Ka’apor, Tembé, Timbira e Awa Guajá,
além de povos isolados. Maior território demarcado do Maranhão, forma com áreas
vizinhas a maior extensão florestal contínua do estado. Contudo, sofre com
invasões de madeireiros, pecuaristas, caçadores e garimpeiros.
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Duas
organizações Ka’apor em conflito
O
impasse opõe duas organizações Ka’apor: o Conselho de Gestão Ka’apor Tuxa Ta
Pame, contrário ao projeto, e a Associação Ka’apor Ta Hury do Rio Gurupi, que é
favorável à proposta, executada parceria com a empresa norte-americana Wildlife
Works (WWC).
O
Conselho Tuxa Ta Pame, autor da ação judicial, se define como uma
organização ancestral do povo Ka’apor, tendo sido retomada em 2013. Na época,
lideranças Ka’apor decidiram abolir a figura dos caciques — considerada um
modelo de comando imposto pela Funai — para retomar o modo ancestral de
organização do povo, em que as decisões são tomadas de forma coletiva por um
conselho de tuxás.
O grupo
defende uma gestão autônoma do território, como mostrou a Repórter
Brasil em 2018,
com mínima participação do Estado em assuntos como educação, saúde e
segurança, além da recusa em negociar com empresas e organizações não
indígenas.
Os
Ka’apor são pioneiros na autodefesa do território e, desde 2013, contam com uma
guarda florestal própria que expulsa invasores, destrói equipamentos ilegais e
instala bases em áreas remotas.
A
autodefesa motivou ameaças e ataques ao grupo, levando alguns de
seus membros a integrarem programas de proteção. Em 2022, um dos líderes,
Sarapó Ka’apor, morreu por
envenenamento. Sua morte é considerada suspeita pelos parentes
e passou a ser investigada pela Polícia Federal, mas ainda sem conclusão.
No
pedido à Justiça, o conselho Tuxa Ta Pame afirma que já comunicou à Wildlife
Works a rejeição ao projeto de carbono. “Não aceitamos a presença de sua
empresa em nosso território, razão pela qual exigimos sua imediata retirada”,
escreveu o grupo em resposta a um e-mail da empresa.
Já a
Associação Ka’apor Ta Hury do Rio Gurupi, que negocia com a Wildlife Works,
exerce uma relação distinta com o território, aceitando tratos com agentes
externos. Um exemplo é o acordo mantido com a mineradora Vale, de quem recebe
recursos financeiros, como compensação pelos danos causados pela Estrada de
Ferro Carajás — que conecta a mina de Carajás, em Parauapebas (PA), ao porto de
São Luís (MA).
Segundo
Iracadju Ka’apor, liderança da Ta Hury, o projeto foi discutido em assembleia,
aprovado por 24 lideranças e depois submetido à consulta comunitária.“Mas
apenas quatro aldeias não querem”, disse à Repórter Brasil.
Para
Iracadju, eles têm direito a um projeto REDD+ por já realizarem a preservação
ambiental — assim como o Tuxa Ta Pame, a associação Ta Hury também faz a
vigilância e monitoramento do território.
Segundo
a Wildlife Works, o projeto é de responsabilidade da associação Ka’apor. “O
projeto é deles. Nós estamos lá como assessores técnicos de uma imensa maioria
de uma comunidade que nos convidou para fazer a consulta”, diz Monique Vanni,
diretora da empresa no Brasil. “Juntamos eles fora do território, fizemos
várias conversas aprofundadas sobre riscos financeiros de projetos de REDD+,
governança coletiva, gestão de recursos e afins, porque a gente sentiu que eles
precisavam estar mais preparados”, continua.
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‘Carbono é o novo madeireiro’, afirma liderança do Tuxa
As
quatro aldeias Ka’apor que apoiam o conselho Tuxa Ta Pame são representadas por
seis lideranças, entre elas Itahu Ka’apor. Ele faz parte do programa de
proteção do estado do Maranhão por ter recebido ameaças de indígenas e não
indígenas. Isso por conta do processo de retirada de madeireiros, iniciado em
2013, que foi acompanhado pela expulsão de representantes da Funai e da Sesai
(saúde indígena), a quem o conselho apontava como coniventes com as invasões.
“Atacaram
e queimaram as aldeias por causa desse conflito com madeireiros. A gente não
quer outro sofrimento. O crédito de carbono está chegando como o novo
madeireiro para nós”, afirma..
Itahu
sustenta que a associação Ta Hury não representa o Tuxa e critica sua origem:
“A associação é pelo branco. Quem criou foi a Funai, em 2003. Não foi criada
pelo povo.”
As
posições de Itahu são resultado de um longo processo de construção dos Ka’apor.
Quando o mercado de carbono entrou no território, em 2023, o conselho Tuxa Ta
Pame organizou uma série de encontros por meio do Centro de Formação Saberes Ka’apo.
“Todo
mês a gente se reúne [no centro de formação] para estudar geografia, português,
matemática, história, filosofia, sociologia”, conta o antropólogo José Mendes,
que atua junto ao conselho. Ao longo do ano passado, o grupo Ka’apor fez
debates sobre mercantilização da natureza versus projeto de bem viver, ele diz.
