Transfobia no esporte: quebrando mitos
Na véspera do maior
clássico do voleibol feminino brasileiro, entre Osasco e Rio, no começo de
março deste ano, Tifanny Abreu, maior pontuadora do time paulista, foi vítima
de um crime. Transfobia. Ela ainda é a única jogadora trans da elite do
voleibol no Brasil e infelizmente já vivenciou preconceito muitas vezes.
A grande diferença
desse caso de transfobia dos que sofreu em 2017, quando começou a jogar nos
campeonatos femininos em solo brasileiro, é que Tifanny agora tem muitas
pessoas do seu lado: todo elenco do Osasco Voleibol Clube, a comissão técnica
e, principalmente, a torcida apaixonada pelo time e pela jogadora.
É inegável que houve
uma mudança social de 2017 para cá, ainda que longe do ideal. Isso foi
impulsionado pela inserção de pessoas trans em diversos segmentos-como a
política e as produções audiovisuais, assim como pelos avanços de direitos no
Supremo Tribunal Federal (STF).
Imediatamente houve
uma mobilização e o funcionário da equipe do Rio, que havia curtido um
comentário transfóbico contra Tiffany no perfil oficial do Sesc Flamengo, foi
desligado e o clube precisou se posicionar.
Não é justo que sete
anos depois, Tifanny continue sendo alvo de ataques unicamente por ser quem é.
Ainda que seja nosso único exemplo regular e constante de pessoas trans no
esporte brasileiro, Tifanny já provou de todas as maneiras que mulheres trans ou
travestis não tem vantagem nos esportes. O que existe é treino, dedicação e, no
caso dela, garra pra nunca desistir.
• Mitos que nos tiram dos esportes
Eu tive a chance de
entrevistar Tifanny em duas ocasiões: uma na Ponte Jornalismo e outra na ESPN
Brasil. Em ambas as situações falamos sobre as dificuldades que enfrenta,
dentro e fora das quadras, e como virou pioneira e ativista de um movimento,
mesmo que involuntariamente.
Ainda hoje temos feito
história por sermos os primeiros corpos trans a ocupar espaços e, por sermos os
únicos, precisamos lutar pelos nossos direitos. Isso é algo muito constante na
vida de pessoas trans.
O grande problema
quando falamos de pessoas trans nos esportes é lidar com os mitos e mentiras
que foram criados. O mais famoso é a da tal da vantagem que teriam as atletas
trans e travestis, que tornaria as competições “injustas”.
Tudo isso é amplamente
usado pela extrema-direita para tentar a proibição de pessoas trans nos
esportes, uma das principais pautas em projetos de leis anti-trans.
Não existe nenhuma
vantagem para corpos trans nos esportes. O que existe é uma vida de exclusões
–em todos os sentidos. Quando anunciamos a transição publicamente, essa
exclusão aumenta. A única verdade por trás desses ataques, projetos de lei e
tentativas de nos impedir que estejamos nos esportes, é a transfobia.
Até porque existem
regras para que pessoas trans participem de competições esportivas, que são
definidas por modalidade. Então se vemos pessoas trans atletas, é porque elas
estão seguindo essas diretrizes.
Para mulheres trans e
travestis que não passaram por cirurgias de redesignação sexual, por exemplo, é
necessário reduzir os níveis de testosterona no sangue. Quem já fez a cirurgia
não precisa. Para os homens trans é o oposto: precisa aumentar a testosterona
no sangue.
Quando eu trabalhei na
ESPN, sendo o primeiro e único jornalista trans da redação, tive a chance de
fazer uma série, que passou em todos os jornais da emissora esportiva. Na
Atletrans, idealizada por mim e pela jornalista Ivana Negrão, buscamos
esclarecer esses mitos e mentiras.
A ideia da série veio
depois da Ivana ter visto alguns stories da ex-nadadora olímpica Joanna
Maranhão defendendo a nadadora Lia Thomas, que havia ganhado o circuito
universitário feminino de natação e vinha sofrendo ataques transfóbicos em
2021. Nos olhamos e pensamos: e se fizéssemos uma série pra acabar de uma vez
por todas com essas mentiras?
