quarta-feira, 4 de junho de 2025

Cleidi Pereira: Livro resgata entrevista em que Ustra admitiu tortura

Muito já se falou sobre as atrocidades praticadas contra presos políticos pelo coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, o major Tibiriçá, como era conhecido nos porões da ditadura militar.  

De setembro de 1970 a janeiro de 1974, ele comandou o DOI-Codi, do II Exército, em São Paulo. Era o órgão encarregado da repressão. Funcionava como centro de tortura dos presos políticos.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) lista pelo menos, 50 mortes no DOI-Codi paulista durante o tempo em que Ustra o chefiou. E a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo reuniu 502 denúncias de tortura no DOI-Codi nesse mesmo período.

Ustra foi o primeiro militar condenado como torturador pela Justiça brasileira. A primeira sentença saiu em 2008 em ação pela família Telles, em 2005.

Em 1972, Maria Amélia, o companheiro César Augusto, os filhos Edson e Janaína e Criméia Schmidt de Almeida foram levados para o DOI-Codi. Edson e Janaína tinham 4 e 5 anos de idade, respectivamente. Criméia, irmã de Amelinha e tia das crianças, estava grávida de 7 meses.

Em 2008, em decisão histórica, o juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível da cidade de São Paulo, reconheceu a responsabilidade de Ustra pelas violências contra a família Teles. O magistrado classificou o DOI-Codi de Ustra como uma “casa dos horrores”, onde se cometiam “ilícitos absolutos”.

A defesa de Ustra recorreu. Em 2012, a Justiça negou.

Em 2014, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) sacramentou a sentença de tribunais inferiores e reconheceu Ustra como um torturador. É o único militar condenado por tortura.

Em 15 de outubro de 2015, aos 83 anos, faleceu condenado, mas impune.

Diante desse mínimo e tenebroso retrospecto, pergunto aos nossos leitores e leitoras: se Ustra estivesse vivo, alguém de vocês ficaria espontaneamente cara a cara com ele por quase três horas?

Pois, em 2014, a jornalista gaúcha Cleidi Pereira teve essa baita coragem.

Na época, a jovem repórter de apenas 26 anos do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, foi sozinha à casa de Ustra, para entrevistá-lo.

Em 23 de março de 2014, o Zero Hora publicou a entrevista em matéria de quatro páginas. 

‘’Essa entrevista foi o mais próximo que Ustra chegou de uma confissão”, afirma Cleidi Pereira num relato inédito.

”Pela primeira vez, Ustra, num lapso, admite o que passou a vida negando: a tortura por meio da realização de interrogatórios contínuos, sem que o preso pudesse dormir’’.

Eu li um PDF da entrevista publicada.

Cleidi não se intimidou.

Fez perguntas difíceis, mesmo quando Ustra parecia irritar-se.

Zero Hora, porém, não fez jus ao trabalho inédito da repórter. 

A edição do material foi lamentável, tanto do ponto de vista jornalístico quanto ético.

Ignorou o fato de a repórter ter conseguido o furo de Ustra admitir pela primeira vez a tortura.   

Para a manchete da capa, pinçou uma frase do torturador: “Excessos podem ter havido de ambos os lados’’. Internamente, outra: ‘’Todos dizem que foram torturados’.

Àquela altura, 2014, as atrocidades cometidas por Ustra contra presos políticos já eram bastante conhecidas e não cabiam títulos que dessem margem a minimizar os crimes dele. 

Além disso, o jornal não se posicionou editorialmente a respeito dos atos criminosos imputados a torturador. Foi como se ignorasse quem era Ustra.

”A edição da entrevista e sua apresentação na capa do jornal opera uma relativização dos crimes imputados a Ustra, uma atitude que segue vigente 50 anos depois do golpe civil-militar que derrubou o governo constitucional de João Goulart. Golpe de Estado, aliás, que foi apoiado pela maioria dos grandes veículos da imprensa brasileira, incluindo aí o jornal Zero Hora”, observou o jornalista Marco Weissheimer, em artigo no Sul21, de 24 março de 2014.

”O que fica é a versão de um lado da história e, mais do que isso, o reforço da tese de que ‘houve excessos dos dois lados’ e, implicitamente, que o melhor a fazer é esquecer tudo isso”, acrescentou.

