quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Por que terremotos não são incomuns em Portugal mesmo o país estando longe das grandes falhas geológicas

Na madrugada desta segunda-feira (26/8), um terremoto de magnitude 5,4 na escala de Richter foi registrado em Portugal.

Segundo o Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS) e o Centro Sismológico Euro-Mediterrânico (CSEM), o tremor aconteceu por volta das 5h11 (horário local), a uma profundidade de 10 km.

Nas redes sociais, moradores de vários pontos do país postaram vídeos relatando terem acordado após sentir o chão tremer.

Terremotos na região não são incomuns. Em 1755, um terremoto matou dezenas de milhares de pessoas e destruiu a cidade de Lisboa. Um segundo grande tremor afetou o país em 1969.

Mas como é possível que dois terremotos devastadores tenham afetado Portugal no passado e tremores menores sigam acontecendo, se o país está a milhares de quilômetros de falhas geológicas conhecidas por causar grandes tremores?

Esta questão intrigou durante anos o geólogo português João Duarte, professor da Universidade de Lisboa, que afirma ter desvendado o mistério.

Duarte apresentou os resultados de seu estudo em uma reunião da União Europeia de Geociências na Áustria em 2019.

E o que o geólogo descobriu foi algo estranho: uma placa tectônica está deslizando sob a outra, causando uma divisão na crosta terrestre, como explicou o pesquisador à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

<><> Maior terremoto na Europa

"Sabíamos que houve o grande terremoto de Lisboa de 1755, o maior na história da Europa, com uma magnitude de 8,7", lembra Duarte.

As estimativas de vítimas variam pela carência de registros, mas as menores estão entre 20 mil e 30 mil óbitos, enquanto as maiores falam em 100 mil.

"O terremoto destruiu Lisboa, grande parte do sul da Espanha e do Marrocos, e causou um enorme tsunami que atingiu a Irlanda e o Caribe", diz o geólogo.

Um segundo grande terremoto afetou o país em 1969.

"A magnitude foi de 7,9, mas foi muito longe da costa, matando entre 11 e 30 pessoas e destruindo cerca de 400 casas. (A dimensão do) dano não é conhecida precisamente porque Portugal era uma ditadura na época e o governo escondeu alguns dados."

O estranho, conforme Duarte apontou à BBC News Mundo, é que grandes terremotos ocorrem geralmente no Oceano Pacífico, porque ali existe o que os geólogos chamam de processo de subducção - quando uma placa tectônica desliza sob outra placa.

"Na América do Sul, por exemplo, não há grandes terremotos no lado brasileiro, mas do outro lado, o Chile tem os Andes - onde uma zona de subducção e terremotos muito grandes ocorrem."

<><> Subducção

A zona marinha onde ocorreram os terremotos que afetaram Portugal, chamada Planície Abissal da Ferradura, é muito plana.

Mas o trabalho de Duarte e seus colegas revelou uma surpresa sob aquela área, entre a placa africana e a placa eurasiana: "O que descobrimos é que uma placa tectônica está começando a afundar e deslizar sob a outra".

Este processo gera uma divisão horizontal na crosta. As placas têm duas camadas e, devido à subducção, a camada inferior afunda sob outra placa - mas a camada superior permanece na superfície para evitar uma brecha.

Em outras palavras, a placa está "descascando".

A subducção ocorre no fundo do mar, a mais de 200 km do Cabo de São Vicente, no extremo sul de Portugal.

Duarte e seus colegas também detectaram um processo chamado "serpentinização".

"Como as placas estão embaixo d'água, há infiltrações que penetram a rocha e enfraquecem as placas - algo semelhante ao que acontece quando os metais corroem. Esse enfraquecimento torna mais fácil a divisão da placa."

<><> Sem desespero

Duarte observou que o processo de subducção está ocorrendo em uma escala de até cinco milhões de anos e provavelmente continuará por talvez 10 milhões de anos.

Para o geólogo, a descoberta da nova zona de subducção não deve ser motivo de alarme.

Tendo encontrado esse fenômeno, agora será possível incrementar o monitoramento e posicionar melhor navios e sismógrafos para estudos no fundo do mar.

