Crônica
de um espaço do futuro das feiras
Elas
têm origem milenar. Começaram como pequenos entroncamentos de caminhos entre
povoados, locais onde as condições para uma pausa e o compartilhamento de
alimentos e utensílios pareciam favoráveis. Se diversificaram e se
multiplicaram pelos territórios de várias regiões, conforme as práticas de
troca e, posteriormente, de comercialização de produtos foram se enraizando na
cultura de diferentes povos, ao redor do mundo.
Estamos
falando das feiras. Se hoje temos um sistema internacional de produção,
distribuição e consumo de bens, é porque passamos pelo desenvolvimento desses
espaços de reunião de pessoas que tinham o que fornecer umas para as outras e
se articularam geograficamente para facilitar esse processo.
Sim,
primeiro, essas pessoas vieram carregando nas costas (próprias ou de animais
não humanos) seu farnel, seja ele composto por hortaliças, frutas, cestos,
galinhas, peças de couro, de metal ou de barro. Estenderam suas esteiras de
palha no chão e distribuíram essas preciosidades sobre elas, apresentando-as a
quem circulava por ali, na espera de fazer bons negócios.
Então,
vieram meios de transportes, equipamentos para acondicionamento e sistemas
financeiros mais sofisticados, até chegar nos estandes hightech que vemos em
boa parte dos grandes festivais de hoje – que movem fortunas e envolvem
milhares de seres humanos de diferentes regiões do planeta. E que vão muito
além da exposição e comercialização de comidas e utensílios domésticos,
apresentando produtos de setores dos mais variados, muitos deles voltados à
própria indústria – inacessíveis (e até irreconhecíveis) para o que chamam de
consumidor final.
Mas não
é que as velhas e boas feiras livres – com bancas de frutas, hortaliças, carnes
e cacarecos utilitários simples para usarmos em casa – não só sobreviveram,
como ainda são responsáveis pelo abastecimento de boa parte da população
brasileira? E seguem sendo espaços multissensoriais, mesclando sabores, cores,
aromas (ou fedores), gritos e barulhos, durante as manhãs de cidades nos quatro
cantos do país. Caminhar dentro de uma delas é um mergulho em uma experiência
sinestésica que nos conecta com uma chama ancestral. Totalmente diferente de
fazer uma compra através do mundo plastificado ou virtualizado que domina
outras formas de venda e aquisição de produtos.
• Quem vende o que produz?
Atravessadores
e mais atravessadores: normalmente é pelas mãos de vários deles que uma
mercadoria costuma circular nos dias de hoje. Por vezes, essa circulação
envolve diversas etapas de produção e países de continentes diferentes, já que
o neoliberalismo imposto nas últimas décadas escancarou de vez as fronteiras e
reduziu drasticamente a soberania das nações, sobretudo as do sul global. É
assim que eu e você deixamos de olhar nos olhos de quem trabalhou para que um
determinado produto adquirido no mercado, seja físico ou online, chegasse até
nós.
Mesmo
nas feiras livres das grandes cidades, como São Paulo, é muito difícil termos a
oportunidade de comprar um alimento ou utensílio diretamente de quem o
produziu. Em geral, o caminho passa por centrais de abastecimento que recebem
itens de um amplo conjunto de territórios, após circularem em caminhões de
empresas de transporte por estradas que podem ter centenas ou milhares de
quilômetros. Frescor não é bem o caso nesse circuito longo de produção,
distribuição e consumo.
Isso
significa que, em geral, não sabemos quase nada sobre a origem de um alimento
que compramos na maioria das feiras urbanas. Esse distanciamento dificulta que
olhemos para essa comida como algo que tem uma dimensão que vai além da
materialidade, que tem vínculos ambientais, sociais, culturais e até
espirituais com territórios e épocas. Tudo vira simples mercadoria: pague o
preço (ou pechinche, no caso da feira livre) e ela é sua. Ponto final.