Onze anos depois, Cleidi Pereira retoma a entrevista histórica no livro Confissões de um torturador: a última entrevista do coronel Ustra, publicado este ano pela editora Insular, de Florianópolis.

Cleidi nos conta aqui um pouco do livro:

”Além da entrevista praticamente na íntegra, eu narro os bastidores. Eu optei por contar as histórias do Artur Scavone e do Emilio Ivo Ulrich, que foram vítimas do Ustra, logo começo. Eu os entrevistei para o livro. 

A ilustração da capa, aliás, é do Scavone, ex-preso político e militante do Molipo. Ele esteve preso durante cinco anos, sendo nove meses no DOI-Codi/SP, e dedicou-se à xilogravura como forma de denunciar os abusos e maus-tratos do período.

Na parte final, tem os nomes e as biografias de 60 mortos e desaparecidos em que o Ustra aparece na cadeia de autoria no relatório da Comissão Nacional de Verdade.

No capítulo ‘As marcas da tortura sou eu’ —  referência a uma frase da ex-presidenta Dilma Rousseff — tem a história dela e da família Teles”. 

Jornalista, escritora e pesquisadora, Cleidi Pereira é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, autora do livro Entre a cruz e a espada: a (des)penalização do aborto na América Latina (Insular, 2021).

Atualmente, vive em Lisboa, onde cursa o doutorado em Sociologia e pesquisa sobre violência obstétrica contra imigrantes.

Seguem o relato inédito de Cleidi sobre Confissões de um torturador e os depoimentos de Nelson Rolim, editor da Insular, e de Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, sobre o livro.

***

Contra o esquecimento: Livro resgata entrevista em que Ustra admitiu tortura - Por Cleidi Pereira

Bastou uma pesquisa à lista telefônica e lá estava o número da residência de um dos símbolos dos anos de chumbo. Tirei o telefone do gancho, digitei o número e uma voz feminina atendeu e confirmou:

– Sim, é da casa do coronel Ustra, mas ele não está. Você pode ligar mais tarde? – disse-me a empregada da casa do ex-coronel Carlos Alberto, ex-chefe do Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo.

Voltei a ligar mais tarde. E no dia seguinte. E na semana seguinte… e a insistir periodicamente. As conversas eram sempre com Maria Joseíta, a companheira-sentinela e uma espécie de co-autora da tese de defesa de Ustra, expressa nos livros Rompendo o Silêncio (1987) e A Verdade Sufocada (2006) e no site homônimo que o casal manteve por mais de uma década.

Minha cartada final para conseguir o feito inédito – afinal Ustra era avesso a entrevistas e mesmo no seu depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2013, ele obteve um habeas corpus para permanecer calado – foi comprar o livro dele.

Claro que eu – na altura uma jovem repórter do jornal Zero Hora – não representava uma grande ameaça, mas o gesto “sensibilizou” o casal, como eles viriam a admitir na entrevista.

Quando soube que Ustra havia aceitado me receber em sua casa, numa região nobre de Brasília, perguntei para Joseíta se poderia falar diretamente com ele para agradecer.

Foi quando aquela voz grave fez uma ameaça em tom de brincadeira, que serviu como um lembrete sobre quem, de fato, era o meu entrevistado: o temível e sádico Dr. Tibiriçá.

– Se você não divulgar o meu livro, vou torcer o seu pescoço! – disse.

Nesse instante, bateu, pela primeira vez, um certo arrependimento. “Por que decidi fazer isso?”, pensava.

Presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos e conhecido como o caçador de torturadores, Jair Krishke, que ajudou a salvar mais de duas mil vidas das garras da ditadura, era quem lembrava, encorajando-me:

– Vai e faz essa entrevista. Esses caras nunca falam… Tu não tens ideia da importância do que tu estás fazendo.

E foi assim que, numa tarde de verão de 2014, fui parar, sozinha, na casa do primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador.

Foram 2 horas e 30 minutos de conversa, o dobro do tempo do depoimento dele à CNV, e essa entrevista foi o mais próximo que Ustra chegou de uma confissão.

