Acusada
de trabalho escravo na Amazônia, Volkswagen diz que investigou e não viu crime
A
Volkswagen do Brasil, acusada pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) por
tráfico de pessoas e trabalho escravo em sua antiga fazenda de gado na Amazônia
durante a ditadura militar, afirmou nesta sexta-feira (30) à Justiça do
Trabalho que investigou as denúncias na época, mas não encontrou
irregularidades. O MPT cobra uma indenização de R$ 165 milhões da montadora por
danos morais coletivos.
As
declarações foram feitas por José Antônio Tiro Rodriguez, representante da
empresa na primeira audiência do processo com a presença de testemunhas,
ocorrida hoje na Vara de Trabalho de Redenção, no Sul do Pará.
“A
Volkswagen apurou todas as denúncias de irregularidades, mas não foram
identificadas e confirmadas”, afirmou Rodriguez.
Conhecida
como Fazenda Volkswagen, a Companhia Vale do Rio Cristalino foi uma subsidiária
da empresa em Santana do Araguaia (PA), a mais de mil quilômetros de Belém,
dedicada à pecuária e à extração de madeira. Comprada com incentivos fiscais da
ditadura, a fazenda operou entre 1974 e 1986 e é acusada pelo MPT por um dos
mais graves casos de trabalho escravo na história recente do país.
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Ao
final da sessão, o representante da Volks confirmou ao juiz Otávio Bruno da
Silva Ferreira que a fabricante não tem interesse em fechar um acordo para pôr
fim ao processo.
A
partir de agora, as partes terão 15 dias úteis para apresentar as razões
finais. Depois serão mais 30 dias úteis até a sentença judicial, que deve sair
em meados de julho.
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Entenda o caso
Segundo
a investigação do órgão federal, a fazenda mantinha cerca de 300 empregados
diretos. As atividades mais pesadas, no entanto, eram realizadas por peões
contratados de forma precária por intermediários de mão de obra, conhecidos
como “gatos”. Eles recrutavam trabalhadores em comunidades pobres distantes,
com promessas de salários atrativos e boas condições para atuarem na derrubada
da floresta para abertura de pasto. Ao chegarem à fazenda, porém, os peões eram
submetidos a um sistema de exploração que incluía endividamento forçado,
jornadas exaustivas e restrições à liberdade.
De
acordo com o representante da Volks, a empresa não tinha conhecimento sobre o
tratamento dispensado pelos intermediários aos trabalhadores rurais. “A
Companhia Vale do Rio Cristalino seguia a mesma prática de contratação [de
empregados] das outras fazendas, [por meio da] contratação das empreiteiras”,
declarou Rodriguez.
O
representante da Volkswagen disse ainda que a empresa não era informada sobre
as “condições trabalhistas” nas frentes de desmatamento, incluindo
adoecimentos, falecimentos, jornada exaustiva e existência de “cantina” na
fazenda.
As
cantinas eram peças fundamentais no esquema de trabalho escravo, segundo a
investigação do MPT. Era ali onde os lavradores compravam os mantimentos para
moradia e trabalho, contraindo dívidas superiores a seus salários, o que os
impedia de deixar o local. Os trabalhadores ainda eram vigiados e ameaçados no
local por capatazes armados, a mando dos intermediários contratados pela
Volkswagen.
Rodriguez
disse também na audiência que a Volks era uma pessoa jurídica separada da
Companhia Vale do Rio Cristalino, ressaltando que a empresa agropecuária tinha
autonomia e não fazia parte da cadeia produtiva da fabricante de carros. No
início do empreendimento, ele destacou que a Volks detinha 10% de participação
como acionista.
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Depoimentos detalham escravidão por dívida
A
sessão foi marcada também pelos depoimentos de três trabalhadores que alegam
ter sido escravizados na década de 1980 na fazenda administrada pela
Volkswagen.
O
primeiro deles foi o lavrador Raul Batista de Souza, de 66 anos. Ele detalhou
como funcionava o esquema das cantinas, onde ele “comprava de tudo”, como
panela, comida, remédio e a lona usada nas moradias.
“A lona
era para fazer barracão. Colocava forquilha e jogava a lona por cima”, contou.
“Dormia na rede que comprava na cantina [também]”, continuou. “Ia tudo para o
caderno para descontar no acerto, que ficava com o ‘gato’. Não sabia quanto
custava”.
A
respeito das condições de trabalho, ele disse que trabalhava de segunda a
domingo e que não havia banheiros. Contou também que saiu da fazenda sem
receber nada depois de mais de três meses de trabalho.
