quarta-feira, 2 de julho de 2025

2026 - Primeiro retrato da grande disputa

Nos bastidores, a disputa por 2026 fermentava há muito. Na última quarta-feira (25/6), um Centrão fortalecido colocou-a a nu. O presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), ignorou as negociações com o governo, que estavam em curso, e humilhou o Palácio do Planalto. Um decreto legislativo, instrumento político usado raríssimas vezes desde a redemocratização, anulou a elevação de algumas das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), determinada pelo Executivo dias antes, e desde então execrada pela Faria Lima.

Do ponto de vista material, a consequência é pouca, como se verá adiante. Muito pior foi o impacto simbólico: o Centrão de Motta quis mostrar quem manda em quem. Não bastasse o insólito do decreto legislativo para tal tipo de questão (sua própria constitucionalidade está em disputa), o governo amargou a sensação do abandono. Nos partidos agraciados com ministérios, dois de cada três deputados (63%) votaram contra o Executivo. Fizeram-no por calcular que o governo não terá forças para punir a traição. A debandada, aliás, repetiu um episódio anterior – a derrubada dos vetos do Executivo a medidas que encarecerão as contas de luz –, em que até os parlamentares do PT votaram em massa contra os interesses de Lula. O presidente rolava ladeira abaixo, comemorou a mídia.

Mas desta vez, veio uma resposta – tímida e contraditória, mas ainda assim inédita. Pela primeira vez desde que começou Lula 3, a institucionalidade conservadora que amarra a gestão foi questionada. Dois vídeos, que circularam velozmente pelas redes, denunciam a ação do Congresso. São assinados pelo PT (o Planalto não se pronunciou sobre eles), mas produzidos com profissionalismo de publicitários. Sua temática vai muito além do IOF: avança pelo terreno conflituoso da disputa fiscal. Lula 3 é apresentado como empenhado em aliviar a carga de impostos brasileira – que se concentra nas costas da maioria e poupa os mais ricos. As elites e o Parlamento resistem a esta correção. A luta de classes é o subtexto claro.

O deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP) assumiu a condição de protagonista do embate. Em postagens nas redes sociais, ele vai além das narrativas dos vídeos. Suscita a luta pelo fim da escala 6×1. E, baseado em fatos concretos, acusa os parlamentares de direita de tramarem… a jornada 7×0. Entrarão em pauta esta semana, explica Boulos, projetos de lei que permitirão aos empresários impor o trabalho aos domingos sem sequer negociar com os sindicatos.

O mais importante, porém, é que o mesmo deputado lança uma convocatória voltada às ruas. No próximo 10/7 (uma quinta-feira), as frentes Povo sem Medo e Brasil Popular organizarão protestos contra a onda de ações conservadoras do Congresso. O ato central ocorrerá em São Paulo, na avenida Paulista, às 18h.

Será possível esperar que o ambiente político brasileiro, tão pasmacento há tanto tempo, se reenergize? Como aigr diante destes fatos novos? Por que é possível dizer que, apesar da aparência de confronto, continuam ausentes dois ingredientes essenciais às disputas necessárias: o enfrentamento ao rentismo e o esforço para reconstruir um projeto de país? Três textos publicados hoje por Outras Palavras ajudam a buscar as respostas.

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O primeiro artigo é da lavra do ativista e poeta Mateus Muradas, um dos construtores, em São Paulo, do Fórum Social da Zona Leste e do Encontro das Periferias. Sua leitura do cenário brasileiro atual é condizente com a de Guilherme Boulos, mas talvez a aprofunde. Mateus destaca, em primeiro lugar, o fracasso da manifestação bolsonarista do último domingo – a menor dos últimos anos. “A extrema direita sangra, e isso é conquista nossa”, frisa o texto.

Mas esta visão não abre estrada para uma análise triunfalista: ao contrário. Mateus afirma que, ao contrário do que seria de esperar, o governo Lula “está emparedado”. “Derrete em popularidade, sem direção estratégica clara, pressionado (…) pelo mercado, pelo Centrão, agora inclusive por sua base social histórica”. Talvez porque não tenha se dado conta do esgotamento de seu antigo projeto.

