'Intensificar as batidas nas favelas' é uma
ordem que sempre marcou a atuação das polícias no Brasil
NO DIA 12 DE AGOSTO DE
1971, representantes de vários órgãos da estrutura repressiva da ditadura se
reuniram no Palácio Duque de Caxias, um imponente prédio localizado na Av.
Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro.
Após fazerem uso da
palavra os agentes da seção de informações do I Exército, do Centro de
Informações da Marinha, da Polícia Federal e do Departamento de Ordem Política
e Social, o Dops, chegou a vez do representante da Polícia Militar do estado da
Guanabara falar.
Na ata que restou do encontro, a mensagem
passada por ele era bastante direta: “Vai intensificar as batidas nas favelas,
realizando-as da ordem de 3 a 4 vezes por semana”.
Aquelas eram reuniões
semanais, em que cada agência compartilhava informes sobre as ações que vinham
desenvolvendo.
Parte dessas atas
foram armazenadas no acervo do Serviço Nacional de Informações, o SNI, e
sobreviveram à ditadura, sendo localizadas hoje no Arquivo Nacional. Uma
leitura desses documentos mostra como, em geral, as informações trocadas tinham
a ver com operações contra militantes da oposição, especialmente da
guerrilha.
No entanto, a
participação da PM naquela reunião de 12 de agosto joga luz sobre um aspecto
menos conhecido da ditadura militar: as conexões entre a atuação cotidiana das
polícias no combate à dita criminalidade comum – tarefa que esconde o uso da
violência do Estado como meio de controle social das populações pobres e
periféricas – e a atuação das forças de segurança do regime na chamada
repressão política.
Essas conexões
permitiam, na prática, um aprendizado mútuo entre o policial que torturava na
favela e o militar que torturava no DOI-Codi.
Filósofos tão
diferentes como Hannah Arendt e Michel Foucault, recuperando uma ideia
originalmente formulada por Aimé Césaire, trabalhavam com uma ideia que pode
ser útil para entender essa conexão: o efeito bumerangue. Com isso, Arendt
chamava a atenção para o fato de que o colonialismo europeu nos territórios
africanos voltaria para a própria Europa posteriormente, na forma da violência
nazifascista.
Generalizando o
conceito, Foucault apontou que as colônias e periferias sempre funcionam como
laboratórios para tecnologias e dispositivos de violência que depois serão
utilizados nas metrópoles.
Então vejamos como se
deu, na prática, o efeito bumerangue entre as polícias militares e as Forças
Armadas na ditadura militar brasileira.
“Eu passei muito tempo
interrogando presos de favelas, para conseguir descobrir onde estava o depósito
de armas. Então a gente vai pegando prática. Eu tinha experiência”. Com essas
palavras, Riscala Corbage, um major da Polícia Militar do Rio de Janeiro, respondeu ao Ministério
Público Federal sobre sua atuação no Destacamento de Operações de Informações
do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), a mais temida agência de
repressão da ditadura militar (1964-1985).
O depoimento se deu no
âmbito de uma investigação do MPF sobre o desaparecimento forçado de Rubens
Paiva, ocorrido em 1971.
O agente explicita que
a expertise acumulada ao “interrogar” – um eufemismo para
torturar – moradores de favelas foi o que o habilitou a ser
convocado a atuar no combate aos opositores políticos do regime.
Mas o oposto também
era verdade. As ações de combate à guerrilha produziam aprendizados que depois
eram incorporados pelas polícias de modo mais geral.
É o que mostra um documento da
Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGMP) localizado também no acervo do
SNI. A própria IGPM foi criada pela ditadura em 1967, como forma de submeter as
polícias ao controle do regime e conectar a “segurança pública” com a
“segurança nacional”.
O documento é uma
“nota de instrução” de junho 1971, que tinha como objetivo “ressaltar
ensinamentos colhidos pela experiência em atividades de guerrilha e
contraguerrilha rural”.
Segundo o relatório,
“na fase repressiva, as PMs não poderão descurar-se da importância de suas
ações, complementando as do Exército”.
A nota trazia vários
casos concretos que haviam ocorrido no quadro da repressão a grupos da
resistência armada à ditadura, e buscava extrair lições deles.
