quinta-feira, 31 de julho de 2025

Como o Brasil oscilou no Mapa da Fome no século 21

A notícia de que o Brasil saiu do famigerado Mapa da Fome pela segunda vez neste século foi — e precisa ser — vista como algo positivo.

Mas, além dos números, é preciso compreender os cenários que fazem com que o país oscile nesse levantamento divulgado todos os anos pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU).

Até porque o país vive o histórico paradoxo de ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo, mas, ao mesmo tempo, ainda ter dificuldades para alimentar toda a população.

"Vou repetir o que eu já disse em 2014. Temos de celebrar que o Brasil saiu do Mapa da Fome. Mas não podemos deixar de dizer que é vergonhoso que um país como o Brasil tenha estado no Mapa da Fome", diz à BBC News Brasil o economista Renato Maluf, professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e integrante da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

"Parece ser um tabu discutir a realidade brasileira de ser o país mais desigual do mundo […]", diz à BBC News Brasil o sociólogo Giuliano Salvarani, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). "Isso não significa que somos um país pobre, pelo contrário, mas de empobrecidos e famélicos. É essa a realidade que precisa ser escancarada e alterada em qualquer projeto político de cunho nacional."

Segundo os critérios da ONU, um país deixa de figurar no Mapa da Fome quando menos de 2,5% da população está em risco de subalimentação, ou seja, situação em que o indivíduo consome menos calorias do que o necessário para uma vida saudável — condição de insegurança alimentar crônica.

Na virada dos anos 2000, o cenário era grave. O Brasil ainda colhia o joio acumulado com a soma de décadas de ditadura militar, inflação descontrolada e, em seguida, as consequências sociais das intensas reformas que vieram na carona do Plano Real.

Resultado: de 2000 a 2002, 10,4% da população brasileira viviam em condições de subnutrição — embora a ONU divulgue anualmente os dados, sempre são consideradas as médias trienais para evitar distorções.

De lá para cá, a cada nova edição do levantamento o Brasil apresentava uma melhora até que, no triênio 2013-2015, finalmente o número de pessoas em subalimentação no país foi menor do que 2,5%.

Para especialistas, os bons resultados vêm de uma soma de esforços, das políticas públicas ao papel da sociedade civil. Também coincidem com momentos de aumento real no salário mínimo, com reajustes acima da inflação. Além, é claro, da conjuntura econômica global.

O economista Maluf acredita que o combate à fome deve se organizar sob dois parâmetros. De um lado, políticas públicas interssetoriais "necessárias para enfrentar uma questão multidimensional". De outro, "intensa participação social".

<><> Campanhas e governos

Os esforços históricos empreendidos pelo país para combater a fome se tornaram relevantes desde os anos 1990. Um marco desse movimento foi a campanha idealizada pelo sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, com sua organização Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.

Em 2001, nos estertores do segundo mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), foram instituídos os programas Bolsa Escola e Bolsa Alimentação, modelos de transferência de renda precursores.

Nos governos posteriores, contudo, o petista Luiz Inácio Lula da Silva trouxe o combate a fome para o protagonismo, sobretudo no início de seu primeiro mandato. É dessa época a criação dos programas Fome Zero e Bolsa Família — este último unificou e ampliou os programas de transferência de renda que já existiam.

A curva da fome voltou a ser de crescimento durante a complexa combinação de governo Jair Bolsonaro e pandemia de covid-19. Entre 2019 e 2021, 3,4% dos brasileiros viviam em subalimentação, de 2020 a 2022, o número saltou para 4,2%.

O governo federal extinguiu o Bolsa Família, que atendia em 2021 14,7 milhões de pessoas. Em seu lugar, foi implementado o Auxílio Brasil, que acabou criticado principalmente pela sua gestão fragmentada e por não considerar a composição familiar no cálculo do benefício.

"No início dos anos 2000, sob um governo comprometido com a justiça social, o Brasil mostrou ao mundo que é possível vencer a fome. O retrocesso ocorrido na década seguinte não foi consequência direta da pandemia, embora ela tenha servido como pretexto e cobertura para o desmonte de uma política pública virtuosa", comenta à BBC News Brasil o sociólogo Rogério Baptistini, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

O mau momento pode ser atestado também por outros levantamentos. Segundo dados do Centro de Políticas Sociais FGV Social, o pior momento econômico para os brasileiros desde o início da série histórica, em 2012, foi em 2021, quando 37,4% dos brasileiros viviam com renda domiciliar per capita igual ou inferior a US$ 3,65 por dia. Eram 10 milhões a mais de pessoas nessa condição de pobreza do que no ano anterior.

Até então, o melhor ano dessa série havia sido 2014 — quando eram 31% os abaixo dessa linha.

Evidentemente que a pandemia também impactou. De acordo com inquérito desenvolvido na época pela Rede Penssan, em 2021, 55,2% dos domicílios brasileiros vivenciam um cenário de insegurança alimentar — em 2018 eram 36,7%.

O conceito de segurança alimentar foi criado depois da Primeira Guerra Mundial e, hoje, é entendido em três níveis: o leve é quando a família tem indisponibilidade de algum alimento básico; o moderado é quando essa indisponibilidade afeta o indivíduo do ponto de vista nutricional; o grave é quando a pessoa não consegue fazer nenhuma refeição por um dia ou mais. Em 2021, 9% dos brasileiros vivenciavam essa situação da maneira mais grave — mais de 19 milhões de pessoas, portanto.

Os estudos da Penssan sobre segurança alimentar, com base em análise de microdados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), espelham os índices da ONU. Para a rede brasileira, o melhor ano da série histórica era 2013, quando 77,1% dos lares brasileiros viviam uma situação de segurança alimentar. Em 2018, o percentual já havia caído para um número bem próximo do dia 2004: 63,3%.

<><> Sem fome

A melhoria coincide com a volta do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder — e as políticas sociais que são bandeira do presidente Lula. O Bolsa Família foi reinstituído. No triênio 2021-2023, segundo os dados da ONU, a proporção de subalimentados foi de 3,9%. E, agora, nos dados divulgados na última segunda, compreendendo o período de 2022 a 2024, novamente o país saiu do Mapa da Fome.

"Sair do chamado Mapa da Fome após três anos é talvez a maior conquista desse governo Lula 3º", avalia Salvarani. "Em primeiro lugar porque constata que o Brasil regrediu socialmente no governo Bolsonaro ao voltar pro Mapa da Fome, demonstrando a elevação do nível da miséria nos últimos anos. Mas, em seguida, evidenciou a eficácia das políticas públicas de combate à fome no Brasil do governo do petista. Isso não é pouca coisa."

Dados do Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), pesquisado pelo IBGE, atestam que entre 2022 e 2023 24 milhões de brasileiros saíram da condição de insegurança alimentar grave. Também em 2023, a pobreza extrema no Brasil foi reduzida a 4,4% — 10 milhões de brasileiros a menos do que em 2021.

Para o sociólogo Salvarani, a melhoria do cenário não é apenas resultado da recuperação pós-pandemia. "A questão não gira somente na melhoria da conjuntura global pós-covid. Inclusive porque o Brasil ainda não retomou aos patamares econômicos anteriores à pandemia", frisa ele.

