segunda-feira, 2 de junho de 2025

Acusada de trabalho escravo na Amazônia, Volkswagen diz que investigou e não viu crime

A Volkswagen do Brasil, acusada pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) por tráfico de pessoas e trabalho escravo em sua antiga fazenda de gado na Amazônia durante a ditadura militar, afirmou nesta sexta-feira (30) à Justiça do Trabalho que investigou as denúncias na época, mas não encontrou irregularidades. O MPT cobra uma indenização de R$ 165 milhões da montadora por danos morais coletivos.

As declarações foram feitas por José Antônio Tiro Rodriguez, representante da empresa na primeira audiência do processo com a presença de testemunhas, ocorrida hoje na Vara de Trabalho de Redenção, no Sul do Pará.

“A Volkswagen apurou todas as denúncias de irregularidades, mas não foram identificadas e confirmadas”, afirmou Rodriguez.

Conhecida como Fazenda Volkswagen, a Companhia Vale do Rio Cristalino foi uma subsidiária da empresa em Santana do Araguaia (PA), a mais de mil quilômetros de Belém, dedicada à pecuária e à extração de madeira. Comprada com incentivos fiscais da ditadura, a fazenda operou entre 1974 e 1986 e é acusada pelo MPT por um dos mais graves casos de trabalho escravo na história recente do país.

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Ao final da sessão, o representante da Volks confirmou ao juiz Otávio Bruno da Silva Ferreira que a fabricante não tem interesse em fechar um acordo para pôr fim ao processo.

A partir de agora, as partes terão 15 dias úteis para apresentar as razões finais. Depois serão mais 30 dias úteis até a sentença judicial, que deve sair em meados de julho.

<><> Entenda o caso

Segundo a investigação do órgão federal, a fazenda mantinha cerca de 300 empregados diretos. As atividades mais pesadas, no entanto, eram realizadas por peões contratados de forma precária por intermediários de mão de obra, conhecidos como “gatos”. Eles recrutavam trabalhadores em comunidades pobres distantes, com promessas de salários atrativos e boas condições para atuarem na derrubada da floresta para abertura de pasto. Ao chegarem à fazenda, porém, os peões eram submetidos a um sistema de exploração que incluía endividamento forçado, jornadas exaustivas e restrições à liberdade.

De acordo com o representante da Volks, a empresa não tinha conhecimento sobre o tratamento dispensado pelos intermediários aos trabalhadores rurais. “A Companhia Vale do Rio Cristalino seguia a mesma prática de contratação [de empregados] das outras fazendas, [por meio da] contratação das empreiteiras”, declarou Rodriguez.

O representante da Volkswagen disse ainda que a empresa não era informada sobre as “condições trabalhistas” nas frentes de desmatamento, incluindo adoecimentos, falecimentos, jornada exaustiva e existência de “cantina” na fazenda.

As cantinas eram peças fundamentais no esquema de trabalho escravo, segundo a investigação do MPT. Era ali onde os lavradores compravam os mantimentos para moradia e trabalho, contraindo dívidas superiores a seus salários, o que os impedia de deixar o local. Os trabalhadores ainda eram vigiados e ameaçados no local por capatazes armados, a mando dos intermediários contratados pela Volkswagen.

Rodriguez disse também na audiência que a Volks era uma pessoa jurídica separada da Companhia Vale do Rio Cristalino, ressaltando que a empresa agropecuária tinha autonomia e não fazia parte da cadeia produtiva da fabricante de carros. No início do empreendimento, ele destacou que a Volks detinha 10% de participação como acionista.

<><> Depoimentos detalham escravidão por dívida

A sessão foi marcada também pelos depoimentos de três trabalhadores que alegam ter sido escravizados na década de 1980 na fazenda administrada pela Volkswagen.

O primeiro deles foi o lavrador Raul Batista de Souza, de 66 anos. Ele detalhou como funcionava o esquema das cantinas, onde ele “comprava de tudo”, como panela, comida, remédio e a lona usada nas moradias.

“A lona era para fazer barracão. Colocava forquilha e jogava a lona por cima”, contou. “Dormia na rede que comprava na cantina [também]”, continuou. “Ia tudo para o caderno para descontar no acerto, que ficava com o ‘gato’. Não sabia quanto custava”.

