quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Jair de Souza: A palavra final na Venezuela será dada pela luta de classes

Agora já está claro para todos o grande equívoco cometido pelos que estavam propensos a acreditar que com a proclamação dos resultados da eleição presidencial da Venezuela o conflito entre as forças bolivarianas e seus opositores de extrema direita perderia intensidade e a vida política no país vizinho seguiria seu curso pelas vias normais.

No entanto, de nada adiantou que o Tribunal Superior de Justiça venezuelano auditasse os dados disponíveis do processo eleitoral antes de reconfirmar a vitória de Nicolás Maduro que o CNE (Conselho Nacional Eleitoral) já havia anunciado logo após o encerramento da votação.

Ocorre que aqueles que concordavam com a vitória de Maduro continuam concordando e, por sua vez, os que não aceitavam isso permanecem não aceitando.

A bem da verdade, nada de fato dependia do que as tão faladas atas eleitorais estampassem.

Com atas ou sem atas, a controvérsia se manteria acirrada, porque as causas que estão por trás do questionamento são de outra natureza.

Sendo assim, quais seriam os fatores que impulsam e sustentam toda essa celeuma em torno dos resultados das eleições venezuelanas?

Para encontrar as respostas vai ser preciso levar em conta a velha e conhecida luta de classes.

Neste caso específico, estamos falando de lutas sociais em um de seus níveis mais elevados: a luta de classes no contexto do imperialismo.

É que a confrontação com os interesses das potências imperialistas dá o tom na disputa em torno da Venezuela do momento.

Por isso, é impossível abordar a questão venezuelana sem levar em conta o papel do imperialismo na mesma.

A partir da chegada de Hugo Chávez ao comando do Estado da Venezuela em 1999, o país se tornou um dos alvos preferenciais da política agressiva dos Estados Unidos, com vista a isolá-la do restante da América Latina e, no momento oportuno, desfechar sobre a mesma o tradicional bote aniquilador que costumam aplicar a seus desafetos com menores recursos de defesa.

Portanto, pouco tempo após sua chegada à presidência de seu país, o governo de Hugo Chávez foi vítima de um violento golpe empresarial-militar que o removeu do cargo, colocou-o numa prisão e partiu para um ataque generalizado contra tudo e todos que estivessem associados com o governante deposto.

Porém, em vista do nível de consciência e organização que as bases populares venezuelanas tinham atingido naqueles dois anos e pouco de governo chavista, o povo venezuelano saiu em massa às ruas e pôs fim à farra dos golpistas, restituindo o legítimo governante a seu posto de direito.

Desde então, a Venezuela nunca mais teve nenhum espaço de tempo para levar adiante seu processo de reconstrução nacional em conformidade com as necessidades de sua maioria popular.

Toda a fúria do imperialismo e de seus colaboracionistas internos vem sendo desfechada contra a administração chavista, sem lhe conceder sequer um momento de pausa.

As medidas de agressão mais sórdidas imagináveis foram e são praticadas com vistas a infernizar a vida do povo venezuelano com a expectativa de, com isso, forçá-lo a se revoltar contra seus próprios governantes.

Essa pressão asfixiante se acentuou muito após o falecimento do líder natural do bolivarianismo, Hugo Chávez, e sua substituição no comando do processo por Nicolás Maduro.

A Venezuela passou a sofrer ataques terroristas por parte de grupos delinquenciais a serviço da extrema direita (causadores das conhecidas guarimbas) combinadas com ferrenhas medidas de bloqueio externo para impedir a normalização da vida no país.

Como, mesmo assim, os colaboracionistas internos não conseguiam derrotar o chavismo pelas vias institucionais legais, o imperialismo veio em seu socorro e nomeou um de seus serviçais, Juan Guaidó, como presidente paralelo, em contraposição ao que estava constitucionalmente em exercício.

Precisamos recordar que o governo nazista-bolsonarista do Brasil naquele momento também reconheceu o fantoche Juan Guaidó como o representante legal da Venezuela e passou a seus asseclas o controle da embaixada da Venezuela no Brasil.

Durante este processo de usurpação do poder de representação da Venezuela no exterior, o imperialismo confiscou todas as reservas financeiras venezuelanas no exterior e as entregou para os larápios da quadrilha Juan Guaidó-María Corina Machado, as quais foram, oportunamente, desviadas para sustentar a vida dos quadrilheiros e sua entourage.

Além disso, as autoridades estadunidenses também confiscaram a principal subsidiária da empresa petrolífera venezuelana (CITGO) e a transferiram para o usufruto da quadrilha.

Se juntarmos o criminoso bloqueio visando inviabilizar a vida econômica do país agredido com o roubo descarado de seus recursos para entregá-los aos agentes imperialistas de nacionalidade venezuelana, vamos poder entender como tem sido difícil para o governo bolivariano enfrentar os graves problemas de carência e falta de perspectivas existentes.