"Refere-se sobretudo à priorização alocativa do combate à fome em detrimento de outras escolhas políticas. Precisamos relembrar que Bolsonaro e o Congresso destruíram políticas como o Bolsa Família e quintuplicaram gastos com o Judiciário, por exemplo", critica. "Decisões como essas transformam pobres em famintos e juízes em multimilionários."

O professor enfatiza que fome não é "uma questão puramente econômica, mas política". E, para ele, isso é especialmente mais notável em um país como o Brasil, "a décima economia do mundo, o quinto que mais cresce e o maior produtor de alimento do planeta".

Para o economista Maluf, "foi uma surpresa bastante positiva que dois anos de reconstrução das políticas que tinham sido desmontadas" retiraram novamente o país do Mapa da Fome. "Isso mostra que o aprendizado do período de 2003 a 2015, tanto do ponto de vista da ação governamental como da mobilização da sociedade civil brasileira, foi fundamental", enaltece.

Maluf também alerta que "um período curto" foi capaz de desmontar "uma longa construção". "Isso significa que o risco de desmonte em uma sociedade desigual, com assimetria de poder e uma institucionalidade com várias fragilidades, o risco do retrocesso está muito presente na medida que as disputas continuam postas […] e há grupos que não têm nenhum compromisso com direitos humanos, com fome, etc.", afirma. "É uma conquista mas é, ao mesmo tempo, um alerta."

Em nota técnica enviada à imprensa, a Rede Penssan atribui a saída do Brasil do Mapa da Fome a inúmeros fatores. O grupo enumera a "retomada de políticas estruturantes e emergenciais de enfrentamento da fome, em especial a recomposição de programas como o Bolsa Família e o Programa Nacional de Alimentação Escolar, a valorização do salário mínimo, o crescimento do emprego formal e o apoio à agricultura familiar".

O texto lembra, contudo, que ainda há 7 milhões de brasileiros "em situação de fome".

<><> Aumento histórico da renda

Para Baptistini "estar fora do Mapa da Fome pela segunda vez", é sinalizar "um avanço no compromisso do país com os direitos humanos fundamentais". "É um indicativo de que uma parcela significativa das pessoas excluídas pela manutenção de estruturas econômicas e sociais resistentes à mudança passou a ter acesso regular à alimentação", afirma.

Diretor do Centro de Políticas Sociais FGV Social, o economista Marcelo Neri enfatiza que a retirada do país do Mapa da Fome coincide com um dado histórico: a pobreza e a extrema pobreza no Brasil diminuiu de forma recorde e chegou "ao menor nível histórico em 2024".

O percentual de pessoas vivendo com menos de US$ 3,65 por dia no país regrediu dos 36,75% de 2021 para atuais 23,72%, aponta o FGV Social. Já aqueles que vivem em extrema pobreza, ou seja, com menos de US$ 2,15 por dia, hoje representam 6,7% dos brasileiros — eram 14% em 2021.

"É certo que a expansão de quase 50% nas transferências de renda governamentais aos pobres como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada nos últimos dois anos ajudam a entender o quadro", complementa ele, à BBC News Brasil.

"Assim como o crescimento de ações alimentares para população no pais conhecido como 'fazenda' do mundo, como reajustes da merenda escolar e apoio com crédito a agricultura familiar."

Neri lembra que, de acordo com a agência da ONU, "só em 2023 a fome caiu 85% no Brasil". Para o economista, isso reflete também a melhor distribuição de renda, com "crescimento real [da expansão trabalhista] de 7% nos últimos 12 meses terminados no primeiro trimestre de 2025."

"Sendo mais específico a renda do agricultor familiar da área rural nordestina, a mais pobre do país, cresceu 33% nos últimos dois anos", exemplifica.

Este cenário, na análise dele, indica que o país continuará fora do Mapa da Fome nos levantamentos dos próximos dois anos.

A Rede Penssan enfatiza que é preciso compromisso político constante para que a situação não piore novamente. E alerta que, "apesar da melhoria nos indicadores gerais, a fome segue afetando de forma desproporcional os grupos mais vulnerabilizados da população, com recortes marcados por raça, gênero, território e classe social".

<><> Louros políticos

"Sair do Mapa da Fome era o objetivo primeiro do presidente Lula ao iniciar o seu mandato em janeiro de 2023. A meta era fazer isso até o fim de 2026", declarou na segunda o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias.

"Mostramos que, com o Plano Brasil Sem Fome, muito trabalho duro e políticas públicas robustas, foi possível alcançar esse objetivo em apenas dois anos. Não há soberania sem justiça alimentar. E não há justiça social sem democracia."

A nota do ministério politizou o fato, dizendo ser "a segunda vez que o governo do presidente Lula retira o país dessa condição: a primeira foi em 2014". Naquele ano, contudo, a presidente do país era Dilma Rousseff, também do PT.

Ideólogo do Fome Zero, o frade dominicano e escritor Frei Betto comemora a notícia. "Uma grande conquista do governo Lula e do povo brasileiro o Brasil sair, pela segunda vez em mandatos do PT, do Mapa da Fome", destaca ele, à BBC News Brasil. "Isso já havia acontecido em 2014, mas infelizmente voltou ao Mapa da Fome por descaso do governo Bolsonaro."

"Em nossa história, poucos governos assumiram a fome como um problema político. Lula, desde seu primeiro mandato, fez isso ao colocar a erradicação da insegurança alimentar no centro da agenda pública brasileira", analisa Baptistini.

Frei Betto cobra que o exemplo brasileiro seja visto como inspiração para outros lugares afetados pela fome no mundo. "Diante da tragédia humanitária em Gaza, convoco todas as pessoas de bem a lutarem por um mundo no qual haja gastos com a erradicação da fome, para salvar vidas, e não com a proliferação de armas, para ceifar vidas", diz o escritor.

<><> Josué de Castro

Indicado três vezes ao Prêmio Nobel, o médico e geógrafo brasileiro Josué de Castro (1908-1973) presidiu o conselho da FAO nos anos 1950. Autor de obras como Geografia da Fome e Geopolítica da Fome, ele se tornou uma referência no combate à pobreza. "Denunciou a fome como um problema político, e não natural", pontua Baptistini.

"Ela [a fome] não deriva da escassez, mas de estruturas desiguais que determinam como um país organiza sua economia e distribui a renda. Por isso, a existência de fome em uma sociedade é um marcador civilizatório", pontua o sociólogo. "Ou, melhor dizendo, da ausência de civilização."

 

Fonte: BBC News Brasil

 

Matopiba: O risco de uma “grilagem regularizada”

Legislações estaduais do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia — estados que formam o Matopiba — estão permitindo a regularização de terras griladas e elevando a pressão sobre comunidades tradicionais da região. A conclusão é de advogados, pesquisadores e integrantes de movimentos sociais que se articulam para denunciar a situação e tentar revertê-la na Justiça.

A mais recente dessas normas, um decreto editado em março deste ano, no Piauí, coroa um processo de mudanças legais iniciado no estado em 2019, mesmo ano em que o Tocantins aprovou a sua legislação, atualmente contestada por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) protocolada no Supremo Tribunal Federal em 2023. As leis do Maranhão e da Bahia são mais antigas, de 1991 e 1975, respectivamente, mas, no primeiro estado, houve novo avanço em 2023 e, no segundo, os efeitos da norma da época da ditadura seguem se ampliando.