Nas contradições, nas entrelinhas, mas, principalmente, ao admitir, num lapso, o que ele passou a vida negando: a tortura por meio da realização de interrogatórios contínuos, sem que o preso pudesse dormir.

Onze anos depois, narro esses e outros bastidores, além do conteúdo da entrevista praticamente na íntegra, no livro Confissões de um torturador: a última entrevista do coronel Ustra, publicado pela editora Insular, de Florianópolis.

Ustra morreria no ano seguinte à entrevista, impune, e a sua memória passaria a ser exaltada a partir do fatídico voto de um inexpressivo deputado que se tornaria presidente no processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em 2016.

Confissões de um torturador é um livro contra o esquecimento. Uma contribuição para a preservação da memória sobre um dos mais sombrios períodos da história do nosso país.

Como disse o Walter Salles, no trailer de apresentação do Ainda estou aqui, durante a cerimônia do Oscar, “as histórias que você não consegue esquecer são as histórias que você deve contar”. Foi o que me motivou a escrever, para além de uma sensação de dever histórico e jornalístico.

O livro também traz relatos de sobreviventes, aborda o aspecto histórico e sociológico da tortura e o último capítulo é dedicado para listar todos os nomes e biografias das 60 vítimas em que Ustra aparece na cadeia de autoria, conforme relatório final da Comissão Nacional da Verdade.

Os 21 anos de ditadura e os horrores que aconteceram nos seus porões são, para a sociedade brasileira, uma ferida aberta.

Se a luta pela memória e pela verdade é uma batalha diária, a luta pela justiça ficou esquecida – torturadores e chefes das “sucursais do inferno”, como o Ustra, morreram livres e impunes.

Ele, por exemplo, no seu último ano de vida fazia acupuntura, passava horas respondendo e-mails, deixava nos Correios, todos os dias, exemplares do livro que se transformaria na bíblia da extrema-direita tupiniquim…

Como diz o poeta Mario Benedetti, o esquecimento está cheio de memória. No ano em que o Brasil celebra quatro décadas de redemocratização e a morte do jornalista Vladimir Herzog completa 50 anos, ainda estamos aqui, lutando pela memória, verdade e justiça. E essa é uma ferida que não cicatriza nunca.

***

<><> Sobre o livro

>>> Nelson Rolim, editor da Insular:

“Há livros imprescindíveis, e este é um deles, graças ao profissionalismo, à persistência e à coragem da jornalista que não se acovardou com a ameaça de ter seu pescoço torcido.

Inacreditável, mas esclarecedor do que era a personalidade de seu entrevistado. Não há como deixar nas trevas da história um militar declarado judicialmente como torturador e reconhecido pelas vítimas que sobreviveram ao seu mortal sadismo.

No comando do DOI-Codi de São Paulo, um dos mais sanguinários aparelhos repressivos da ditadura militar, o oficial do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra é responsável por graves violações de direitos humanos e assassinatos a serviço do terrorismo de Estado.

O criminoso, que durante toda sua vida negou seus crimes, revelou-se por inteiro nas entrelinhas e nas contradições de suas respostas em sua última entrevista, agora publicadas em livro, como parte da luta pela verdade e pela memória contra a mentira e o esquecimento”.

>>> Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (que assina o prefácio do livro):

“É mister considerar e assinalar que o Brasil é um país sem políticas públicas de memória, ao contrário do Uruguai, do Chile e da Argentina, antes do atual presidente, motivo pelo qual saudamos ainda mais tal livro. A inexistência das referidas políticas é suprida, em parte, por livros como este. (…) Desta forma, como lutador pela democracia, pela justiça, pelos direitos humanos desde sempre, celebro o lançamento deste livro para que a memória e a verdade prevaleçam inobstante as políticas públicas de esquecimento vigentes em nosso país”.

¨      Hugo Souza: Os generais e as doninhas

Há dois mil e seiscentos anos, um escravo contador de histórias tentou instruir os gregos sobre os riscos da vaidade, mas parecia falar ao Brasil moderno sobre o quanto seria difícil a luta contra os fatos para blindar oficiais generais que destacaram “técnicos” para lançar dúvidas sobre as urnas eletrônicas; agasalharam e acalentaram acampamentos golpistas – até com nota pública de apoio e proteção -; e até moveram tropas para o meio da rua a fim de impedir a prisão de terroristas em flagrante.