“Contido o fascismo, é hora de virar a página”, prossegue o texto. “Banqueiros e barões do agro não vão ajudar o Brasil a combater a desigualdade”. Mas o governo “adia uma guinada popular” e ao fazê-lo “perde sua base, perde entusiasmo e legitimidade”. A angústia de Mateus gira rapidamente para a proposição: “O governo precisa propor um novo pacto: um Projeto Nacional de Envolvimento Popular e Periférico”, que inclua “reforma agrária, tributação dos super-ricos, ampliação real do Minha Casa Minha Vida, mais orçamento para saúde, cultura e educação”.

O artigo termina com um questionamento exortativo. “A janela histórica está aberta, mas o tempo está correndo (…) O governo tem que se perguntar: vai seguir refém do sistema financeiro e da Faria Lima, ou vai governar com e para o povo”? “A saída é pela esquerda”, conclui Mateus. E, com otimismo, arremata: “ela já começou”.

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Será? No segundo texto de nossa série, o economista David Deccache chama atenção para as contradições da nova narrativa do governo e os limites do movimento em que alguns veem um giro à esquerda. O artigo examina em profundidade algo pouco notado nas análises convencionais da mídia – inclusive a progressista. Em 16/6, o Executivo editou a Medida Provisória (MP) 1303/2025, um documento de 71 artigos cujo objeto principal são mudanças na tributação de investimentos financeiros e ativos como moedas virtuais. David analisa uma consequência menos visível, derivada do artigo 65.

Trata-se, mostra ele, de um “desmonte silencioso” dos dispositivos constitucionais que reservam, nos Orçamentos públicos, recursos mínimos para a Educação. A Carta obriga hoje a destinar ao menos 18% da receita líquida de impostos federais para atividades vinculadas à “manutenção e desenvolvimento do ensino”. A MP 1303/2025 não altera abertamente este dispositivo – daí David considerar sua ação sub-reptícia. Porém, inclui na montante os recursos destinados ao programa Pé de Meia, que garante transferência de recursos aos alunos do ensino médio. Ao fazê-lo, comprime os valores que sobram a despesas como remuneração de professores, infraestrutura escolar, material didático, pesquisa e bolsas acadêmicas. A redução é significativa: pode consumir, em 2026, mais de 11% do destinado a atividades típicas de ensino. Como se sabe, são valores já muito reduzidos, que resultam por exemplo em “laboratórios paralisados, bolsas congeladas e infraestrutura em colapso”.

O artigo indaga: que sentido há em alardear uma suposta luta em favor do serviço público e da justiça tributária e praticar, em surdina, o desmonte da Educação? Em outros textos, o autor tem chamado atenção para outros paradoxos na ação recente do governo. Em 26/6, por exemplo, um decreto presidencial atingiu em cheio o Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos ou portadores de deficiência muito pobres, e sem direito à Previdência Social. A partir de agora, serão excluídas do BPC as pessoas que, após receberem o Bolsa-Família, alcancem renda familiar per capita superior a… um quarto do salário-mínimo, ou R$ 379,50!

O discurso, argumenta David, pode ter mudado, mas o governo não reviu a essência: sua submissão à busca de um “ajuste fiscal” antipopular, anacrônico na própria teoria econômica, praticado apenas por países que se acomodam a sua condição colonizada.

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Caberia, então, desprezar os acenos do lulismo, considerar irrelevante a mudança de discurso, ignorar a mobilização popular proposta por Guilherme Boulos? Nosso terceiro texto, de autoria do gestor público e bibliotecário Ricardo Queiroz,propõe uma atitude mais complexa. O autor rejeita os chamados vazios à “politização”, um cacoete que parece se repetir entre a esquerda, como “coreografia de engajamento” a cada derrota do governo no Congresso. Também repele argumentos hoje recorrentes, como o de associar a impopularidade de Lula 3 a “falta de comunicação”

Mas Ricardo acredita no “conflito real”, que não rejeita os “conflitos reais”, porque parte de um projeto claro. Ao fazê-lo, “interroga estruturas, nomeia interesses, abre o jogo que querem manter fechado”. O artigo argumenta: “É evidente que há uma correlação de forças difíceis: não é simples enfrentar um Congresso atravessado por práticas fisiológicas e controlado por lobbies poderosos – do mercado financeiro ao agronegócio, passando por setores que acumulam privilégios, isenções e canais diretos com o Estado. Mas politizar é expor esse jogo, em vez de camuflá-lo com frases de efeito (…) É reabrir o tempo da política, não apenas sobreviver à próxima votação” (…) É saber que há momentos em que só resta dizer: ou mudamos as escolhas, ou o caminho vai ser o óbvio”.