“Essas legislações acompanham o avanço da fronteira agrícola no Matopiba, que começou pela Bahia, nos anos 1980, e se expandiu inclusive para as áreas que eram mais secas a partir da adaptação das sementes de soja ao clima e ao solo do Cerrado”, observa o advogado Maurício Correia, que pesquisa o tema em seu doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF) e é assessor jurídico da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

O Matopiba é considerado a última fronteira agrícola brasileira. O avanço do agronegócio tem causado um aumento da violência no campo nos estados que compõem a região, segundo dados divulgados anualmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), e levou o Cerrado ao posto de bioma mais desmatado nos últimos dois anos.

O Matopiba compreende os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

<><> Reconhecimento de propriedade particular

Embora aprovadas em distintos períodos históricos e por diferentes estados, as leis de terras questionadas pelos advogados possuem um ponto em comum. Elas garantem o reconhecimento da propriedade particular da terra sem que seja necessário dar um passo elementar, que está na base do direito territorial brasileiro: a comprovação do correto destacamento do patrimônio público, ou seja,  a apresentação de um documento que registre o momento e a forma em que um terreno teria sido transferido do poder público para o uso privado — através, por exemplo, da destinação de uma área para um assentamento rural ou para a venda.

“No Brasil, o princípio geral que sustenta e orienta a legislação fundiária é a origem pública das terras brasileiras. Isso consta na primeira lei de terras do país, de 1850, e essa premissa foi mantida em toda a legislação posterior e até os dias atuais, inclusive na Constituição de 1988”, explica Maria de Fátima Dourado, integrante da equipe de advocacy da Coalizão Vozes do Tocantins pela Justiça Climática.

As legislações do Matopiba dão um cavalo de pau nessa regra. As mais recentes, do Piauí e do Tocantins, são explícitas. A Lei Complementar 244/2019, do Piauí, fala em reconhecer imóvel rural “cuja cadeia dominial [histórico cronológico de proprietários de determinado imóvel] não demonstre o regular destaque do patrimônio público para o privado”. A Lei 3.525/2019, do Tocantins, admite legalizar registros imobiliários “cuja origem não seja em títulos de alienação ou concessão expedidos pelo poder público”.

As mais antigas, de Maranhão e Bahia, não mencionam de forma textual a burla à regra da origem pública das terras, mas aceitam como prova do domínio privado transcrições de matrículas de imóveis e contratos registrados em cartório — documentos precários, muitas vezes obtidos através de falsificações e esquemas de corrupção. “Esse conjunto de legislações reconhece como sendo de domínio particular áreas que são públicas. O nome disso é anistia da grilagem”, condena Correia, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

Consultados, órgãos estaduais contestam essa visão. O Instituto de Terras do Piauí assegura que a Lei Complementar 244/2019 foi aprovada após amplo debate público e que não permite a regularização de terras griladas. “Pelo contrário, estabelece critérios rigorosos para que apenas ocupações dominiais e de boa-fé possam ser regularizadas”. O Interpi observa ainda que “matrículas válidas possuem fé pública e só podem ser anuladas por decisão judicial — portanto, não podem ser simplesmente desconsideradas pelo Estado”.

Já o Instituto de Terras do Tocantins informa que suspendeu todos os procedimentos de reconhecimento de terras com base na Lei 3.525/2019 “para garantir que não haja nenhum risco à segurança jurídica dos processos executados”, uma vez que a legislação é alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF).

Por fim, a Procuradoria Geral do Estado da Bahia não comentou a lei especificamente, mas disse “tem atuado com rigor técnico, responsabilidade institucional e absoluto zelo nas demandas relacionadas ao patrimônio público estadual”. A reportagem não recebeu respostas dos órgãos maranhenses, mas o espaço segue aberto para suas manifestações. A íntegra de todos os esclarecimentos pode ser lida aqui.

<><> Comunidades ameaçadas

Segundo o entendimento dos advogados ouvidos pela reportagem, as leis de terras dos estados do Matopiba afetam áreas que deveriam ser destinadas à reforma agrária, ao uso coletivo de populações tradicionais ou à preservação ambiental, aumentando a pressão sobre esses territórios.

Relatos de casos não faltam. No Piauí, por exemplo, um dos territórios mais assediados é a comunidade tradicional brejeira Melancias, no município de Gilbués. Lá, cerca de 50 famílias vivem e trabalham em culturas de subsistência, extrativismo vegetal, caça, pesca e criação de animais. A comunidade ocupa a área desde o final do século 19, segundo o relatório antropológico que subsidia o processo de reconhecimento.

Em abril deste ano, um mês depois da publicação do Decreto 23.692 pelo governo do estado, o Instituto de Terras do Piauí (Interpi) emitiu um parecer no qual contabiliza 32 fazendas sobrepostas ao território tradicional — 6 delas, com registro em cartório e 5 com processos abertos para análise de cadeia dominial ou reconhecimento de domínio.

No entanto, segundo artigo publicado por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em setembro do ano passado, as cadeias dominiais dos imóveis rurais inseridos no território Melancias “não possuem origem legal, ou seja, não comprovam o momento de destaque do patrimônio público”. O histórico de uma das fazendas analisadas pelos autores foi classificado como “uma ficção”.

Ainda assim, um homem que reivindica uma dessas propriedades protocolou um pedido de emissão de “Certidão de Regularidade Dominial Provisória” junto ao Interpi “em caráter de urgência”. Ele alega que o pedido é necessário “para dar andamento no processo de licença ambiental e consecutivamente ao processo de Certidão de Regularidade Dominial definitiva”.

“É um jogo: você pode solicitar uma autorização de desmatamento se você tiver uma certidão provisória de regularidade dominial. Ou seja, você não terminou o processo de reconhecimento de domínio, mas você solicita uma certidão provisória. Com essa certidão provisória, você desmata. Com o desmatamento, você fala que a sua ocupação é efetiva e então, pede o reconhecimento definitivo de domínio”, denuncia Maurício Correia.

Em 2020, a Justiça Federal concedeu, em caráter liminar, a suspensão de “qualquer atividade que represente perturbação da posse tradicional exercida pela comunidade de Melancias”. Porém, em outubro de 2023, um morador registrou boletim de ocorrência depois de ter sido ameaçado de morte por um invasor. Segundo o registro policial, o denunciante disse que a pessoa que iria tirar sua vida “já estava contratada”. O autor das ameaças teria dito também que iria “derrubar e retirar” as casas da localidade de Passagem da Nega, uma das seis comunidades do território Melancias.

O Interpi disse que a área passa neste momento por um procedimento jurídico que é “condição necessária para a caracterização oficial como terra devoluta”, mas que já solicitou o cancelamento de certificações de imóveis “que se sobrepõem ao território”, além de ter instaurado processos de fiscalização fundiária.

“O Interpi é um dos órgãos com maior atuação na regularização de territórios de povos e comunidades tradicionais do país, tendo 38 comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas, brejeiras e quebradeiras de coco babaçu já regularizadas”, complementa o órgão. “O instituto atua de forma contínua no combate à grilagem de terras públicas”, assevera.