Felizmente
ainda há ações de resistência a essa frieza mercadológica e elas permitem que
agricultores e agricultoras ofereçam o que cultivam ou produzem (no caso de
itens que passaram por algum tipo de beneficiamento) diretamente para quem vai
consumir essa produção. Uma das maiores possibilidades dessa “intimidade”
ocorrer se dá nas feiras agroecológicas, que costumam ser realizadas para
trazer alimentos locais ou regionais a comunidades com diferentes níveis de
poder aquisitivo, conforme o bairro, a cidade e as organizações envolvidas.
Quem quiser descobrir se há uma nas proximidades de seu local de moradia ou até
ter uma noção de como elas se distribuem pelo país, pode dar uma olhada no mapa
online feito pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC.
Se
nossas feirinhas solidárias de comida de verdade costumam ter dimensões
modestas, isso não significa que não é possível ampliar sua escala e criar
versões turbinadas, capazes de reunir milhares de pessoas, e não destoar tanto
em números das grandes feiras promovidas pelo setor agroalimentar. E a maior
prova disso pôde ser apreciada durante a primeira quinzena deste mês.
• Quando a megacidade vira roça
Se
junho é conhecido por ser o mês do Meio Ambiente, maio também foi um período
cheio de datas significativas do ponto de vista ambiental. Celebramos o Dia
Internacional das Abelhas (20/05) e o Dia Internacional da Biodiversidade
(22/05), além do dia das mães, quando não podemos deixar de lembrar da nossa
madre das madres, a nossa Pachamama. E podemos dizer que, neste ano, pudemos
celebrar com muito vigor essas datas comemorativas, apesar de todos os
perrengues enfrentados dentro de uma sociedade dominada por relações
político-econômicas devastadoras. Podemos atribuir tamanho “milagre” a um
encontro que ocorreu na maior cidade do país, São Paulo, entre os dias 8 e 11:
a Feira Nacional da Reforma Agrária.
Em sua
quinta edição, regida pelo lema “Agroecologia: produzir alimentos e enfrentar a
crise climática”, e completando 10 anos de (re)existência, o evento chacoalhou
as estruturas paulistanas, ao transformar novamente um de seus parques urbanos
mais conhecidos, o Parque da Água Branca, em um território repleto de
biodiversidade comestível, cultura popular autêntica, sotaques de todos os
cantos do país e relações fraternas e justas entre quem circulou por lá. A
vibração sentida in loco é algo impossível de ser transmitido, mas os números
ajudam a dar uma dimensão do que se deu.
Mesmice
de sabores? Nem pensar! Foram cerca de 2 mil tipos de alimentos, vindo de todos
os biomas brasileiros. Frutos, castanhas, grãos, raízes, farinhas, conservas,
bebidas, doces… tudo feito no capricho por agricultores e agricultoras do
Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Sem Terra, o MST, única força
social capaz de enfrentar, mesmo que com suor e sangue, a fúria massificadora
do sistema do Agronegócio globalizado. Se deu pra perceber que, ao contrário do
que este último costuma oferecer, com sua falsa multiplicidade de produtos
comestíveis, na nossa feira variedade não faltou, também fica evidente que a
quantidade foi bem expressiva, somando 580 toneladas de alimentos
comercializados e 40 toneladas de alimentos doados, já que a solidariedade
nunca abandona as ações do MST.
Sabe
aquelas praças de alimentação dos shoppings? Então imagine o oposto delas! Ao
invés das mesmas redes transnacionais de fast food que imperam nos grandes
centros de compras ao redor do mundo, o Parque da Água Branca se encheu de
sabores caseiros, trazendo pratos tradicionais dos nossos territórios,
preparados com o que a natureza tem de mais sagrado. É a Culinária da Terra,
que ofereceu 143 pratos típicos de 23 estados, sendo um ponto forte do encontro
e a fonte da energia que possibilitou que as pessoas presentes acompanhassem
uma programação política e cultural de tirar o fôlego: 35 seminários e
oficinas, 357 artistas e mais de 40 grupos culturais.