"A verdade é que já sabíamos, pelos terremotos do passado, que havia uma probabilidade de que ocorressem mais no futuro. São processos cíclicos na Terra", diz Duarte.

"A minha mensagem é que devemos ver esta descoberta de uma forma positiva, que nos permite compreender melhor os processos que geram os terramotos. Também a ciência nos dá melhores mecanismos para nos defendermos", acrescentou o cientista da Universidade de Lisboa.

Duarte reiterou à BBC News Mundo que os terremotos fazem parte da dinâmica do planeta, e a melhor maneira de responder a eles sempre passará pela prevenção - por exemplo "construindo casas preparadas e sabendo o que fazer em caso de um terremoto ou tsunami".

 

¨      O terremoto de Lisboa: o desastre que mudou a história e levou a reflexões sobre o papel de Deus

"Nunca se viu uma manhã mais bonita do que a de 1º de novembro", escreveu o reverendo Charles Davy em 1755, um dos muitos estrangeiros que viviam em Lisboa.

"Era uma metrópole, a capital de um império colonial mundial que se estendia da África (com Angola, Moçambique e Cabo Verde), passava pela Ásia (com Goa e Macau), e, claro, à América Latina (com o Brasil)", disse Vic Echegoyen , autor do romance histórico Ressuscitar.

"Portugal era um reino muito, muito rico graças às riquezas dessas colônias", acrescentou o escritor em conversa com BBC Reel.

"Lisboa era uma visão muito atraente para os visitantes de primeira viagem", disse Edward Paice, autor de A Ira de Deus - A Incrível História do Terremoto que Devastou Lisboa em 1755 (Record/2010), à BBC Witness.

"Havia mosteiros grandiosos e palácios de grande escala. Sua arquitetura foi fortemente influenciada pelo Oriente e também pela arquitetura islâmica."

"O sol estava brilhando em todo o seu esplendor", continuou o reverendo Davy.

"Toda a face do céu estava perfeitamente serena e clara; e não havia o menor sinal de alerta daquele evento que se aproximava, que fez desta cidade, outrora florescente, opulenta e populosa, uma cena do maior horror e desolação."

Foi um dos desastres naturais mais mortais que o mundo já viu.

Dezenas de milhares de pessoas morreram. Há mais de 260 anos, Lisboa foi destruída por um enorme terremoto, mas das cinzas surgiu algo incrível: uma nova forma de pensar e uma nova ciência.

Terremotos naquela região não são incomuns. Na madrugada desta segunda-feira (26/8), um terremoto de magnitude 5,4 na escala de Richter foi registrado em Portugal.

Segundo o Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS) e o Centro Sismológico Euro-Mediterrânico (CSEM), o tremor aconteceu por volta das 5h11 (horário local), a uma profundidade de 10 km.

Nas redes sociais, moradores de vários pontos do país postaram vídeos relatando terem acordado após sentir o chão tremer.

<><> O horror

Aquele dia em 1755 era o Dia de Todos os Santos, e às 9h30 da manhã muitos dos devotos moradores da cidade estavam nas igrejas.

De repente começou a ser ouvido o que várias testemunhas oculares, incluindo o reverendo Davy, acreditavam ser o barulho de muitas carruagens.

"Logo vi que tinha me equivocado, pois descobri que era devido a algum tipo de ruído estranho e assustador embaixo da terra, como o estrondo distante e oco de um trovão."

O abalo era um megaterremoto sentido em grande parte da Europa Ocidental e na costa noroeste da África.

"Ainda é um dos maiores terremotos já registrados. Houve três tremores no total e o segundo foi sem dúvida o maior. Posteriormente, foi avaliado entre 8,5 e 9 na escala Richter", disse Paice.

Os sobreviventes do primeiro tremor procuraram segurança numa enorme praça aberta junto ao rio Tejo, incluindo o Sr. Braddick, um comerciante inglês.

"Ali encontrei uma prodigiosa reunião de pessoas de ambos os sexos e de todas as classes e condições, entre as quais observei alguns dos principais cônegos da igreja patriarcal em suas vestes roxas e avermelhadas, vários padres que haviam fugido do altar em suas sagradas vestimentas em meio à missa festiva, senhoras seminuas e outras sem sapatos... todas de joelhos com os terrores da morte no semblante, gritando sem cessar 'misericórdia, meu Deus!'."