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O cenário político que começou a se compor nos últimos dias dialoga com os três textos que publicamos hoje. Há uma mudança nítida, como aponta Mateus Muradas. Desde 2022, o lulismo jamais havia estabelecido confronto com as elites; muito menos, lançado apelos à ação das ruas. A importância desta mudança não merece ser ignorada. O giro, por enquanto, muito limitado e em grande parte retórico. Continua de pé, como lembra David Deccache, a aliança com o rentismo. A diretoria do Banco Central, quase toda composta por indicação de Lula, pratica uma política monetária que transfere, ao 0,1% mais rico da população, 1 trilhão de reais por ano. Esta minoria parasitária recebe do Tesouro, a cada semana, quase duas vezes o que custou a derrubada do IOF pelo Congresso. O ministro da Fazenda aplaude, em sucessivas reuniões com a Faria Lima, tal política. Não há sinais de que ela mudará.

Mas num país desigual como o Brasil, qualquer apelo a enfrentar as injustiças sociais pode assumir proporções imprevistas e criar espaço para a politização real antevista por Ricardo Queiroz. Uma brecha importante pode ter-se aberto nos últimos dias. É preciso testá-la, inclusive para ir além dos que desejarão fechá-la rapidamente.

¨      A saída é pela esquerda. Por Mateus Muradas

O bolsonarismo está morrendo. A extrema direita segue desmoralizada, judicializada e sem povo nas ruas. A farsa do último “carnaval golpista”, no dia 29 de junho, foi o enterro simbólico dessa era. Meia dúzia de saudosos da ditadura pedindo “anistia”, enquanto seus líderes disputam o espólio de um movimento fracassado. Tarcísio, Zema, Ratinho Jr e outros herdeiros do bolsonarismo estão mais preocupados em sobreviver do que em disputar projeto de país. A extrema direita sangra, e isso é conquista nossa.

Mas, paradoxalmente, mesmo com a direita enfraquecida, o governo Lula está emparedado. Derrete sua popularidade, e está sem direção estratégica clara, pressionado de todos os lados: pelo mercado, pelo Centrão, agora, inclusive por parte de sua base social histórica. O que deveria ser um momento de ofensiva popular virou um impasse, que pode implodir o governo ou fazê-lo avançar.

A chamada “Frente Amplíssima” está colapsando. E não há tragédia nisso. Ao contrário: essa frente cumpriu seu papel histórico — derrotar Bolsonaro, enquadrar o golpismo de 8 de janeiro e preservar a Constituição de 88. Foi uma aliança de emergência. MST e FEBRABAN, PSOL e União Brasil, juntos, era uma distopia necessária. Mas o fascismo foi contido, e agora é hora de virar a página. A conciliação já não entrega estabilidade e bloqueia qualquer possibilidade de transformação social e desenvolvimento do Brasil.

As últimas derrotas no Congresso — como na tributação do IOF e na tarifa de energia — revelam que essa aliança esgotou sua capacidade de governar. O centro fisiológico não oferece lealdade, apenas chantagem. Banqueiros e barões do agro não vão ajudar o Brasil a combater desigualdade. A cada dia que o governo adia uma guinada popular, perde sua base, perde entusiasmo e legitimidade. É necessário governar para quem o elegeu.

A estratégia agora precisa mudar. O governo precisa sair da defensiva e propor um novo pacto: com os trabalhadores, os movimentos sociais e as periferias. Um Projeto Nacional de Envolvimento Popular e Periférico — que ataque os privilégios, enfrente o rentismo, amplie os direitos sociais e reconecte o governo com quem o elegeu.

Ou Lula assume o protagonismo de um programa de transformação — com reforma agrária, tributação dos super-ricos, ampliação real do Minha Casa Minha Vida, mais orçamento para saúde, cultura e educação — ou corre o risco de ver seu governo se dissolver junto com Bolsonarismo e o centrão.

A direita está sem povo. O impeachment não é uma ameaça real. O Congresso e o Centrão são rejeitados até por eleitores conservadores. A janela histórica está aberta. Mas o tempo está correndo, temos apenas um ano e meio de governo.

É hora de Lula e o PT liderarem a ruptura com essa falsa estabilidade. O governo tem que se perguntar: vai seguir refém do sistema financeiro e da Faria Lima ou vai governar com e para o povo?