Souza
lembrou que viajou para a fazenda juntamente com o irmão, Gildemar, que
“adoeceu de malária e ficou ruim da mente. Nunca teve atendimento médico [na
fazenda]”, disse.
Por
fim, o lavrador contou que saiu da Fazenda Volkswagen “vendido” pelo “gato”
para trabalhar em outra propriedade da região.
Outro
ex-trabalhador ouvido foi Pedro Valdo Pereira Vasconcelos, de 60 anos,
atualmente funcionário público. Ele disse que trabalhou na Fazenda Volkswagen
durante quatro meses em 1983, quando ainda tinha 17 anos.
“Banheiro
era no brejo. A água bebia também no brejo”, contou.
Segundo
Vasconcelos, os trabalhadores faziam a alimentação com mantimentos comprados na
cantina, como arroz, feijão e carne, que era “pouca”. Tudo era anotado no
caderno e descontado do pagamento pelo trabalho na roça. “Até a foice era
descontada”, disse.
“A
gente levantava às 4h apra fazer comida. Partia às 6h para o serviço e voltava
às 6h [da tarde]. Ia a pé até o local de trabalho. Trabalhava de segunda a
sábado e às vezes emendava domingo, porque a gente queira ir embora”, descreveu
o trabalhador. “No final, para pegar [dinheiro] para ir embora, eles diziam que
não tinha saldo”, completou.
Os
advogados da Volkswagen foram abordados pela Repórter Brasil antes da sessão,
mas não quiseram se manifestar.
Antes
de acionar a Justiça, o MPT se reuniu cinco vezes com a fabricante para tentar
uma conciliação. A Volks, porém, se retirou das conversas em 2023, alegando não
ser responsável pelos fatos.
Três
anos antes, a empresa havia assinado um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta)
com o MPT, o Ministério Público Federal e o MP de São Paulo, reconhecendo a
perseguição e tortura de ex-funcionários em sua fábrica em São Bernardo do
Campo (SP) durante a ditadura militar (1964-1985) e aceitando pagar R$ 36
milhões em compensações.
• Saiba mais sobre a Fazenda Volkswagen,
acusada de trabalho escravo na Amazônia
A
JUSTIÇA DO TRABALHO ouve nesta sexta-feira (30) as primeiras testemunhas do
caso da Fazenda Volkswagen. A montadora alemã é ré em ação movida pelo MPT
(Ministério Público do Trabalho) por tráfico de pessoas e trabalho escravo em
sua antiga fazenda de gado na Amazônia, durante a ditadura militar. O órgão
federal cobra uma indenização de R$ 165 milhões.
Quatro
trabalhadores escravizados entre 1974 e 1986 devem prestar depoimento hoje na
Vara de Trabalho de Redenção (PA), dentre outras testemunhas das partes. O MPT
acusa a Volks de aliciamento, endividamento forçado, condições degradantes de
trabalho e moradia, dentre outras violações.
Oficialmente,
a empresa diz não comentar processos em andamento. Mas, durante tratativas com
os procuradores do MPT em busca de uma conciliação, a Volkswagen do Brasil
negou a responsabilidade sobre os crimes e apontou a culpa para os chamados “gatos” – intermediários que subcontratavam
os trabalhadores para derrubar a floresta e abrir pastos.
Nos
autos do processo, no entanto, a Volks alega que os crimes prescreveram e que a
empresa não poderia ser punida. A Procuradoria contesta o argumento dos
advogados da montadora e diz que algumas violações a direitos fundamentais são
imprescritíveis, como os crimes de tráfico de pessoas e trabalho escravo.
“Implantou-se
na Fazenda Volkswagen o chamado ‘sistema barracão’, por meio do qual os
trabalhadores eram obrigados a adquirir todos os bens necessários ao seu
trabalho e subsistência junto ao empregador a preços exorbitantes, o que exigia
a contração de ‘dívidas’ que superavam o valor do salário a ser recebido,
tornando impossível o pagamento e a liberação do devedor”, diz o MPT, em
documento que rebate as alegações da Volks.
“Os
trabalhadores endividados eram impedidos de sair da Fazenda Volkswagen, por
meio de coação física e moral, sendo, por vezes, ‘vendidos’ a outras fazendas
como coisas, e não sujeitos de direito. Aqueles que tentavam fugir eram
assassinados ou capturados e torturados”, continua.