<><> Falta de transparência

No Tocantins, os conflitos agrários se acentuaram desde a aprovação da lei de terras (Lei 3.525) em 2019, segundo a advogada Maria de Fátima Dourado. “Na comunidade quilombola do Rio Preto, um grupo de fazendeiros invadiu e tentou expulsar os moradores queimando as casas”, relata. Segundo dados que o Coalizão Vozes do Tocantins pela Justiça Climática recebeu do governo do estado, até o início de 2024, mais de 50 mil hectares já haviam sido regularizados com base na nova norma, ou seja, sem necessariamente respeitar a verificação completa da cadeia dominial. “Depois disso, o estado não passou novos dados, ainda que tenhamos solicitado. Estamos sem receber as informações”, lamenta.

O Intertins não respondeu para a reportagem qual a área já regularizada sob a nova lei, mas assegurou “o seu compromisso com o reconhecimento dos territórios quilombolas no Estado”, mencionando especificamente títulos concedidos recentemente às comunidades do Matão (Conceição do Tocantins) e o Quilombo Barra da Aroeira (Santa Tereza).

No Maranhão, a Comissão Pastoral da Terra tampouco consegue obter dados oficiais sobre o impacto da mais recente alteração no marco legal de terras estadual, promovida em 2023, quando a área que pode ser regularizada sem verificação da cadeia dominial passou de 200 hectares para 2,5 mil hectares.

“Como exemplo concreto, nós temos o quilombo Onça, em Santa Inês, no qual o Instituto de Terras do Maranhão já emitiu três títulos de propriedade para não quilombolas com base nesse dispositivo que trata da regularização da ocupação da nova lei”, revela Rafael Corrêa, da assessoria jurídica da CPT no estado.

O quilombo Onça, em fase final de reconhecimento, sofre há anos com o assédio de fazendeiros. A situação é tão grave que moradores da comunidade precisaram ser incluídos nos programas de proteção do estado. “Até o Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU já oficiou o Estado brasileiro sobre as medidas protetivas ao quilombo Onça, tamanha a violência que estava sendo cometida contra esse povo”, completa.

Corrêa salienta que nenhum dos três títulos concedidos até agora chega perto da nova dimensão estabelecida em 2023, mas a concessão dos documentos acendeu um sinal vermelho na comunidade. “Os títulos para não quilombolas foram emitidos sem ter sido feita uma consulta ao Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], que seria um passo elementar”, lamenta. “A sobreposição [da área das propriedades privadas] com a comunidade era conhecida, estava inclusive mencionada nos requerimentos”, observa.

“São áreas estratégicas ali dentro. O território está sendo atacado por vários fazendeiros em pelo menos 100 ações possessórias nas Justiças estadual e federal”, conclui.

A reportagem não recebeu nenhuma resposta proveniente dos órgãos públicos do Maranhão relacionados com o tema.

<><> Bahia, pioneira nas leis de terra

Entre os estados do Matopiba, a Bahia foi pioneira em ter uma lei de terras. Editou sua norma em 1975, já incluindo um dispositivo que reconhece “como do domínio privado, as terras objeto de transcrição no registro imobiliário”, desde que esses papéis remontem há pelo menos 15 anos da data da promulgação da lei — sem exigir o histórico da propriedade até o momento em que deixou de ser pública.

“É fundamental a gente perceber que a fronteira agrícola tem um momento de abertura e outro de expansão. No caso do Matopiba, o foco inicial foi o oeste da Bahia, 50 anos atrás, justamente quando chegam os primeiros grupos de fora do estado, atraídos por incentivos públicos, subsídios e isenções fiscais. Havia uma série de facilidades e muito crédito”, observa Maurício Correia, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

Em sua pesquisa de mestrado, Correia investigou esquemas de grilagem de terras na Bahia feitos a partir de documentos irregulares, que não comprovavam o correto destacamento do patrimônio público. “Só em 1980, eu identifiquei 1,5 milhão de hectares de terras cujos registros foram forjados com a participação de um juiz. Eu cheguei até 1,5 milhão, mas é muito mais do que isso. Acredito que vai chegar perto de 3 milhões de hectares só em 1980”, explica.

O esquema desvendado pelo advogado se soma a outros casos de corrupção do judiciário vinculados à grilagem de terras no estado. Um dos mais notórios é a Operação Faroeste, deflagrada em 2019, que demonstrou o envolvimento de desembargadores, juízes, advogados e produtores rurais na venda de decisões judiciais que legitimavam terras griladas na região.

“A trajetória da relação das comunidades tradicionais da Bahia com o Estado é trágica”, sugere Tatiana Emilia Dias Gomes, professora de Direito Agrário da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ela estuda comunidades tradicionais da Bahia, como as de Fundo e Fecho de Pasto, cuja principal característica é a criação coletiva de rebanhos em pastos nativos. “O Estado sempre silenciou e tentou eliminar essa forma de criar animais porque ela foge da lógica da propriedade privada individual. E em uma sociedade na qual a propriedade privada individual tem um valor sagrado, formas comunitárias de uso vão ser rechaçadas”, acredita.

<><> Ações apontam inconstitucionalidade

Em 2021, movimentos sociais que denunciam casos de grilagem de terras no Cerrado encaminharam uma representação à Procuradoria Geral da República (PGR) pedindo a abertura de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que abarcasse todas as leis de terras problemáticas dos estados do Matopiba.

“A usurpação de territórios de uso comum, sejam de povos indígenas ou tradicionais, de posseiros do segmento da agricultura familiar, ocupantes legítimos das terras públicas devolutas, tem sido o resultado do processo que alinha grilagem e desmatamento”, escreveram os autores.

Segundo Maurício Correia, um dos advogados que assinaram a solicitação, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão concordou com a tese de inconstitucionalidade, mas o então procurador-geral da República, Augusto Aras, arquivou o processo, alegando que as partes deveriam mover ações, separadas, por conta própria.

Nos casos da lei de terras do Tocantins e da alteração promovida em 2023 na legislação do Maranhão, isso se concretizou por iniciativa da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag). A entidade protocolou ações diretas de inconstitucionalidade no STF em dezembro de 2023 (Tocantins) e em janeiro de 2024 (Maranhão). Até agora, nenhuma das duas ADIs foram julgadas.

“Uma legislação que versa sobre a concessão de terras públicas em detrimento da sua destinação social aos agricultores e agricultoras familiares, ao público da Reforma Agrária, aos povos tradicionais, indígenas e quilombolas interfere diretamente na vida e nas expectativas desse público”, justifica a entidade na ADI sobre a lei do Tocantins.

“O que se pretende com a declaração de inconstitucionalidade é garantir a sobrevivência do bioma cerrado e dos povos que nele vivem e o reconhecimento da luta histórica do povo tocantinense por seu território”, defendem os advogados signatários.

A Advocacia-Geral da União (AGU) deu razão à Contag, opinando que a lei permite “a convalidação de registros de imóveis rurais realizados de modo precário”. A Procuradoria-Geral da República, embora tenha apontado falhas formais no processo, também reconheceu que o argumento tem sentido. O governo estadual e a Assembleia Legislativa do estado sustentam a constitucionalidade da norma e a legitimidade do processo legislativo. Questionada, a Procuradoria Geral do Tocantins registrou que “até o momento, não houve concessão de medida cautelar que suspenda, ainda que liminarmente, os efeitos das normas impugnadas”.