A fim de angariar apoio público para sua agressão, o imperialismo recorre amplamente a seu arcabouço midiático e digital.

Em consequência, os povos dos países vizinhos são bombardeados 24 horas por dia com notícias falsas e injúrias contra o processo revolucionário em curso na Venezuela e seus dirigentes.

Devido à quase inexistência de difusão informativa contraposta à do imperialismo, é compreensível que exista nos países latino-americanos vizinhos significativas parcelas de suas populações contaminadas pelas campanhas difamatórias deslanchadas de modo intenso e constante por meio das rádios, televisoras e redes sociais digitais (Whatsapp, Twitter, Facebook, Instagram, etc.) que o imperialismo tem a sua disposição.

Em vista disto, qualquer um que não leve em consideração que os graves problemas da Venezuela se devem em primeiro lugar à atuação criminosa das forças imperialistas estará, na verdade, sendo conivente com o imperialismo.

Mas, se o alguém em questão se apresentar como partícipe do campo popular, de esquerda, então, a coisa deve ser vista como muito mais pavorosa.

É que simplesmente não dá para ser parte do campo popular e de esquerda e não ver no imperialismo a grande desgraça que aflige os povos periféricos do capitalismo.

A luta contra o imperialismo é o que caracteriza a luta de classes a nível internacional nesta fase da história em que estamos.

Aqueles que se mostram reticentes em apoiar a legítima resistência que as forças bolivarianas da Venezuela antepõem às agressões do imperialismo devem ser vistos como cúmplices do imperialismo. E assim deverão ser marcados pela história.

 

¨      Venezuela: argumentos da esquerda da esquerda. Por Valter Pomar

Viento Sur publicou, no dia 24 de agosto, um texto útil para quem deseja entender os argumentos dos que criticam o governo Maduro, de um ponto de vista situado à esquerda da esquerda. O texto acusa a “esquerda pró Maduro” de “abandonar” os trabalhadores e o povo venezuelano.

Quem seria esta “esquerda pró Maduro”?

Segundo o texto, seria um “sector cada vez más pequeño (…) según el cual, para salvar a Venezuela y a la región del imperialismo estadounidense, es necesario apoyar al gobierno de Nicolás Maduro a cualquier coste. Este coste, por supuesto, incluye la posibilidad de que, a diferencia de épocas anteriores, Maduro no haya ganado las elecciones (…)”.

Essa definição é verdadeira?

Do meu ponto de vista, não é verdadeira, essencialmente pelo seguinte: certamente existem os que apoiam Maduro a “todo custo”, assim como existe quem se considera mais chavista do que Chávez e Maduro. Mas existem, também, aqueles que não são e nunca foram chavistas; que não defendem toda e cada uma atitude do governo Maduro; mas entendem que é preciso respeitar a soberania da Venezuela, o que inclui, no presente caso, respeitar as decisões da suprema corte e do conselho eleitoral daquele país.

Se entendi direito o argumento do texto, esta “nuance” não faria muita diferença, pois seguiria presente uma lógica “basada más en la geopolítica clásica que en el marxismo”. Para poupar os leitores de digressões teológicas e acadêmicas acerca da geopolítica e do marxismo, faço uma pergunta: para a classe trabalhadora espalhada por todo o mundo (inclusive a que vivia nas repúblicas soviéticas), a vida piorou ou melhorou depois que a URSS desapareceu?

Quem respondeu que “piorou” não obrigatoriamente concorda com o “sistema soviético”, embora se dê conta de que, às vezes, ruim com ele, pior sem ele. E se dá conta, também, de que existe um forte vínculo entre a luta de classes e a chamada “geopolítica” (adoto o termo por comodidade). E “geopolítica”, ao contrário do que sugere o texto, não se resume à luta pelo petróleo. Afinal, existe uma guerra pelo controle da América Latina e Caribe, que transcende o tema petrolífero.

Alias, o texto mesmo reconhece que há um setor da esquerda que “se concentra menos en el petróleo y más en la tragedia de reconocer la derrota de Maduro, visto como un izquierdista, en un contexto de avance de la extrema derecha en el mundo y en la región”. Registro aqui uma malandragem do texto. Óbvio que seria trágica a vitória da extrema-direita; mas derrotar os fascistas no voto e entregar o governo no berro (como em certa medida aconteceu na Bolívia, no início do golpe contra Evo) não seria trágico, seria patético. Assim, quando não “reconhecemos” a “derrota de Maduro”, é entre outras coisas porque não somos patetas.