Além de Joanna e
Tiffany, ouvimos um time amador de futebol só de homens trans: Marcelo
Nascimento, ex-jogador que precisou abandonar o futebol pra transicionar,
Sheilla Castro, ex-atleta de voleibol que já criticou Tifanny jogar no feminino
(e mudou de ideia), e profissionais da saúde.
Uma das mais
importantes falas da série foi da Tifanny. A jogadora falou sobre a suposta
vantagem e força que ela teria. “Realmente nós temos mais força. Mas não é
força bruta, é força de viver, de sair de casa mesmo sabendo que não podemos
voltar”.
A entrevista com
Joanna também foi fundamental para concluir a série – e é o melhor exemplo de
como uma pessoa cis pode ser aliada e usar seu privilégio pra ecoar nossas
lutas. “Quando uma pessoa se declara trans, ela vira um alvo. E isso está muito
distante de ser uma vantagem”, cravou.
Em outra de suas
falas, Joanna explica que, o esporte de alto rendimento, por si só, já é
injusto: “Como podemos achar justo competições que colocam lado a lado quem
sempre foi incentivado a praticar um determinado esporte e quem está lá por
resistência?”
Vantagem no esporte
tem o atleta que opta pelo doping, descumprindo as regras pré-determinadas e
impedindo que os demais possam participar em uma competição equitativamente.
• Legado no esporte
Quando entrevistei
Tifanny para a série Reflexões, ela me lembrou a importância do legado que
estamos construindo coletivamente no esporte, seja como atletas ou jornalistas.
“Eu vou ser conhecida
como a mulher trans no esporte, mas esse meu legado hoje vai fazer com que
outras meninas sejam conhecidas só como atletas, como campeã olímpica, como
atleta de ouro”, disse Tiffany, no programa.
“Eu lutei para ser
atleta, virei atleta. Eu lutei para ser a mulher que eu sou e eu sou essa
mulher. Eu lutei para ser uma mulher do esporte e hoje eu sou”, completou.
Ainda sobre legado,
nas Olimpíadas de Tóquio em 2021, 160 atletas declaradamente LGBTs participaram
das competições. Uma dessas pessoas era Quinn, a única pessoa trans a jogar
futebol profissionalmente em uma seleção.
Sua presença em campo
fez, pela primeira vez em uma transmissão oficial no Brasil, o uso da linguagem
neutra ser usado (já que Quinn se identifica como uma pessoa não-binária e usa
pronomes neutros: elu/delu). Quem narrou esse momento foi a narradora Natália
Lara, da Rede Globo.
• Rompendo paradigmas
Quinn não só foi a
primeira pessoa trans a jogar em uma seleção em Olimpíadas como se tornou a
primeira pessoa trans medalhista, já que seleção canadense foi a grande campeã
da competição. Caso Quinn esteja na lista de convocações para os Jogos
Olímpicos de Paris, no segundo semestre deste ano, pode fazer ainda mais
história.
É muito comum ver
bandeiras trans espalhadas pelas arquibancadas em jogos do Canadá, unicamente
pela existência de Quinn em campo. Isso também ocorreu na última Copa Feminina
do ano passado.
Quinn continua jogando
na seleção feminina porque, em sua transição, optou por não fazer uso dos
hormônios. A principal mudança veio no nome e no pronome, que foram acolhidos e
respeitados pelas atletas, comissão técnica, pelo COI (Comitê Olímpico Internacional)
e pela FIFA.
Com Marcelo Nascimento
foi o oposto. Marcelo era atleta do Corinthians feminino e se identifica como
homem trans. Para ele fazia sentido fazer o uso do hormônio e realizar a
mastectomia e, sabendo como o futebol masculino é LGBTfóbico, abandonou a
carreira de jogador.
Em um futuro bem
próximo, eu desejo que tenhamos mais Tifannys, Quinns, Marcelos (que tenham a
oportunidade de escolher seguir os seus sonhos) e uma infinidade de atletas
trans que não mais precisem enfrentar a transfobia. Lidar com todas as questões
que envolvem ser um atleta de alto rendimento já é muita coisa. Que nossos
atletas trans tenham mais afeto e acolhimento para conseguir mostrar seu melhor
dentro da modalidade escolhida.
Pessoas trans, o
esporte também é um lugar para nós. Chegou a hora de ocupá-lo.
Fonte: Por Caê
Vasconcelos, na Revista AzMina
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