No caso do Maranhão, entretanto, a tese da Contag não conquistou o apoio da PGR e da AGU, que consideraram que as alterações foram feitas dentro do princípio constitucional. A ação foca na mudança recente da legislação que ampliou a área passível de regularização fundiária sem prova do devido destaque do patrimônio público, que passou de 200 hectares para até 2,5 mil hectares. No entanto, o dispositivo que sugere a regularização de imóveis grilados não teve origem nessa mudança, mas na legislação aprovada nos anos 1990. “Esse é o princípio que deveria ser atacado”, opina Rafael Corrêa, assessor jurídico da CPT.

A nova lei foi aprovada em regime de urgência e sancionada no mesmo dia, em 19 de dezembro de 2023. Além da ampliação da área passível de regularização, a norma determina que “não serão objeto de regularização fundiária as terras tradicionalmente ocupadas por população quilombola, quebradeiras de coco e demais povos e comunidades tradicionais”, o que despertou temor de que todos os processos de reconhecimento de comunidades tradicionais ficassem num limbo. A reportagem não recebeu comentários da PGE do Maranhão.

Na época da sua aprovação, o Ministério do Desenvolvimento Agrário publicou uma nota em que alertava que a lei “tem o potencial de fomentar uma verdadeira corrida pela grilagem de terras, inclusive mediante o uso da violência”. Entre outras críticas, salientou que o texto não estava em sintonia com as diretrizes da Constituição Federal, que determina que terras públicas sejam destinadas preferencialmente à criação de unidades de conservação ambiental e à demarcação de territórios tradicionalmente ocupados por comunidades tradicionais, além da reforma agrária. A lei, diz a nota, “estabelece total inversão na ordem de preferências, privilegiando o uso privado em detrimento do uso público das terras devolutas estaduais”.

 

Fonte: Por Naira Hofmeister, em O Joio e o Trigo

 

Vacinas contra câncer: veja quais estão sendo testadas e o que esperar

Recentemente, uma vacina experimental mostrou efeitos promissores no combate ao câncer em estudo, e se mostrou uma forte candidata a imunizante universal contra a doença. Mas, além dela, diversas outras vacinas estão sendo desenvolvidas e testadas ao redor do mundo para combater diferentes tipos de câncer -- e muitas têm trazido resultados animadores.

De maneira geral, as vacinas contra o câncer têm como objetivo "ensinar" o nosso sistema imunológico a reconhecer e atacar células tumorais -- assim como ele faz com vírus e bactérias, por exemplo. Muitos desses imunizantes testados utilizam informações dos tumores dos próprios pacientes, como mutações específicas -- são as chamadas "vacinas personalizadas", adaptadas ao câncer específico de cada pessoa.

"O intuito da vacina é, justamente, fornecer para o nosso corpo o que chamamos de neoantígenos, que seriam moléculas específicas do tumor, e mostrá-los para as células de defesa do organismo, em especial os linfócitos-T, que vão identificar e destruir essas células, além de gerar um excelente papel de memória imunológica antitumoral", explica Breno Jeha Araújo, oncologista da Oncoclínicas à CNN.

Essas vacinas estão sendo estudadas para o tratamento de tumores já desenvolvidos, mas também existem as vacinas preventivas, como a vacina contra o HPV, que previne o câncer de colo de útero, entre outros, e a vacina contra hepatite B, que previne o câncer de fígado.

"O desenvolvimento e a disponibilização de vacinas contra o câncer têm o potencial de induzir uma resposta imune e duradoura", afirma Araújo. "A vacina pode ter papel em diferentes fases da evolução do câncer, desde um paciente que já está com a doença avançada, até reduzir a chance do tumor voltar ou erradicar qualquer célula [cancerígena] que esteja passando pela circulação sanguínea", completa.

Alguns imunizantes também estão sendo testados para serem utilizados em conjunto com imunoterapia, para potencializar a eficácia do tratamento e, eventualmente, superar algum mecanismo de resistência do tumor. "Sem sobra de dúvidas, a possibilidade da vacina, seja sozinha ou junto com outras estratégias, gerar essa memória imunológica no nosso sistema imune pode revolucionar tanto a prevenção quanto o tratamento do tumor", afirma o oncologista.

A seguir, conheça algumas das vacinas que estão sendo desenvolvidas e testadas em ensaios clínicos e experimentais.

<><> Vacina universal contra câncer

Um dos imunizantes que tiveram seus resultados recentemente divulgados foi uma vacina universal experimental. Em estudo publicado na revista científica Nature Biomedical Engineering no último dia 18, o imunizante, quando combinado com imunoterapia, gerou uma forte resposta antitumoral em camundongos. Segundo pesquisadores, os resultados podem ter amplas implicações no combate a diversos tipos de tumores resistentes ao tratamento.

<><> Vacina contra câncer renal avançado

Em fevereiro deste ano, outra vacina apresentou resultados promissores em pacientes com câncer renal avançado. Publicado na revista Nature, o estudo mostrou que todos os nove pacientes de um ensaio clínico geraram uma resposta imune anticâncer bem-sucedida após receber o tratamento com vacina após cirurgia para remoção do tumor, reduzindo o risco de retorno do tumor.

<><> Vacinas russas contra câncer

Em dezembro de 2024, o governo russo anunciou que desenvolveu duas vacinas contra o câncer em parceria com diversos centros de pesquisa. Ensaios pré-clínicos demonstraram que a dose suprime o desenvolvimento de tumores e de potenciais metástases.

O Centro Nacional de Pesquisa Médica do Ministério da Saúde russo informou que trabalha com duas linhas de vacinas oncológicas. Uma delas é uma vacina personalizada que utiliza tecnologia mRNA, a mesma utilizada em doses contra a Covid-19.

O segundo imunizante é a Enteromix, formulada com base numa combinação de quatro vírus não-patogênicos que têm a habilidade de destruir células malignas e, simultaneamente, ativar a imunidade de pacientes contra um tumor. A previsão do governo russo é que as vacinas seriam distribuídas gratuitamente ainda em 2025.

<><> Vacina bacteriana contra câncer

Em outubro de 2024, pesquisadores da Universidade Columbia desenvolveram bactérias probióticas que educam o sistema imunológico a destruir células cancerígenas. Segundo os autores do estudo, publicado na revista Nature, as vacinas bacterianas podem ser personalizadas para atacar o tumor primário e as metástases, podendo prevenir recorrências futuras.

<><> Vacina personalizada contra câncer de intestino

Em junho de 2024, o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS, na sigla em inglês) anunciou que começou a testar vacinas personalizadas contra o câncer de intestino. O tratamento, ainda experimental, utiliza uma tecnologia baseada no mRNA, também chamado de RNA mensageiro.

As vacinas personalizadas contra a doença são criadas através da análise do tumor de um paciente que já tem câncer para identificar mutações específicas do seu próprio caso. Usando essas informações, os médicos criam a vacina individualizada, adaptada ao câncer específico de cada pessoa. Elliot Pfebve, de 55 anos, foi a primeira pessoa a receber a vacina em um hospital em Birmingham.

Vacina contra câncer de pele

Em abril de 2024, a farmacêutica Moderna, em conjunto com a MSD, anunciou que sua vacina contra câncer de pele, a mRNA-4157 (V940), começou a ser testada em pacientes com melanoma avançado em sua última fase de testes clínicos antes de ser submetida para aprovação dos órgãos reguladores.

