Monopólios
e poucas regras: como iFood e Uber transformam o Brasil em um laboratório de
trabalho
O
Brasil é um laboratório das plataformas digitais de trabalho. Essa é a
avaliação de Sidnei Machado, professor da Universidade Federal do Paraná e
organizador de uma nova pesquisa sobre como plataformas de trabalho digital
exercem controle direto sobre milhões de trabalhadores brasileiros, sem
reconhecer direitos básicos e com pouquíssima interferência do estado.
A
publicação, coordenada pela Clínica de Direito do Trabalho da UFPR e lançada
nesta quarta-feira, 18, reúne vários artigos que mostram como a falta de
transparência, combinada à enorme concentração do mercado, dominado por poucas
plataformas, criam um terreno fértil para a exploração dos trabalhadores – em
um mercado que explodiu no país nos últimos anos.
A
começar pela baixa remuneração dos profissionais: quase 60% dos entrevistados
recebem menos de dois salários mínimos por mês. Entre as mulheres, a proporção
de baixa renda é ainda maior. E mesmo entre os trabalhadores com ensino
superior, comuns nas atividades online, as condições permanecem precárias.
Os
dados coincidem com outra pesquisa sobre o tema, realizada pela rede Fairwork,
da Universidade de Oxford, que mostrou que os ganhos abaixo do salário mínimo
eram a regra no Brasil, além de longas jornadas e falta de diálogo com as
empresas.
“O
Brasil tornou-se um terreno particularmente fértil para a expansão e
experimentação do modelo de negócios das plataformas digitais de trabalho”,
afirma Machado. “Entretanto, essa centralidade contrasta com a ausência de um
marco regulatório voltado à proteção dos direitos dos trabalhadores”.
Segundo
a pesquisa, entre 2021 e 2024, o número de trabalhadores em plataformas
digitais saltou de 1,53 milhão para 2,3 milhões no Brasil — um crescimento de
48%, segundo análise de tráfego digital feita pelos pesquisadores. “Em apenas
três anos, portanto, o número de trabalhadores sob controle de plataformas
digitais cresceu proporcionalmente mais do que qualquer setor da economia
brasileira”, dizem os pesquisadores.
Mais de
92% dessas pessoas atuam em serviços baseados em localização, como transporte
de passageiros e entregas.
O
estudo estimou que a Uber, sozinha, concentra cerca de 900 mil motoristas
ativos no país, o que faz do Brasil o segundo maior mercado da empresa no
mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.
Para
entender o funcionamento dessas plataformas, os pesquisadores combinaram
análise de tráfego digital com bases de dados públicas e entrevistas. Os dados
foram obtidos por meio da plataforma Similarweb, cruzados com a PNAD Contínua e
aprofundados por meio de um questionário respondido por 492 trabalhadores.
Também foram realizadas entrevistas em profundidade com motoristas,
entregadores e profissionais do setor de todo o Brasil.
“A
metodologia que desenvolvemos ajuda a romper uma barreira importante no debate
público: saber quantos são esses trabalhadores, em que plataformas atuam e
quais suas condições”, explica Machado. “Sem esse diagnóstico, não há política
pública possível”.
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O algoritmo como patrão
A
pesquisa mostra um trabalho fragmentado, precarizado e profundamente controlado
por algoritmos. São esses sistemas opacos que distribuem tarefas, impõem metas,
aplicam punições e, frequentemente, decidem quem pode ou não continuar
trabalhando.
Nicolas
Souza Santos, secretário da Associação dos Motoboys, Motogirls e Entregadores
de Juiz de Fora, descreve esse controle como “patronal, clássico, só que sem a
figura física do patrão”.
Segundo
ele, regras como a pontuação dos trabalhadores, a saúde da conta e as promoções
forçam os trabalhadores a permanecerem conectados e ativos, sob o risco de
perderem acesso às melhores corridas ou até serem bloqueados.
“É um
jogo onde a gente vai se moldando às regras que mudam o tempo todo, sem saber
exatamente quem decide ou por quê. Mas quem não segue, perde”, afirma.
‘Elas
usam o discurso da liberdade econômica e da suposta inovação tecnológica para
contornar a lei trabalhista e a jurisprudência dos tribunais.’
“As
plataformas criam zonas cinzentas onde não é possível dizer claramente o que é
ou não relação de trabalho. Elas operam no limite da legalidade, evitando
vínculos e driblando decisões judiciais”, complementa Sidnei Machado. “É um
modelo camaleônico.”
Ao
Intercept, o iFood e a Uber delegaram a resposta aos questionamentos à
Associação Brasleira de Mobilidade e Tecnologia, a Abomitec, entidade que faz
lobby para as empresas. A associação reiterou “que o formato estabelecido pela
CLT não se adequa à realidade de trabalho criada pelas plataformas
tecnológicas” e que “a relação entre plataformas e profissionais independentes
não caracteriza vínculo de emprego.