Afinal,
comida é sempre uma forma de manifestar a cultura dos povos e comer é sempre um
ato político, como entoamos em nossas ações artivistas. Por falar em política,
a quinta Feira da RA ocorreu em um momento nevrálgico da história do parque que
sempre a abrigou – e que é protegido por dois tombamentos, do Condephaat e
Conpresp, e pela legislação ambiental pertinente aos parques urbanos,
considerados pertencentes às Zonas Especiais de Proteção Ambiental (Zepams) e
às Áreas de Preservação Permanente (APPs).
Na
esteira da privataria do patrimônio da população paulista, o governo Tarcísio
tem permitido a violação do local, o que se percebe pela escandalosa obra da
Fazenda Churrascada e pela substituição de vários jardins (tombados e em
harmonia com a fauna do parque) por versões massificadoras criadas por
expoentes da Casa Cor. Assim, louvar a cultura camponesa com a exuberância da
Feira Nacional significou um contraponto ao processo de descaracterização que o
parque (e toda a cidade) vem sofrendo. Voltemos a ela…
• Do micro ao macro e vice versa
Talvez
você esteja se perguntando como foi possível ter tamanha fartura para nutrir
nossos corpos, nossas coletividades e nossas almas, atingindo um público que
chegou a 300 mil pessoas, envolvendo 2 mil militantes e 180 cooperativas. A
resposta está nas relações estabelecidas entre as esferas locais, as regionais
e a nacional. O MST se distribui pelos territórios, organizando integrantes
desde pequenos povoados, para que atuem localmente. Mas faz um trabalho em
rede, de modo que cada homem e cada mulher que participam do movimento tenham
consciência do que acontece no país e no mundo, agindo para somar seus esforços
em uma ampla teia de mobilização. É assim que consegue avançar na produção de
comida saudável, apresentando um caminho radicalmente diferente do apresentado
pelo Ogro.
Essa
forma de organização inspira os demais movimentos agroecológicos e ajuda a
fortalecer iniciativas em escalas bem mais modestas, mas nem por isso menos
fundamentais. Voltando às pequenas feiras solidárias sobre as quais falamos
anteriormente, quem faz parte da sustentação de uma delas sabe muito bem das
dificuldades para que elas não sucumbam frente às pressões diárias da vida
dentro do capitalismo neoliberal. Desde a resistência de quem planta e sofre
vários tipos de assédio cometidos por quem quer tomar suas terras, até a
dificuldade de encontrar espaços dispostos a acolher uma feira, passando pela
logística de transporte e armazenamento, é necessário dedicar tempo e energia
para que a iniciativa siga viva.
No
entanto, há braços nas roças, nas florestas e nas cidades que não poupam
esforços para manter um conjunto variado de feiras agroecológicas em pleno
funcionamento. Mesmo nas quebradas, onde a grana é curta e a infraestrutura é
rala, existem iniciativas que nos mostram que é possível nadar contra a
corrente. Uma delas ocorre, mensalmente, no Jardim Monte Kemel, comunidade da
região da Vila Sônia, na capital paulista. Trata-se da Feira de produtos da
RAMA, a Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras do Vale do Ribeira, que
reúne mulheres de fibra, uma parte delas de origem indígena e quilombola, numa
trama de afeto e partilha.
Para
que as delícias da rede cheguem a preços acessíveis à população – sem deixar de
gerar rendimentos justos a quem as produziu -, há um conjunto de organizações
de apoio, articuladas num coletivo chamado EsparRama, que, assim como ocorre
com o cultivo na roça, retratado encantadoramente no filme Vida em Mutirão,
também conta com um intenso protagonismo feminino. Pois RAMA e EsparRama
encontraram acolhida no Espaço Cultural Monte Kemel, um lugar que abriga outras
ações de convívio e formação na comunidade, ativo há mais de duas décadas.
Foi
justamente esse local de cidadania e solidariedade que acolheu o Projeto
Agroecologia no Prato, uma iniciativa de movimentos sociais que atuam no
município de São Paulo, apoiada por uma emenda parlamentar ao orçamento da
Bancada Feminista do PSOL. Através do SEFRAS, Ação Social Franciscana,
proponente oficial junto à Secretaria Municipal do Desenvolvimento Econômico e
Trabalho, e de organizações como o MUDA, Movimento Urbano de Agroecologia, o
Coletivo Banquetaço e a Campanha Gente é Pra Brilhar, Não para Morrer de Fome,
o projeto teve início em janeiro deste ano e acaba de concluir o atual ciclo de
atividades.