Essa vacina também utiliza o RNA mensageiro e também é personalizada, ou seja, adaptada às necessidades de cada paciente de acordo com as características de cada tumor. O estudo de fase 3 avalia a eficácia do imunizante combinado com Keytruda (pembrolizumabe) - um medicamento imunoterápico contra o câncer de pele.

Nos testes clínicos de fase 2, a combinação demonstrou uma redução de 44% no risco de recidiva do câncer de pele ou morte em pacientes com melanoma de estágios III ou IV após três anos, em comparação com quem só recebeu Keytruda.

<><> Vacina contra câncer de fígado

Outra vacina personalizada, dessa vez para câncer de fígado, mostrou resultados promissores ao ser combinada com imunoterapia em um pequeno e inicial teste clínico divulgado em abril de 2024. O resultado foi aproximadamente o dobro da resposta geralmente vista apenas com a imunoterapia, segundo os pesquisadores.

Resultados do estudo preliminar, apresentados na Associação Americana de Pesquisa do Câncer em San Diego e publicados na revista Nature Medicine, sugerem que vacinas baseadas em mutações presentes apenas no tumor de um paciente podem impulsionar a capacidade do sistema imunológico de reconhecer e atacar cânceres difíceis de tratar.

<><> O que esperar para os próximos anos?

Segundo Araújo, os próximos passos no desenvolvimento de vacinas contra o câncer incluem mais estudos clínicos feitos em humanos, em especial combinando imunizantes com tecnologia de RNA mensageiro com tratamentos oncológicos já bem estabelecidos, como a imunoterapia.

"Sem sombra de dúvidas, depois que conseguirmos comprovar a eficácia e a segurança desse tratamento, precisaremos também lutar por acesso. Porque de nada adianta termos um tratamento se ele não estiver disponível para a população de maneira geral, rápida e acessível", afirma o oncologista. "Mas, com os avanços atuais, estamos cada vez mais perto de transformar essas vacinas em uma realidade para os pacientes", finaliza.

•        IA desenvolvida no Brasil pode facilitar o diagnóstico de câncer de pulmão

Uma ferramenta de inteligência artificial desenvolvida por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) pode facilitar a detecção de enfisema pulmonar ou câncer de pulmão em exames de tomografia computadorizada. As duas doenças podem se agravar de forma silenciosa durante anos, o que aumenta a importância do diagnóstico oportuno.

A ferramenta, chamada de ChestFinder, está sendo treinada para analisar bancos de dados abastecidos com imagens e laudos de outros pacientes, e identificar padrões visuais e textuais que indiquem a presença das doenças. O estudo foi iniciado há cerca de dois anos, no Hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói, ligado à UFF. Os primeiros resultados mostram que a ferramenta apresentou acurácia e sensibilidade significativas.

"É importante ressaltar que a ferramenta não fornece um diagnóstico, ela apresenta uma possível indicação que deve ser avaliada por um profissional. Entretanto, já com essa indicação, pacientes poderão ser encaminhados para acompanhamento especializado de forma mais rápida, o que ajuda na elaboração de diagnósticos precoces", ressalta o professor Daniel de Oliveira, do Instituto de Computação da Universidade Federal Fluminense.

De acordo com ele, a ferramenta será disponibilizada em repositório público, para que possa ser aplicada em outros hospitais que já armazenam laudos e exames digitalmente. O ChestFinder permite também que os médicos encontrem outros resultados compatíveis ou semelhantes aos do paciente, para analisá-los comparativamente, de acordo com o contexto clínico.

Além disso, de acordo com a professora do Departamento de Radiologia da Universidade Federal Fluminense Cristina Asvolins, o software pode sinalizar indício das doenças mesmo quando esse não for o objetivo principal do exame.

"Em qualquer serviço de diagnóstico por imagem onde o paciente realizou o exame de tomografia computadorizada de tórax, o resultado pode apresentar como achado incidental o enfisema ou nódulo suspeito. Por exemplo, serviços de emergência, onde esses achados não são o foco principal do exame", complementa a professora.

Cristina Asvolins destaca também que a inteligência artificial pode diminuir o tempo de espera até a confirmação do diagnóstico, e o custo econômico, já que tanto o enfisema como o câncer demandam menos intervenções quando descobertos em fase inicial, e têm um fator de risco bastante comum:

"O vício do fumo do tabaco é um complexo problema de saúde pública, econômico e social, e qualquer intervenção que possa contribuir para melhoria no diagnóstico será benéfico para a saúde da população. Descobrir um câncer, por exemplo, como de pulmão, numa fase inicial onde existe possibilidade de tratamento, traz muitos benefícios para o paciente e para a rede de saúde, seja pública ou privada."

 

Fonte: CNN Brasil

 

“A esquerda deve propor outros tipos de emoções e horizontes”, diz historiador argentino

Um espectro ronda o mundo: o espectro da extrema-direita. Javier Milei, na Argentina, Viktor Orbán, na Hungria, Donald Trump, nos Estados Unidos, e Johannes Kaiser, no Chile. Fala-se muito de uma onda de ultradireita que ameaça o mundo, algo que Pablo Stefanoni, doutor em História pela Universidade de Buenos Aires e autor do livro A rebeldia tornou-se de direita?, apressa-se a matizar. Observa a realidade mais como o momento em que determinados tipos de lideranças se veem favorecidos, com uma direita radical “encorajada e sem complexos” frente a um “progressismo que parece abatido”. Também é rápido em apontar as deficiências da esquerda diante desse avanço, com a perda da capacidade de se conectar com setores mais amplos da sociedade e imaginar futuros diferentes.

A famosa frase “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, cunhada originalmente pelo filósofo da pós-modernidade Fredric Jameson, nos anos 1990, posteriormente retomada por Slavoj Žižek e popularizada por Mark Fisher, em seu influente Realismo capitalista, parece descrever perfeitamente o momento político atual. Enquanto esses populismos de direita surgem em cena, com ramificações locais particulares – algo que Stefanoni destaca em sua análise –, capitalizando descontentamentos sociais, a esquerda parece ter se refugiado no politicamente correto e perdido a sua capacidade de rebeldia.

Sua análise conta com uma notável recepção em círculos políticos e intelectuais. Inclusive, já foi lido e comentado por figuras como Michelle Bachelet, em reuniões com os presidentes dos partidos governistas, para analisar o futuro do progressismo.

Na última terça-feira, 22 de julho, o historiador argentino participou do seminário Poder reacionário: Quatro teses sobre a ultradireita, realizado durante o Festival Democracia 2025, organizado por Rumbo Colectivo. Stefanoni dividiu um painel com o sociólogo Pablo Semán, a ex-secretária de Estado para a Agenda 2030 do Ministério dos Direitos Sociais da Espanha, Lilith Verstrynge, e a jornalista chilena María Olivia Mönckeberg.

Uma situação, como ele mesmo brincou, que traz o paradoxo de um encontro dedicado ao progressismo ter como tema central justamente a ultradireita, refletindo essa crise de imaginação que enfatiza. Ao final de sua fala, relativizou a ironia, afirmando que nos grandes encontros da direita reacionária o tema central também costuma ser analisar os “esquerdistas”, quase como uma mensagem para não cair nesse abatimento que atinge a esquerda.