A
Abomitec mencionou também que uma pesquisa conduzida pelo Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento, o Cebrap, estimou que hoje o setor tem 2,2 milhões de
trabalhadores – número próximo ao apontado pela UFPR.
Segundo
o estudo do Cebrap, a renda líquida dos motoristas fica entre R$2.925 e R$4.756
por mês e dos entregadores entre R$ 1.980 e R$ 3.039. A Abomitec sublinhou que
são “ganhos superiores ao salário mínimo e à remuneração média do mercado para
pessoas com a mesma escolaridade”.
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Zonas cinzentas e monopólios
O
estudo mostra que as plataformas tiveram papel inovador e catalisador nessa
nova organização do mercado de trabalho que ficou conhecida como ‘uberização’ –
mas ressalta que esse é um fenômeno resultante de décadas de um processo de
precarização, com retiradas de direitos e garantias. Isso aconteceu,
principalmente, com a eliminação de limites sobre jornadas e remuneração, assim
como a transferência de custos e riscos do trabalho.
“Trabalhadores
estabelecem para si metas cotidianas de remuneração que garantam sua
sobrevivência, mas os meios para alcançar tais metas estão nas mãos das
empresas. Na
prática,
trabalhadores encontram-se disponíveis para o trabalho, estando subordinados a
critérios de distribuição obscuros ou informalizados, expostos a variações no
valor do trabalho, e podem ser penalizados de forma mais ou menos clara sobre a
recusa de trabalho”, diz o estudo.
O
estudo também destaca a concentração do mercado, especialmente no ecossistema
baseado em localização, com domínio da Uber e 99. “Tal evidência reforça nossa
hipótese de trabalho de que as plataformas que operam no ecossistema denominado
“location- based” imprimem um padrão competitivo que depende fortemente da
concentração do mercado e da busca por crescentes graus de monopólio”, dizem os
autores.
A
ausência de regulação, apontam os autores, não é um descuido — é parte do
modelo de negócio das plataformas. Em vez de se adaptarem à legislação, essas
empresas exploram as lacunas legais para expandir mercados, transferindo os
custos e riscos aos trabalhadores.
“As
empresas cresceram explorando o vazio de regulamentação. Elas usam o discurso
da liberdade econômica e da suposta inovação tecnológica para contornar a lei
trabalhista e a jurisprudência dos tribunais”, ressalta Machado.
A
pesquisa também analisou mais de 4 mil decisões judiciais sobre o tema. Os
dados mostram um cenário de incerteza: embora haja julgamentos que reconhecem
vínculo empregatício, a maioria das decisões ainda se baseia na tese da
autonomia contratual.
“O
direito do trabalho desse setor está em disputa”, resume Machado. “Os tribunais
enfrentam dificuldade para compreender o novo tipo de subordinação imposta
pelos algoritmos.”
No
Congresso, o debate também patina. O Projeto de Lei Complementar 12/2024,
apresentado pelo governo Lula no ano passado, propõe reconhecer os motoristas
de app como autônomos com acesso à Previdência, mas exclui os entregadores. Já
o Projeto de Lei 2479/2025, de Guilherme Boulos, propõe tarifa mínima para
serviços de entregas e algumas regras de proteção do trabalhador,
independentemente da existência ou não de vínculo de emprego.
Conhecido
como “PL do Breque”, ele foi construído coletivamente após mobilizações
nacionais, segundo Nicolas Souza Santos. “Queremos uma resposta concreta da
política para o que colocamos nas ruas. Se o Congresso não ouvir agora, vai
ouvir nas urnas no ano que vem”, aponta.
Ele
enfatiza que o projeto busca garantir um mínimo de proteção, como tarifa base,
indenização de custos e direitos previdenciários, frente a um modelo que impôs
precariedade sistemática desde sua chegada ao país.
O
estudo propõe, ainda, um conjunto de diretrizes para políticas públicas para o
setor. Entre elas estão a incorporação periódica de dados sobre o setor nas
pesquisas do IBGE, como a PNAD Contínua, a obrigatoriedade de transparência por
parte das empresas, com divulgação pública do número de trabalhadores ativos, e
a ampliação da proteção previdenciária a todos os trabalhadores
plataformizados, inclusive os que atuam em regime remoto.
“A falta
de dados confiáveis sempre foi uma barreira enorme”, reforça Machado. “Hoje
temos uma fotografia mais clara. Mas ainda precisamos de um marco regulatório
que enfrente a lógica de informalização e precarização imposta pelas
plataformas.”
Fonte:
Por Jess Carvalho, em The Intercept

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