Chegou a hora de parar de administrar o possível e começar a lutar pelo necessário. A esquerda está pronta. As periferias estão prontas. O povo está esperando um chamado.

A saída é pela esquerda e ela já começou!

¨      Politizar. Por Ricardo Queiroz Pinheiro

Logo após cada derrota do governo Lula no Congresso — e elas têm sido muitas — reaparece o velho bordão: é preciso politizar o debate. Ladainha. A frase circula com ares de lucidez tardia, como se nomear o problema bastasse para resolvê-lo. Mas é justamente aí que começa o engodo.

Politizar não acontece como mágica. Não basta dizer “isso é político” como se fosse uma senha. Politização real não é grito, não é estética, não é reação automática. Ela exige conflito real, projeto claro, disputa concreta. Politizar é interrogar estruturas, nomear interesses, abrir o jogo que querem manter fechado. E isso tem custo.

O que se vê no lugar disso é a coreografia do engajamento. Um jogo de cena que fala em politização, mas foge da política. Porque politizar de verdade implicaria escolher lado, tensionar alianças, romper com pactos que já não entregam nada. Isso poucos querem fazer. Preferem repetir a fórmula e seguir na encenação.

A falsa politização se espalha como verniz. Assume a forma de colunas bem-intencionadas, diagnósticos apressados e apelos por “diálogo”. Mas não há diálogo real sem disputa de projeto. E o que temos hoje é o uso da palavra política para evitar que se faça política. É antipolítica vestida de crítica.

Um dos sintomas disso é o argumento recorrente de que “falta comunicação”. É um discurso fácil, que sempre volta quando o conteúdo da política desagrada. A comunicação vira bode expiatório: se o governo perdeu, foi porque não soube explicar. Não porque fez um recuo estratégico, cedeu ao mercado ou se rendeu ao Centrão. Esse argumento é perigoso, porque desloca o problema da política para a forma, e transforma erro de escolha em falha de marketing, de divulgação ou do “modo de falar com o povo (seja lá o diabo que for). Serve para mascarar a realidade, não para enfrentá-la.

Dito isso, não se trata aqui de fingir que é simples enfrentar um Congresso atravessado por práticas fisiológicas e controlado por lobbies poderosos — do mercado financeiro ao agronegócio, passando por setores que há anos acumulam privilégios, isenções e canais diretos com o Estado. É evidente que há uma correlação de forças difícil. Mas politizar é justamente expor esse jogo, em vez de camuflá-lo com frases de efeito. É disputar as interpretações, não só administrar o dano.

Autoengano é talvez a forma mais aguda de despolitização que existe. Porque ao invés de enfrentar a realidade, prefere distorcê-la até que ela se torne tolerável. Ao invés de fazer balanço, cria álibis. Ao invés de pensar estratégia, se contenta com manobras táticas para salvar o dia. É o tipo de erro que se acumula — e que cobra seu preço mais à frente.

Por isso mesmo, a politização que se exige hoje não pode ser apenas tática — um discurso reativo para justificar uma derrota pontual. Ela precisa ser estratégica: capaz de ler a conjuntura, reorganizar o campo de forças, assumir os antagonismos e propor direção. Politizar é reabrir o tempo da política, não apenas sobreviver à próxima votação.

E mais: politizar é olhar para os interesses populares como eles são — não como eu desejaria que fossem. Isso significa encarar as contradições reais das classes subalternas, as ambiguidades do pragmatismo popular, os efeitos duradouros de uma educação política precária, o peso das derrotas simbólicas acumuladas e as vitórias cognitivas e culturais do liberalismo. Politizar, nesse sentido, exige não só coragem, mas método. Exige escuta, autocrítica e a recusa de idealizações preguiçosas que só servem para alimentar bolhas e reafirmar certezas.

Em tempos de paralisia, quando domina a sensação de derrota ou imobilismo, esse tipo de discurso ganha ainda mais tração. Promete saídas rápidas, explicações fáceis, soluções sem conflito. Mas não há saída sem disputa. E politização não é remédio para mágoa, é ferramenta de reorganização da luta. É confronto, e como tal exige uma mudança de postura.

Politizar, portanto, é implicar-se. É sustentar a tensão. É não aceitar a derrota como natural, nem a conciliação como solução automática. É saber que há momentos em que só resta dizer: ou mudamos as escolhas — ou o caminho vai ser o óbvio.

 

Fonte: Por Antonio Martins, em Outras Palavras

 

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