• Celebrar o ciclo que se completa e
cultivar novos ciclos
Durante
estes 5 meses, dois cursos formativos foram ministrados: Formação em
Agroecologia e Formação em Cozinha, Cultura Alimentar e Ecogastronomia. As
turmas foram formadas através de um chamamento e de uma seleção cuidadosa,
dando preferência para pessoas negras, LGBTQIA+, integrantes de movimentos
sociais e moradoras da região. Com cerca de 20 participantes em cada curso, as
aulas uniram teoria e prática em um processo de construção conjunta do caminho
percorrido. Dentro dele, a cozinha do local foi melhor equipada e a horta do
quintal ganhou novos canteiros, árvores nativas e espécies medicinais, além de
uma nova composteira, apta para receber o que sobra da cozinhança e gerar
nutrientes para enriquecer o solo.
Se,
como acabamos de mencionar, o ciclo alimentar contou com um cuidado atencioso
para se completar, rompendo com a linearidade imposta pelo modelo econômico do
capital (baseado na fragmentação, no desperdício e na geração de resíduos
sólidos poluentes), outro ciclo também foi alvo desse cuidar. Estamos falando
do próprio ciclo de vivências que, além das aulas, também contou com atividades
abertas à comunidade, como quatro mutirões de cultivo e um cinedebate, composto
por curtas inspiradores e pela presença de mulheres guerreiras que constroem o
dia a dia de movimentos do campo e da cidade.
Para
finalizar esse ciclo em clima de celebração, como ele merece, o Agroecologia no
Prato realizou, junto com a Esparrama, uma edição especial da feirinha
agroecológica que ocorre todo mês no Monte Kemel. Foi a primeira FESTEIRA, uma
mistura de festa com feira, repleta de alimentos biodiversos da agricultura
familiar, comidinhas preparadas pelas duas turmas dos cursos, atividades na
horta e uma programação cultural para espantar a monotonia, com teatro de
mamulengos, maracatu, sarau de poesia, inauguração de biblioteca e arteiragens
para todos os gostos e idades.
Como
não poderia deixar de ocorrer, uma roda de conversa com representantes de
movimentos sociais, como a própria RAMA e o Movimento dos Pequenos Agricultores
(MPA), trouxe a esfera política do projeto para brilhar no palco. A partir da
pergunta “como podemos ter Agroecologia no Prato do povo?”, foi possível
refletir, compartilhar experiências e nutrir o ativismo de quem luta por comida
de verdade, justiça social e equilíbrio ambiental, para que novos ciclos possam
ser tecidos e tenhamos mais forças para dar os passos necessários rumo ao que
acreditamos.
Um
entrelaçamento bonito dessa iniciativa em escala local com a Feira Nacional da
Reforma Agrária, marco político no cenário do país, se deu com a participação
das alunas e alunos dos cursos nas atividades que esta última promoveu,
inclusive nos bastidores. É que algumas pessoas do curso de cozinha foram
voluntárias na cozinhança dos quitutes oferecidos pela Culinária da Terra,
convivendo com militantes do MST na jornada. Quer estágio político-culinário
mais expressivo do que esse?
Que
venham muitas outras feiras agroecológicas por esse mundão afora. Sejam
pequeninas, com uma mesinha de hortaliças e poucas sacolas cheias, sejam
feironas de impacto nacional, com centenas de bancas pulsantes de alimentos e
uma multidão de gente partilhando tesouros comestíveis de tradições camponesas
do norte ao sul do país, esses espaços de resistência são fundamentais na
jornada pelo fim da fome, pela democratização do acesso à terra, pela
regeneração da natureza e pela plenitude da vida.
E aí,
freguesia, bora provar o sabor incomparável da soberania alimentar?
Fonte:
Por Suzana Prizendt, em Outras Palavras

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