A respeito das condições de trabalho, ele disse que trabalhava de segunda a domingo e que não havia banheiros. Contou também que saiu da fazenda sem receber nada depois de mais de três meses de trabalho.

Souza lembrou que viajou para a fazenda juntamente com o irmão, Gildemar, que “adoeceu de malária e ficou ruim da mente. Nunca teve atendimento médico [na fazenda]”, disse.

Por fim, o lavrador contou que saiu da Fazenda Volkswagen “vendido” pelo “gato” para trabalhar em outra propriedade da região.

Outro ex-trabalhador ouvido foi Pedro Valdo Pereira Vasconcelos, de 60 anos, atualmente funcionário público. Ele disse que trabalhou na Fazenda Volkswagen durante quatro meses em 1983, quando ainda tinha 17 anos.

“Banheiro era no brejo. A água bebia também no brejo”, contou.

Segundo Vasconcelos, os trabalhadores faziam a alimentação com mantimentos comprados na cantina, como arroz, feijão e carne, que era “pouca”. Tudo era anotado no caderno e descontado do pagamento pelo trabalho na roça. “Até a foice era descontada”, disse.

“A gente levantava às 4h apra fazer comida. Partia às 6h para o serviço e voltava às 6h [da tarde]. Ia a pé até o local de trabalho. Trabalhava de segunda a sábado e às vezes emendava domingo, porque a gente queira ir embora”, descreveu o trabalhador. “No final, para pegar [dinheiro] para ir embora, eles diziam que não tinha saldo”, completou.

Os advogados da Volkswagen foram abordados pela Repórter Brasil antes da sessão, mas não quiseram se manifestar.

Antes de acionar a Justiça, o MPT se reuniu cinco vezes com a fabricante para tentar uma conciliação. A Volks, porém, se retirou das conversas em 2023, alegando não ser responsável pelos fatos.

Três anos antes, a empresa havia assinado um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o MPT, o Ministério Público Federal e o MP de São Paulo, reconhecendo a perseguição e tortura de ex-funcionários em sua fábrica em São Bernardo do Campo (SP) durante a ditadura militar (1964-1985) e aceitando pagar R$ 36 milhões em compensações.

•        Saiba mais sobre a Fazenda Volkswagen, acusada de trabalho escravo na Amazônia

A JUSTIÇA DO TRABALHO ouve nesta sexta-feira (30) as primeiras testemunhas do caso da Fazenda Volkswagen. A montadora alemã é ré em ação movida pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) por tráfico de pessoas e trabalho escravo em sua antiga fazenda de gado na Amazônia, durante a ditadura militar. O órgão federal cobra uma indenização de R$ 165 milhões.

Quatro trabalhadores escravizados entre 1974 e 1986 devem prestar depoimento hoje na Vara de Trabalho de Redenção (PA), dentre outras testemunhas das partes. O MPT acusa a Volks de aliciamento, endividamento forçado, condições degradantes de trabalho e moradia, dentre outras violações.

Oficialmente, a empresa diz não comentar processos em andamento. Mas, durante tratativas com os procuradores do MPT em busca de uma conciliação, a Volkswagen do Brasil negou a responsabilidade sobre os crimes e apontou a culpa para os chamados  “gatos” – intermediários que subcontratavam os trabalhadores para derrubar a floresta e abrir pastos.

Nos autos do processo, no entanto, a Volks alega que os crimes prescreveram e que a empresa não poderia ser punida. A Procuradoria contesta o argumento dos advogados da montadora e diz que algumas violações a direitos fundamentais são imprescritíveis, como os crimes de tráfico de pessoas e trabalho escravo.

“Implantou-se na Fazenda Volkswagen o chamado ‘sistema barracão’, por meio do qual os trabalhadores eram obrigados a adquirir todos os bens necessários ao seu trabalho e subsistência junto ao empregador a preços exorbitantes, o que exigia a contração de ‘dívidas’ que superavam o valor do salário a ser recebido, tornando impossível o pagamento e a liberação do devedor”, diz o MPT, em documento que rebate as alegações da Volks.

“Os trabalhadores endividados eram impedidos de sair da Fazenda Volkswagen, por meio de coação física e moral, sendo, por vezes, ‘vendidos’ a outras fazendas como coisas, e não sujeitos de direito. Aqueles que tentavam fugir eram assassinados ou capturados e torturados”, continua.