Após o seminário, Stefanoni conversou com El Desconcierto para aprofundar essas tensões vividas no momento político atual.

<><> Eis a entrevista.

>>>> Crise de imaginação da esquerda

·        Você fala de uma crise da imaginação política da esquerda, relacionando-a ao realismo capitalista de Mark Fisher e à impossibilidade de pensar um futuro fora do capitalismo. De onde vem essa crise de imaginação da esquerda?

A crise tem vários fatores. Fisher fala do realismo capitalista como a dificuldade atual em pensar como substituir o capitalismo por outra coisa. Daí essa frase tão repetida: é mais fácil pensar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

Os projetos que propuseram substituir o capitalismo de forma rápida e maximalista - as revoluções socialistas do século XX - terminaram em regimes repressivos. A economia centralizada de comando que regia a União Soviética, o bloco do Leste e Cuba simplesmente não funcionou. Há um fracasso evidente, um esgotamento desse tipo de socialismo de Estado.

No entanto, os imaginários reformistas também se fragilizaram. Embora rejeitasse a revolução, a social-democracia histórica propunha um horizonte transformador que buscava enfraquecer gradualmente o capitalismo. Havia todo um ecossistema cultural e político em torno desses partidos: cooperativas, organizações civis, espaços que operavam fora do lucro privado. Essa estrutura dava sentido a um projeto de transformação que não dependia apenas do poder estatal.

·        Esse mundo social-democrata também parece ter se diluído...

Sim, esse mundo também se diluiu. Como disse Slavoj Žižek, criticamos a tese do fim da história, mas, no fim das contas, somos todos um pouco fukuyamistas na esquerda; também não temos muita imaginação política. As utopias são construídas a partir de experiências concretas - a Comuna de Paris, o movimento cooperativista -, mas quando essas experiências enfraquecem e surge outro tipo de sociabilidade mais individualista, torna-se muito difícil imaginar alternativas. As utopias não são construídas apenas de forma livresca, em um gabinete, mas, ao contrário, precisam de interação entre o intelectual e a dinâmica social. Isto parece muito enfraquecido hoje.

>>>> O distanciamento das classes populares

·        Fala-se muito de uma onda de ultradireita, algo que você se apressa a desdramatizar, falando mais de um momento que tende a esse tipo de liderança. Contudo, você também é crítico a esse progressismo que se prendeu a uma espécie de enclave centrista ou cujos discursos parecem mais ligados às classes médias acomodadas e instruídas. Qual é a responsabilidade do progressismo neste avanço?

Sim, a direita está ganhando muito terreno. Obviamente, a esquerda sempre teve um setor da elite dentro dela, mas havia uma conexão com o popular ou se buscava essa conexão, com mais ou menos sucesso, tanto na esquerda revolucionária quanto na reformista.

Quando olharmos hoje, a social-democracia se tornou muito elitista. As direções dos social-democratas estão muito longe de representar os trabalhadores como no passado. De fato, muitos de seus líderes, como Tony Blair, na Inglaterra, Felipe González, na Espanha, e Gerhard Schröder, na Alemanha, acabaram se tornando lobistas de grandes empresas, após deixarem o poder.

Por outro lado, a esquerda às vezes foi se fechando em certos temas que, embora muito importantes, a levaram para assuntos específicos, como gênero, minorias sexuais etc.

·        O que tem sido chamado de “woke”...

wokismo às vezes gerou certas formas de superioridade moral, de fechamento em certas temáticas. Não concordo que a esquerda não deva ser “woke”. O wokismo é um termo muito gelatinoso. A questão é que, muitas vezes, não são os temas que provocaram distanciamento, porque gênero ou diversidade sexual não são temas de elite. As mulheres trabalhadoras estão aí, os gays de setores populares também. A elitização foi gerada por certa linguagem e formas de abordar esses temas quase como capelas, em que para participar era preciso adotar uma terminologia muito difícil, quase para iniciados.

O que distanciou a esquerda dos setores populares foi também não encontrar soluções para os problemas materiais. Ultimamente, não se mostrou exitosa em termos econômicos e, muitas vezes, foi a social-democracia na Europa que fez os ajustes mais fortes destes anos.

·        Nessa interseccionalidade de raça, gênero e classe que tanto se menciona, a classe parece menos presente nesses novos movimentos, enfrentando a perda de centralidade do trabalho como horizonte de luta. Abrangendo também esses novos trabalhos precarizados que são a nova norma, como você explica este fenômeno?

A América Latina sempre teve muitos trabalhos precarizados, mas é verdade que tinha um movimento sindical mais forte e o tema da classe estava mais presente. As classes sociais também foram se transformando muito. No caso do norte global, a classe trabalhadora está muito atravessada pela imigração, de modo que não consegue uma unidade de classe como talvez tenha havido em outro momento.

Efetivamente, também há uma mudança nas subjetividades. Quase nenhum jovem almeja trabalhar na mesma empresa a vida toda, como antes, para entrar lá e comprar uma casa com um empréstimo. Tanto porque muitos não conseguem acessar a créditos devido ao valor da moradia, quanto porque existe uma ideia de liberdade que é diferente. A esquerda precisa lidar com todas essas mudanças sociais e tecnológicas, que ainda são difíceis de processar.

>>>> Novas utopias tecnológicas

·        Em relação a essas mudanças tecnológicas, neste mundo caótico, quem está oferecendo um horizonte de utopia são figuras como Elon Musk e outros que vêm do Vale do Silício, transformando o mundo a partir da tecnologia com o transumanismo. Musk compra o X e transforma a esfera pública digital. O que significa essa privatização das utopias?

Exatamente. Como menciona o escritor Evgeny Morozov, há um tipo de intelectual, legislador, oligarca, que são estes magnatas associados à tecnologia que tem a ambição de influenciar no debate político e, inclusive, possuem uma visão filosófica de para onde o mundo deve ir. Isto é novo.

Não que antes não havia empresários que financiavam partidos ou certas fundações que também incidiam, mas eles também ocupam o lugar intelectual. Conforme destaca Morozov, usam suas carteiras de investimento como argumentos filosóficos e não estão mais associados à imagem de um iate no Caribe, mas, sim, a bibliotecas e debates de ideias.

Quando Elon Musk compra o Twitter, tem o desejo de incidir no debate nessa esfera pública global e, em grande medida, consegue. Isto representa um desafio porque existe uma espécie de privatização da utopia: o transumanismo, a corrida espacial. No passado, eram mais os Estados, e agora é uma empresa que diz: “vamos para outro planeta”, inclusive, o planeta como uma utopia frente à crise climática.

Após a queda do Muro de Berlim, a esquerda teve medo de imaginar outro futuro, e por justas razões, pois as utopias tinham levado a regimes mais opressivos do que aqueles que buscavam substituir. Não obstante, mesmo o reformismo social pode incluir utopias no sentido de pensar em como gerar outras formas de sociedade, não imediatamente, mas mais por tentativa e erro.

Então, não devemos abrir mão dessa capacidade. Há um livro de Alejandro Galliano publicado na Argentina, chamado Por qué el capitalismo puede soñar y nosotros no?, que se refere exatamente a essa questão. E o “nós” seria a esquerda. Parece que esses sonhos acabaram confinados no Vale do Silício e em outros espaços das empresas tecnológicas.