Mas o principal para o texto não é debater se Maduro ganhou ou não; o principal é tentar provar que Maduro não seria de esquerda. Segundo o texto, Maduro teria “una gramática discursiva con verborrea de izquierda”, mas “lo único que ha hecho es hacer retroceder los logros y el legado de los años de avance del proceso bolivariano. Más allá de las apariencias, lo cierto es que su política desde 2013 (…) En una trayectoria abiertamente autoritaria, Maduro siempre ha favorecido a los sectores empresariales”. Nessa crítica existe uma porção de verdade, a saber: depois da crise de 2008, todos (t-o-d-o-s) os governos progressistas e de esquerda na América Latina e Caribe passaram a enfrentar crescentes dificuldades para melhorar a vida do povo. Quem não foi golpeado, comeu o pão que o diabo amassou. E os que voltaram ou chegaram agora enfrentam imensos problemas (Boric, por exemplo, que o texto trata de maneira tão gentil).

Em parte isso se deve a escolhas (erradas) feitas por esses governos e pelas esquerdas que os sustentam? Seguro que sim! Mas em grande parte se deve à força de nossos inimigos, que nos impuseram fortes constrangimentos e contradições.

Um dos problemas da esquerda da esquerda é que, no balanço das causas, pesam contra a mão esquerda. E isto está vinculado, como aponta o próprio texto, a um método de análise que eles acham ser marxismo, mas que não passa de economicismo. O que eles chamam de marxismo é uma “análisis de la situación de la clase obrera venezolana”.

Sem dúvida este é um componente fundamental de qualquer análise. Mas se a análise for apenas da “situação” da classe trabalhadora (venezuelana ou de quase todos os países, no último período), a constatação será a seguinte: a maioria da classe vive pior hoje do que em 2013. A partir desta constatação, basta dar um pequeno passo para “concluir” que a culpa pela piora nas condições de vida da classe é dos governos; e, onde existem, seria dos governos de esquerda e progressistas.

E se o governo progressista for sujo, feio e malvado, cortem sua cabeça, como diria a rainha do país das maravilhas. O resultado será, como se demonstrou no Brasil e em outros lugares, uma piora nas condições de vida da classe trabalhadora. E, em alguns casos, isso provoca a domesticação de uma parte da esquerda da esquerda, que em nome do antifascismo passa a defender governos mais moderados do que aqueles que ela, antes, atacava. Se quisermos evitar este desfecho, é preciso analisar a situação da classe, no contexto da luta de classes.

Parece óbvio, mas infelizmente há quem desconsidere o obvio: as classes só existem em luta e na luta. E, portanto, se queremos extrair conclusões políticas, é preciso ir além da descrição dos sofrimentos de nossa classe. É preciso considerar a luta como um todo, que inclui não apenas o conflito de classes dentro de cada país, mas também a luta entre Estados no plano mundial.

Quando fazemos isso, o resultado da análise tende a ser menos “binário”. E podemos perceber, por exemplo, que numa determinada correlação de forças, a derrota de um governo progressista e de esquerda pode piorar expressivamente a situação da classe trabalhadora, bem como piorar a situação dos governos e Estados que se opõem de alguma forma a quem hoje hegemoniza o mundo. Nem toda vez é assim, vide o caso sempre citado de Kerensky em 1917. Mas na América Latina e Caribe entre 1998 e 2024 tem sido assim.

Como em 1973 se dizia do governo Allende, mesmo quando são governos de merda, são os nossos governos e devem ser defendidos contra a oposição de direita e extrema-direita. Não é essa, obviamente, a posição de esquerda da esquerda. Aliás, o texto não discorre sobre quais seriam as consequências de um hipotético governo de María Corina Machado y Edmundo González.

Embora o texto afirme que a “classe obrera le interesa fundamentalmente cómo la situación tras el 28J permite o restringe, a corto plazo, las libertades que necesita para expresarse como clase”, a única “situacion” analisada é o que, supostamente, fez, faz ou deixa de fazer o governo Maduro. Os autores do texto acusam o governo Maduro de reprimir os trabalhadores, antes e depois do 28 de julho.

Vamos supor que parte do que é dito fosse verdade. Por quais razões, então, o texto afirma que uma vitória de Guaidó Segundo seria uma “tragédia”? No que esta “tragédia” diferiria da que o texto descreve, quando fala do governo Maduro??

Silêncio! Talvez porque ninguém tenha dúvida sobre o que implicaria uma vitória da extrema direita sobre as liberdades e condições de vida da classe trabalhadora venezuelana. Mas se o texto admitisse isto, toda a sua crítica ao governo Maduro teria que mudar de tom e perspectiva.

E já que falamos em silêncio, o texto não fala em nenhum momento de Guaido Primeiro. Vá saber por qual motivo acontece este tipo de “omissiones y silencios comprometedores”. O que parece organizar o pensamento da esquerda da esquerda é o objetivo de construir “una alternativa por la izquierda”. Este objetivo é, falando em tese, legítimo. Mas ele não será alcançado através de uma vitória da direita.