No meio
desse processo, o conselho Tuxa Ta Pame organizou um encontro com comunidades
indígenas, trabalhadores rurais e quilombolas, com apoio do Movimento Mundial
em Defesa das Florestas Tropicais (WRM, na sigla em inglês). O grupo publicou
uma declaração que
classifica o mercado de carbono como mais um modelo de exploração
extrativista do território, comparável à mineração, ao petróleo, às
hidrelétricas e ao agronegócio.
“O REDD
permite que as empresas continuem poluindo e não reduzam as emissões de
poluição”, diz a declaração. “É uma maquiagem verde que permite as empresas
continuarem seus negócios poluindo”, continua o texto.
O grupo
também critica o impacto da eletricidade. “Tanta luz, tanto som, tanto
alcoolismo, trouxe muitos problemas para nós”, disse Itahu em entrevista divulgada recentemente no site do
Movimento das Florestas Tropicais. “A gente precisa do escuro e para os animais
também, que ficam andando à noite. (…) E para os encantados, para o mundo
espiritual”, afirmou.
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‘Estamos nos tempos modernos’, diz Iracadju, da associação Ta Hury
Para
Iracadju, os recursos do mercado de carbono são necessários para remunerar e
capacitar os guardiões da associação Ta Hury. As verbas recebidas da Vale
também ajudam na proteção territorial.
“Nós
também fizemos uma área de proteção, para não ter mais negociação [com
invasores], para não ter mais invasão no território”, conta.
Ele
relata dificuldades para enfrentar incêndios florestais e defende a capacitação
tecnológica “Se a gente se capacitar na parte de tecnologia, a gente vai
[poder] monitorar a parte de incêndio. A gente tem que buscar conhecimento,
trabalhar com tecnologia, para podermos combater. A gente está num tempo
moderno”, afirma.
Antigo
membro do Tuxa Ta Pame, Iracadju critica o conselho por não dialogar: “A gente
respeita a liderança de cada um, então a gente quer que eles também respeitem a
nossa organização”, diz. “Eles nunca vieram debater com a gente. Eles fazem a
coisa muito individual.”
Outro
ponto de tensão entre as duas associações é o acordo de convivência firmado em
2013. Esse pacto previa que não haveria negociações com invasores do
território. Segundo os tuxás, Iracadju violou esse acordo.
“Ele
não cumpriu. Ele continua fazendo negociações. E depois que ele se afastou,
está fazendo as coisas do jeito que ele quer. Por isso está fazendo boiada,
bebida dentro do território e muita festa”, diz Itahu. “Do lado dos tuxás não,
a gente tá orientando”, completa.
Questionado,
Iracadju diz não saber do que seria o acordo e afirma que as críticas são
apenas para sujar a imagem da associação Ta Hury. Ele também negou as
negociações com madeireiros. “Isso foi em 2005, com outras lideranças”,
defende-se.
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Justiça reconhece fragilidade no processo de consulta
Se por
um lado a associação Ta Hury afirma ter o apoio da maioria das aldeias, por
outro, o conselho Tuxa Ta Pame diz que isso não significa que ele não deva ser
ouvido. “Não é um debate eleitoral, de uma maioria sobre uma minoria, como na
sociedade não indígena”, explica o assessor jurídico do conselho, Luís Antônio
Pedrosa.
“O Tuxa
Ta Pame é uma entidade de representação de um segmento minoritário, mas que não
deixa também de representar esse segmento. Ninguém pode negar essa capacidade
de representação”, continua Pedrosa.
O
argumento da representatividade do conselho de tuxás também
foi considerado pela decisão judicial. “O fato de um grupo significativo do
povo Ka’apor, articulado sob a liderança do Conselho Tuxa Ta Pame, declarar
expressamente sua oposição à implantação do projeto e alegar ausência de
participação efetiva na consulta, fragiliza a legitimidade democrática do
processo de consentimento conduzido até o momento”, decidiu a juíza.
A
diretora da Wildlife Works no Brasil, Monique Vanni, reconhece que a divisão é
uma questão interna dos Ka’apor. Mas ela questiona a representatividade
dos tuxás e de seus aliados, assim como os debates realizados
pelo grupo. “Com as oficinas e assembleias [que fizemos com a associação
Ta Hury], a gente promoveu um imenso processo de reencontro, reunião e cura de
antigas mágoas. Mas sobrou um microgrupinho de cem pessoas, totalmente
dominadas por um ente externo, altamente financiado e manipulado por organizações
antimercado”, disse à Repórter Brasil.
Iracadju
também defende o processo de consulta, que já teria sido concluído. “Foi
explicado que a gente tem que preservar a floresta para poder vender o crédito.
Isso a gente já faz.”
Mas
Itahu rebate. “A natureza não tem importância para eles, por isso eles querem
negociar. Mas o Tuxa não pensa assim. Nós temos que proteger o território para
nossos filhos, não para o dinheiro. A gente quer a natureza.”
Para o
líder dos tuxás, o maior problema é a Wildlife Works no território,
que estaria agravando a divisão e ameaçando a autonomia do povo Ka’apor. “A
gente não quer entregar nossa autonomia para a empresa, que não é daqui”, diz.
“A gente já sofreu muito com os madeireiros e não quer mais ataques nem
ameaças, nem contra nós, nem contra a natureza”, conclui.
Fonte:
Repórter Brasil

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