"No meio da devoção, veio o segundo grande abalo e completou a ruína daqueles prédios que já haviam sido gravemente destruídos."

Mais horror estava por vir: o terremoto desencadeou um tsunami no Atlântico que então subiu o rio.

"Ele veio espumando, rugindo e correu em direção à margem com tanta energia que imediatamente corremos para salvar nossas vidas, o mais rápido que podíamos", escreveu o reverendo Davy.

"Você pode pensar que este evento sombrio termina aqui, mas que nada, os horrores de 1º de novembro são suficientes para preencher um volume."

"Assim que escureceu, toda a cidade parecia brilhar, com uma luz tão forte que dava para ler. Pode-se dizer, sem exagero, que houve incêndios em pelo menos cem lugares ao mesmo tempo e continuou como isso por seis dias, sem interrupção."

Para a celebração religiosa, todas as velas das igrejas e catedrais haviam sido acesas, que quando caíam multiplicavam suas chamas.

"Não há palavras para expressar o horror", escreveu outra testemunha. "Tal situação não é fácil de imaginar para quem não a sentiu, nem de descrever para quem a sentiu."

"Deus permita que você nunca tenha uma ideia precisa disso, porque isso só pode ser obtido através da experiência."

<><> Uma nova forma de pensar

A notícia do desastre numa cidade tão importante como Lisboa espalhou-se rapidamente.

"Foi a primeira catástrofe global da mídia que atraiu a atenção de todas as gazetas, jornais e viajantes em toda a Europa", disse Echegoyen.

E soou mais do que um alarme.

As réplicas do terremoto agitaram o pensamento da época.

A Igreja e seus seguidores procuravam culpados pela tragédia.

"Depois do terremoto que destruiu três quartos de Lisboa, o meio mais eficaz que os sábios do país inventaram para evitar uma ruína total foi a celebração de um soberbo auto de fé [ritual de penitência pública], tendo a Universidade de Coimbra decidido que o espetáculo de algumas pessoas sendo queimadas em fogo lento com toda a solenidade é um segredo infalível para evitar tremores de terra ", escreveria Voltaire em seu polêmico conto filosófico Cândido (1759).

Enquanto a Inquisição cuidava de seus negócios, as grandes mentes da época, muitas das quais estavam começando a ver o mundo de uma nova maneira e que agora associamos ao Iluminismo, intensificaram suas reflexões.

Immanuel Kant publicou três textos separados sobre o desastre, tornando-se um dos primeiros pensadores a tentar explicar os terremotos por causas naturais, e não sobrenaturais.

E Voltaire e Jean-Jacques Rousseau tiveram uma famosa troca de ideias.

A catástrofe havia desafiado o otimismo do Iluminismo articulado pelo polímata alemão Gottfried Leibniz e pelo poeta inglês Alexander Pope.

Eles propuseram resolveram o problema histórico sobre o que é o mal afirmando que a bondade de Deus havia assegurado toda a Criação e, dessa forma, qualquer aparência do mal era apenas isso: uma aparência, o produto da incapacidade dos humanos de compreender sua função dentro do todo.

"A filosofia predominante era que vivíamos no melhor de todos os mundos possíveis, que mesmo nesses desastres havia providência divina. Deus estava elaborando algum plano e não cabia a nós questionar", explicou Paice.

"Voltaire já criticava a interpretação teológica da natureza, e muitas de suas obras ironizavam a ideia de que Deus de alguma forma governava todos os assuntos humanos", disse o historiador André Canhoto Costa à BBC Reel.

Poucas semanas depois do terremoto, Voltaire, no seu "Poema sobre o Desastre de Lisboa" desferiu o primeiro ataque naquele que viria a ser um dos maiores debates filosóficos da história.

Segundo Paice, o filósofo questionou um Deus que podia ver algo bom em um evento "tão horrível como o que aconteceu".

"Você diria vendo aquela multidão de vítimas?: 'Deus se vingou; a morte deles é o preço pelos seus crimes'.

Que crime, que falha cometeram aquelas crianças, esmagadas e ensanguentadas no ventre da mãe?

Terá Lisboa, que já não existe, mais vícios do que Londres, do que Paris, afundadas nas delícias?