No caso do Brasil, uma parte da esquerda da esquerda descobriu isso do pior jeito possível. O texto foi escrito a quatro mãos, duas são brasileiras, mas pelo visto são de quem não entendeu as lições do último período. Nem todo mundo aprendeu, é verdade. E nem todo mundo tirou as mesmas lições.

Basta ver a crença que muitos seguem mantendo no efeito supostamente mágico das amplas alianças, das instituições, do ajuste fiscal e do discurso republicano. Neste sentido, o texto tem alguma razão quando afirma que o “êxito electoral del binomio Machado-González es en buena medida el resultado de los errores políticos del madurismo”.

Sem dúvida, houve erros. Alguns vem de longe, outro de perto. Mas cabe perguntar: o texto acha que a oposição venceu? Acha que houve fraude? Segundo o texto, seria uma tragédia “el hecho de que esta extrema derecha haya podido ganar o estar muy cerca de ganar las elecciones, no hay otra razón para la insistencia de Maduro en negar los resultados y reprimir tan duramente al pueblo.” “Haya podido ganhar” é muito diferente de “estar cerca de ganar”.

Curiosamente, o texto inteiro é escrito com base na convicção de que Maduro perdeu, mas esta certeza é apresentada quase sempre de forma indireta. E o motivo é óbvio: ao acusador cabe o ônus da prova e os que acusam não têm provas. Por isso, aliás, exigem “atas” que a oposição venezuelana sempre teve e que, quando mostrou, o fez de forma manipulada e fraudulenta. Por isto que foi dito, não é verdade que Maduro “negue” os resultados. O que ele nega é que a oposição tenha vencido. Negativa baseada nas resoluções da justiça venezuelana.

Tomar esta negativa como suposto indício de que a oposição ganhou ou está por ganhar é simplesmente surreal. Seja como for, não há dúvida de que o texto foi escrito por quem acredita que houve fraude nas eleições de 28 de julho e que a oposição venceu. Achar isso é um direito de quem queira. O que não podem é desconsiderar que existe, na esquerda, quem tenha certeza de que Maduro venceu as eleições e, portanto, acredite que “fraude” é o que a direita tenta fazer. É por isso, aliás, que este setor da esquerda – seguro da vitória de Maduro – não apoia a solução “negociada”. Não por apego ao poder supostamente negado pelas urnas, mas porque o único efeito prático de certas propostas de negociação é dar aparência de legitimidade para quem desconsidera totalmente a legalidade materializada na Constituição bolivariana.

Obviamente, quem acredita que houve fraude vê o panorama de outro ponto de vista. E ao fazê-lo revela um incrível apreço não pela democracia em geral, mas por uma específica interpretação da democracia. Vejamos qual.

Segundo o texto, “no podemos identificar mecánicamente a los pueblos con sus dirigentes políticos, que pueden o no representarlos, en una relación siempre dinámica. Cuando esta relación se rompe -como se ha roto o se está rompiendo en Venezuela- las libertades democráticas se convierten en un punto de apoyo fundamental para cualquier lucha por la soberanía, tanto popular como, por cierto, nacional”. Portanto, se as eleições deram a vitória para Guaidó Segundo, então – apesar de que os “regímenes democrático-burgueses no son el régimen al que aspiramos estratégicamente los socialistas” – devemos acatar os resultados. Se não agirmos assim, “¿Cómo queda una izquierda que desprecia la democracia hasta el punto de avalar la manipulación de las elecciones, frente a los pueblos y trabajadores del mundo y en países (cada vez más) donde la lucha contra la extrema derecha es vital?”

Portanto, se entendi direito, deveríamos reconhecer a vitória da extrema direita na Venezuela, para demonstrar nosso compromisso com a democracia! Obviamente, isto só tem algum sentido para quem acredita que a oposição ganhou. Mas mesmo para quem acredita nisso, uma vitória da extrema-direita deveria causar muito mais preocupação do que a expressa no texto (com o destino da PDVSA, por exemplo).

Afinal, está mais do que demonstrado que a chegada da extrema-direita ao governo não é uma “alternância” normal.

Acho que o texto não aborda isso entre outros motivos porque – embora a dupla de autores certamente vá negar isto – sua defesa das liberdades democráticas se confunde com a defesa do que eles mesmos chamam de “regime democrático burguês”. O que os leva a, partindo da esquerda da esquerda, terminarem repetindo argumentos liberais acerca da “democracia”. Isto não é uma “qualidade” apenas deste texto e de seus autores, mas de muito mais gente. O liberalismo tem mesmo uma atração fatal.

 

Fonte: Viomundo

 

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