>>>> O “baiteo” nas redes sociais

·        Nesta nova esfera pública digital, a direita e a extrema-direita estão estabelecendo discursos que forçam a esquerda a ir sempre atrás, desmentindo. Um exemplo é o que aconteceu com Axel Kaiser, que viralizou dizendo que o nacional-socialismo era de esquerda, gerando longos debates historiográficos nas redes para desmenti-lo. Como a esquerda deve lidar com essas novas pessoas que não temem mais dizer “sou de direita”, estabelecem seu discurso e passam do ponto para dizer que todo estatismo é de esquerda?

Há essa coisa que agora vem do jogo das redes, o “baiteo”, “baitear” os progressistas, como colocar as iscas e o progressismo morder. Então, o “nazismo é de esquerda”, claro, pegam coisas reais, sempre algum aspecto de que o nazismo tem uma faceta inclusive anticapitalista em um setor que finalmente perdeu, ou que se chama nacional-socialista, se é então “socialista”, “é de esquerda”.

Tudo isso não faz sentido porque qualquer historiador pode desmascarar rapidamente: como Hitler ascendeu ao poder e que tipo de aliança gerou. No entanto, isto não importa muito; que muitos historiadores passem a desmentir, porque a ideia já se instalou.

A dinâmica virtual ajuda muito nisso e atua constantemente com o “baiteo”. Os movimentos progressistas parecem estar sempre enfrentando as provocações, e a direita, como pode brincar mais com o racismo e a misoginia, torna-se talvez mais, entre aspas, “divertida” nas redes.

É verdade que o politicamente correto teve efeitos sobre esses movimentos, e às vezes se tornam um pouco previsíveis, chatos, e é do lado dos setores reacionários que parece surgir mais transgressão, o que muitas vezes atrai os jovens. Estão sempre correndo para responder e, em geral, não funciona muito porque não é uma questão de argumentos acadêmicos, mas de quantos retuítes ou curtidas a frase teve. A direita parece se divertir em trollar os “progressistas”, encontrar aí certo prazer e ver a indignação.

Javier Milei é um dos principais representantes. Encarna muito isto, talvez seja quase a expressão mais radical desta rebeldia transgressora de direita. Todo o seu estilo é de rockstar. Venceu as eleições recuperando o slogan do 2001 argentino, da grande crise, “que se vayan todos”.

·        E, de fato, Milei construiu todo um personagem baseado nessa transgressão permanente...

Exatamente. Jogou o tempo todo com uma lógica de transgressão de forma muito explícita, também em sua linguagem. É um presidente que insulta constantemente qualquer um que lhe enfrente: jornalistas, historiadores, economistas, chamando-os de ratos, baratas, “merdas humanas”, e isto também é uma forma de transgressão.

Há dois elementos aí. Efetivamente, o progressismo muitas vezes caiu em uma espécie de correção moralizante. Outras coisas, talvez estivesse correto que não pudessem ser ditas. Então, há um equilíbrio complexo aí.

Contudo, Milei atua com a transgressão e a liberdade de expressão, defendendo qualquer excesso como liberdade de expressão. No entanto, quando alguns jornalistas insinuaram que ele era nazista, levou-os à justiça. Há um padrão duplo constante na direita em relação à provocação e à liberdade de expressão.

A esquerda tinha formas de cancelamento, mas a direita também as tem, e isto se discute menos. Nos Estados Unidos, querem intervir na forma como se ensina nos colégios, censurar conteúdos. A liberdade de expressão que propõem também é de geometria variável.

>>>> O populismo como resposta

·        O Chile está passando por um momento populista que nos parece alheio. Sempre fomos aquele vizinho da América Latina mais organizado, que tinha uma esquerda social-democrata, e agora temos Kaiser de um lado, como populista de direita, Franco Parisi que se diz populista de centro, e Jeannette Jara com um populismo de esquerda. Diante dessa extrema-direita, desse populismo de direita, a resposta seria um populismo de esquerda?

A questão é que o termo populismo é muito amplo, o que é problemático. É mais complexo do que dizer: “enfrenta-se o populismo de direita com um populismo de esquerda”. Muitas vezes, enfrenta-se o populismo de direita com coalizões mais amplas, como faz Jeannette Jara. Embora ela possa propor essa clivagem, ocorre dentro de uma coalizão de centro-esquerda mais ampla.

Já foram escritas bibliotecas inteiras sobre o conceito e é bastante gelatinoso, mas não se reduz à questão povo-elite, embora isto seja muito importante no discurso populista. Essa clivagem pode ser produtiva na política, sobretudo se significa, como no caso de Jara, reivindicar uma origem popular diferente de uma política que no Chile foi muito elitista, mesmo no pós-ditadura.

Uma certa dose dessa corrente muitas vezes insufla vitalidade à política. Quando se pensa no sentido de Chantal Mouffe, que tensiona esse consenso institucional, insufla certo espírito democrático ao sistema.

·        E como você analisa o uso que Jara faz dessa narrativa de origem popular como crucial dentro de seu discurso?

Reivindicar uma origem popular se conecta com uma ideia de meritocracia que a direita usa muito e é uma ideia que pode ser reivindicada pela esquerda: “eu venho de setores populares e agora posso ser presidente do Chile”.

Em síntese, uma dose de populismo não faz mal em países onde a política se institucionalizou em excesso e a narrativa democrática precisa ser renovada. Em parte, os protestos foram nessa direção, mas depois geraram uma demanda por ordem muito forte.

Falava-se muito se os chilenos querem, finalmente, que o Chile se torne “entediante” de novo diante de todas essas crises. Parece que não: uma eleição entre Jara e Kaiser mostra que esse consenso centrista está erodindo e que as pessoas apostam em figuras mais disruptivas, tanto pela direita quanto pela esquerda.

>>>> As emoções na política

·        O populismo também se caracteriza por uma política das emoções, junto a lideranças carismáticas, pontos que Jara também cumpre. Como isto pode influenciar, e como a esquerda deve lidar com esse componente emocional?

O progressismo às vezes reage contra a extrema-direita reivindicando uma racionalidade absoluta. Na realidade, a política sempre foi uma mistura de debate mais racional com emoções, e estas não são ruins na política.

Tanto a direita quanto a esquerda têm suas estruturas de sentimentos, as coisas que as movem. A democracia também deve incluir certa emotividade, quando não se perde a alma da política.

Outra coisa é que seja pura emocionalidade ou que essas emoções levem a lideranças extremistas. Contudo, retirar a emocionalidade da política, como às vezes parece ser o desejo de certo discurso progressista frente a esta onda reacionária, parece-me um erro. A esquerda deve propor outros tipos de emoções e horizontes frente a sentimentos como o medo, a depressão e a ansiedade. Ela precisa de um discurso emocional e de reconstrução comunitária.

Há uma crise da ideia de comunidade e a direita, muitas vezes com o nativismo e a xenofobia, propõe uma reconstrução baseada na comunidade étnica nacional. A esquerda deve buscar formas de reconstruir a comunidade e o espaço público como parte da reconstrução do Estado social.

 

Fonte: Entrevista de Matias Rojas, para El Desconcierto - tradução do Cepat, em IHU