Um dos trabalhadores que afirma ter sido “vendido” pelos intermediários da Volks é Raul Batista de Souza, 66, convocado a depor nesta sexta.

Recrutado inicialmente para trabalhar na propriedade da Volkswagen, ele diz que, após alguns dias de trabalho, foi repassado a um “gato” para atuar em outra fazenda da região. Só quando terminou o serviço e cobrou o pagamento é que ele entendeu a sua situação. “Foi depois de uns cinco meses de trabalho que nós veio a saber que tava vendido [para outra fazenda]”, conta.

Ele explica que, inicialmente, aceitou as condições de trabalho porque precisava do serviço e do pagamento prometido. Quando percebeu que era obrigado a trabalhar em condições degradantes, mesmo doente de malária, que a dívida com os “gatos” só aumentava e que o pagamento nunca chegava, decidiu fugir. ‘Quanto a gente ia acertar, tava devendo mais. Aí nós resolveu vir embora”, relembra.

<><> Como era a Fazenda Volkswagen?

As primeiras denúncias contra a Volkswagen surgiram no final da década de 1970, quando trabalhadores fugidos passaram a relatar as violações para sindicatos de trabalhadores rurais e religiosos da CPT (Comissão Pastoral da Terra), entidade ligada à igreja católica. As acusações foram publicadas pela imprensa em 1983, tornando-se um escândalo internacional.

A empresa, então, decidiu agir. Convidou uma comitiva de deputados estaduais paulistas e outros profissionais a visitarem a fazenda em julho daquele ano. O clima, porém, era de um cenário montado pela empresa para impressionar os visitantes, conta o padre Ricardo Rezende Figueira, na época coordenador da CPT na região do Araguaia e Tocantins, e um dos primeiros a registrar as denúncias.

“A Volks tinha preparado o que veríamos, que seriam as construções das casas da sede. Eram construções bem feitas, para os funcionários permanentes. Então queriam mostrar isso, a piscina, o clube, o pasto e o gado. Não queriam que a gente visse os peões [nas frentes de desmatamento]”, conta o padre Ricardo, que hoje é professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde coordena o GPTEC (Grupo de Pesquisa do Trabalho Escravo Contemporâneo).

A propriedade tinha 139 mil hectares, cerca de 91% da área da cidade de São Paulo. Internamente a fazenda era dividida em 12 diferentes pastos, fiscalizados por vaqueiros e capatazes. Havia centenas de quilômetros de estradas e cercas internas montadas pelos trabalhadores.

As frentes de desmatamento, onde ficava o “sistema de barracões” e os trabalhadores escravizados, podiam ficar até 80 km distante da sede, segundo o MPT.

Em contraste, a área da sede da fazenda contava com infraestrutura desenvolvida, com escritório, residência do administrador, piscina, clube, escola, ambulatório e casas de alvenaria ou madeira mais estruturadas para os funcionários permanentes ou administrativos.

“Ainda encontramos muitos trabalhadores morando nos ranchos de sapê”, escreveu o então deputado estadual Expedito Soares, líder da comitiva parlamentar.

As imagens feitas pela delegação mostram famílias inteiras vivendo nas casas de sapê, com paredes de barro e teto de palha. Havia inclusive crianças cozinhando no chão.

Apesar de precárias, as construções eram melhores que os barracos de lona usados pelos trabalhadores contratados pelos “gatos”. 

“O serviço era muito duro, chovia muito, todos eles ficaram doentes de malária, inclusive os oito trabalhadores de Porto Nacional. Os doentes ficavam debaixo da lona, quase sem atendimento”, disse Manoel Lustosa Melquíades, em declaração prestada em abril de 1987 e registrada em cartório, recentemente recuperada pela investigação do MPT.

A comitiva ainda flagrou um trabalhador fugido da escravidão amarrado a uma caminhonete, após ele ser caçado por um dos intermediários da Volks (como mostram as fotos abaixo).

Na época, uma investigação da Polícia Militar do Pará confirmou as denúncias dos trabalhadores. Um parecer do Secretário de Segurança Pública do Pará apontou na ocasião “responsabilidade por omissão” da Volkswagen. Ele pediu também providências ao então governador paraense Jader Barbalho.

Apesar das evidências – parte delas confirmadas pelos próprios “gatos” –, a Volkswagen não foi julgada até hoje.

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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