Um dos
trabalhadores que afirma ter sido “vendido” pelos intermediários da Volks é
Raul Batista de Souza, 66, convocado a depor nesta sexta.
Recrutado
inicialmente para trabalhar na propriedade da Volkswagen, ele diz que, após
alguns dias de trabalho, foi repassado a um “gato” para atuar em outra fazenda
da região. Só quando terminou o serviço e cobrou o pagamento é que ele entendeu
a sua situação. “Foi depois de uns cinco meses de trabalho que nós veio a saber
que tava vendido [para outra fazenda]”, conta.
Ele
explica que, inicialmente, aceitou as condições de trabalho porque precisava do
serviço e do pagamento prometido. Quando percebeu que era obrigado a trabalhar
em condições degradantes, mesmo doente de malária, que a dívida com os “gatos”
só aumentava e que o pagamento nunca chegava, decidiu fugir. ‘Quanto a gente ia
acertar, tava devendo mais. Aí nós resolveu vir embora”, relembra.
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Como era a Fazenda Volkswagen?
As
primeiras denúncias contra a Volkswagen surgiram no final da década de 1970,
quando trabalhadores fugidos passaram a relatar as violações para sindicatos de
trabalhadores rurais e religiosos da CPT (Comissão Pastoral da Terra), entidade
ligada à igreja católica. As acusações foram publicadas pela imprensa em 1983,
tornando-se um escândalo internacional.
A
empresa, então, decidiu agir. Convidou uma comitiva de deputados estaduais
paulistas e outros profissionais a visitarem a fazenda em julho daquele ano. O
clima, porém, era de um cenário montado pela empresa para impressionar os
visitantes, conta o padre Ricardo Rezende Figueira, na época coordenador da CPT
na região do Araguaia e Tocantins, e um dos primeiros a registrar as denúncias.
“A
Volks tinha preparado o que veríamos, que seriam as construções das casas da
sede. Eram construções bem feitas, para os funcionários permanentes. Então
queriam mostrar isso, a piscina, o clube, o pasto e o gado. Não queriam que a
gente visse os peões [nas frentes de desmatamento]”, conta o padre Ricardo, que
hoje é professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde
coordena o GPTEC (Grupo de Pesquisa do Trabalho Escravo Contemporâneo).
A
propriedade tinha 139 mil hectares, cerca de 91% da área da cidade de São
Paulo. Internamente a fazenda era dividida em 12 diferentes pastos,
fiscalizados por vaqueiros e capatazes. Havia centenas de quilômetros de
estradas e cercas internas montadas pelos trabalhadores.
As
frentes de desmatamento, onde ficava o “sistema de barracões” e os
trabalhadores escravizados, podiam ficar até 80 km distante da sede, segundo o
MPT.
Em
contraste, a área da sede da fazenda contava com infraestrutura desenvolvida,
com escritório, residência do administrador, piscina, clube, escola,
ambulatório e casas de alvenaria ou madeira mais estruturadas para os
funcionários permanentes ou administrativos.
“Ainda
encontramos muitos trabalhadores morando nos ranchos de sapê”, escreveu o então
deputado estadual Expedito Soares, líder da comitiva parlamentar.
As
imagens feitas pela delegação mostram famílias inteiras vivendo nas casas de
sapê, com paredes de barro e teto de palha. Havia inclusive crianças cozinhando
no chão.
Apesar
de precárias, as construções eram melhores que os barracos de lona usados pelos
trabalhadores contratados pelos “gatos”.
“O
serviço era muito duro, chovia muito, todos eles ficaram doentes de malária,
inclusive os oito trabalhadores de Porto Nacional. Os doentes ficavam debaixo
da lona, quase sem atendimento”, disse Manoel Lustosa Melquíades, em declaração
prestada em abril de 1987 e registrada em cartório, recentemente recuperada
pela investigação do MPT.
A
comitiva ainda flagrou um trabalhador fugido da escravidão amarrado a uma
caminhonete, após ele ser caçado por um dos intermediários da Volks (como
mostram as fotos abaixo).
Na
época, uma investigação da Polícia Militar do Pará confirmou as denúncias dos
trabalhadores. Um parecer do Secretário de Segurança Pública do Pará apontou na
ocasião “responsabilidade por omissão” da Volkswagen. Ele pediu também
providências ao então governador paraense Jader Barbalho.
Apesar
das evidências – parte delas confirmadas pelos próprios “gatos” –, a Volkswagen
não foi julgada até hoje.
Fonte:
Repórter Brasil

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