Durante a guerra patriótica movida pelos ratos contra as doninhas, os ratos estavam cansados de perder a maioria das batalhas. Reunindo-se em assembleia, chegaram à conclusão de que faltava era comando. Em votação, elegeram um punhado de generais.

Para se distinguirem dos oficiais intermediários, subalternos e dos reles patriotas, os generais implantaram chifres sob seus quepes decorados com quatro elipses concêntricas perfiladas, bordadas em fio Myller, tendo ao centro, em fundo azul-celeste, o Cruzeiro do Sul em estrelas prateadas.

Houve uma nova batalha, uma grande escaramuça. Mesmo causando grande destruição ao patrimônio público, os ratos, de novo, levaram a pior. Batendo em retirada, a maioria dos intermediários, subalternos, reles patriotas e esbirros de toda sorte conseguiu voltar para os esgotos.

Os generais, por seu turno e coturno, ficaram em dificuldades: os chifres, grandes demais, impediram que escorregassem por completo pelas frestas.

Quando bolou a fábula Os ratos e as doninhas, Esopo não poderia ter em mente, por exemplo, o general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, ex-subchefe dos kids pretos e comandante militar do Planalto durante os meses de fermentação do golpe de Estado e no 8/1.

Na noite do 8/1, tropas do Comando Militar do Planalto fecharam a Avenida do Exército com blindados Guarani a fim de impedir a prisão de soldados civis do golpismo no acampamento golpista do Setor Militar Urbano.

Naquela noite, militares sob o comando do general Dutra chegaram a apontar canhões para o interventor federal, Ricardo Cappelli, e para policiais militares do DF que, com a intervenção, estavam naquele momento sob as ordens do comandante supremo das Forças Armadas – o presidente Lula.

Em depoimento a Julia Duailib para o documentário “A Democracia resiste”, o ex-ministro da Justiça Flavio Dino relatou que naquele dia, ao se dirigir para o Setor Militar Urbano, deparou com “duas ou três linhas de formação da Polícia do Exército de frente não para o acampamento, mas para a PM”; “blindados do Exército se agrupando ali”; “soldados aparatados como se fosse para um combate”.

Esopo até que parecia mesmo falar do Brasil moderno, sobre os generais da ativa em altos postos de comando durante a conspiração golpista e no 8/1, com seus chifres grandes demais para conseguirem se safar. Parecia.

Apesar dos chifres enormes, o general de Divisão Combatente Gustavo Henrique Dutra escorregou pelas frestas de Brasília e hoje, em vez de réu por tentativa de golpe de Estado, é vice-chefe do Estado-Maior do Exército, nomeado pelo presidente Lula.

Nesta semana, o general Dutra não apareceu na data marcada para o seu depoimento no STF no âmbito da ação penal do golpe.

O vice-chefe do EME foi arrolado como testemunha de defesa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Intimado por Alexandre de Moraes a sair das frestas, Dutra depôs nesta sexta-feira, 30, finalmente.

Perguntado por Moraes sobre um encontro fora da agenda que teve com Torres na antevéspera do ataque à Praça dos Três Poderes, o general disse que foi apenas “um cafezinho de cortesia” com o então recém-empossado secretário de Segurança do DF. Um cafezinho com Torres horas antes de Torres, como Bolsonaro, embarcar para os EUA, para ver de longe o circo pegar fogo.

Nesta sexta, cara a cara com Moraes, Gustavo Dutra ainda reverberou em juízo um elemento caro à “narrativa” bolsonarista sobre o 8/1: às vésperas do ataque à Praça dos Três Poderes, o acampamento na frente do QG do Exército era formado, em sua maioria, segundo Dutra, por moradores de rua…

Dos generais da ativa em altos postos de comando durante a conspiração golpista de 2022 e no 8/1 de 2023, só Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira, então chefe do Comando de Operações Terrestres, é réu no STF por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e organização criminosa armada.

Os que se safaram, agora, tentam embaralhar a ação penal, em depoimentos um mais disparatado que o outro.

 

Fonte: Por Conceição Lemes, em Viomundo/Come Ananás

 

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