Lisboa está em pedaços e dança-se em Paris"

Linhas do Poema sobre o Desastre de Lisboa de Voltaire

<><> Justificar sofrimento

O terremoto que destruiu Lisboa abalou mais do que o chão para Voltaire: minou o esforço de justificar o sofrimento com referência a algum bem maior, abrindo a possibilidade de que algum sofrimento imerecido pudesse ser atribuído a Deus.

Rousseau rejeitou a ideia e respondeu com uma longa carta em que argumentava, entre outras coisas, que a fonte do sofrimento do povo lisboeta não era Deus, mas suas próprias ações: a forma como construíram a cidade e as motivações sociais dos moradores.

Ele argumentou que uma ocorrência terrestre, moralmente neutra, era vivenciada como um desastre, devido à suscetibilidade autocriada que o modo de habitar aquele lugar produzia.

"A natureza não construiu ali 20 mil casas de seis a sete andares, (...) se os habitantes desta grande cidade vivessem mais dispersos, com maior igualdade e modéstia, os danos causados ​​pelo terremoto teriam sido menores ou talvez inexistentes", escreveu Rousseau.

Ele ainda argumenta que mesmo depois do perigo revelado pelo tremor inicial, as pessoas se recusaram a tomar as medidas necessárias.

"Quantos infelizes pereceram porque um queria resgatar suas roupas, outros seus papéis, outros seu dinheiro?", perguntou Rousseau, insinuando que isso refletia seus valores, mostrando que preferiam manter sua posição social a suas vidas.

E assim, à medida que o debate avançava, a ciência emergia como uma maneira melhor de explicar o mundo e a maneira como ele funcionava.

"A reforma protestante já tinha ocorrido, mas de alguma forma manteve intacta a linha entre o homem e a natureza. O terremoto contribuiu para um corte mais violento", destacou Costa.

"O terremoto de Lisboa desencadeou toda uma série de eventos, como quando você joga uma pedra em um lago e as ondulações ficam mais amplas e fortes e afetam tudo ao seu redor", disse Echegoyen.

"A era do pensamento livre, de questionar o poder onipotente da Igreja e dos reis já estava tomando forma, mas acredito que nesse dia a humanidade começou a despertar e que nessa data realmente nasceu a era moderna."

<><> Uma nova ciência

"Agora o evento é considerado um marco importante nos campos científico e filosófico", disse Paice.

"Foi o terremoto mais pesquisado da história. Temos um enorme banco de relatos em primeira mão do evento e a partir deles os cientistas começaram a analisar o que havia acontecido sem mencionar Deus."

"Pode-se dizer que 1° de novembro de 1755 é a data de nascimento da sismologia, que hoje é estudada com base nesse acontecimento", disse Maria João Marques, do Centro do Terremoto de Lisboa, à BBC Reel.

E é ao Marquês de Pombal que muitos atribuem o nascimento desta nova escola de Ciências.

Ele era o braço-direito do rei e foi encarregado da reconstrução da cidade de Lisboa.

"Ele enviou questionários para cada paróquia para perguntar coisas como: por quanto tempo a terra tremeu? Quão forte? Que danos causou? Quantas pessoas morreram? Você notou algum sinal estranho antes do terremoto?", disse Echegoyen.

"Com sua equipe, eles coletaram e analisaram as respostas, compilando uma espécie de livreto de todas as partidas em todos os lugares, até que começou a surgir um padrão que se tornou a base da ciência sismológica como a conhecemos hoje."

A reconstrução de Lisboa foi impulsionada pela ciência.

Tentando minimizar as mortes em catástrofes futuras, apoiando os esforços de retirada de pessoas e combate a incêndios, o Marquês de Pombal fez com que as ruas estreitas e sinuosas fossem substituídas por avenidas largas, e que os espaços fossem amplos e ventilados.

Além disso, métodos inovadores de engenharia foram utilizados, com estruturas flexíveis de madeira nas paredes dos prédios para que elas "tremessem, mas não caíssem " .

Para testar esta e outras medidas contra terremotos, tropas marchavam ao redor de prédios para simular tremores, levando ao nascimento da engenharia sísmica.

 

Fonte: BBC Culture

 

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