Um dos ensinamentos
era o de que “os fatores moral, coragem, ímpeto e agressividade têm que ser
desenvolvidos nos homens. O comandante tem que procurar manter a iniciativa do
combate”.
No mesmo ano de 1971,
portanto, um Policial Militar entregava seu conhecimento sobre torturas para
aprimorar o trabalho do Exército no DOI-Codi; os militares envolvidos nas
operações de combate à guerrilha rural compartilhavam seus aprendizados com as
Polícias Militares; e o representante da PM da Guanabara informava que iria
“intensificar as batidas nas favelas” em uma reunião com representantes de
todos os órgãos da estrutura repressiva do regime.
Esses documentos e
relatos parecem suficientes para sustentar a ideia do efeito bumerangue. Ou
seja, havia uma profunda conexão entre a violência de Estado perpetrada nas
favelas e periferias, majoritariamente contra a população negra -violência que
evidentemente antecede o próprio golpe de 1964 – , e aquela que se voltou
contra os militantes da oposição ao regime.
Mas por qual razão,
então, ao falarmos da ditadura hoje, parece que estamos limitados a este
segundo aspecto?
Porque durante a
redemocratização essas duas dimensões da violência de Estado passaram a ser
tratadas como distintas. As evidentes conexões entre elas foram sendo apagadas,
na medida em que apenas algumas formas de repressão passaram a ser vistas como
“violências políticas”.
As práticas violentas
que não foram enquadradas dessa forma pelo conjunto da sociedade adentraram a
democracia sem que fossem vistas como um problema. É a construção desse
discurso duplo sobre a violência de Estado que tento analisar em meu livro
recém lançado, A transição inacabada (Companhia das Letras).
·
Novo regime, velhas práticas
Se poucos anos depois
da Constituição de 1988, policiais militares assassinassem sob tortura e
desaparecessem com o corpo de 11 militantes políticos de uma só vez, e
justificassem isso como uma prática para defender a “segurança nacional”, teria
havido um escândalo de grandes proporções.
Todos diriam que a
recém-nascida democracia estava em risco. Mas isso não ocorreu.
Aconteceu, porém, com
11 jovens negros moradores da favela de Acari. Apresentada como uma questão de
“segurança pública”, não de “segurança nacional”, a Chacina de Acari de 1991
não foi vista como um sinal de que o regime democrático que começava a se institucionalizar
no país tinha sérios limites.
As consequências dessa
divisão são muitas, até hoje. A primeira delas é que ela nos impede de conhecer
de forma mais aprofundada a extensão e o tamanho da violência perpetrada pelo
Estado na ditadura militar.
E isso é um problema
porque o discurso de que nossa ditadura não teria sido tão violenta está no
centro das visões negacionistas que buscam legitimar aquele período. No marco
dos 60 anos do golpe de 1964, superar essa visão é uma tarefa urgente.
Mas outra consequência
não tem a ver com a forma como vemos o passado. Tem a ver com a maneira pela
qual enxergamos os problemas do presente.
Desde o golpe de 2016,
e particularmente com o governo Bolsonaro, a questão das Forças Armadas voltou
a figurar no centro do debate público.
Ao mesmo tempo, o
problema da violência policial, que nunca deixou de estar presente, também tem
recrudescido. Infelizmente, porém, esses temas costumam ser tratados como
coisas distintas.
É verdade que há
medidas específicas para lidar com cada um deles. Por exemplo, é urgente rever
o artigo 142 da Constituição para submeter definitivamente as Forças Armadas ao
poder civil; ao mesmo tempo, é necessário cobrar que os Ministérios Públicos exerçam
sua tarefa de controle externo da atividade policial.
No entanto, a
persistência dessa divisão entre o que seria o problema das polícias, de um
lado, e a questão das Forças Armadas, de outro, nos impede de ver que as mesmas
conexões existentes durante a ditadura seguem operando.
Em outras palavras,
quero chamar a atenção para o fato de que precisamos enxergar um efeito
bumerangue, por exemplo, entre o massacre perpetrado pela Polícia de São Paulo
na Baixada Santista e a participação das Forças Armadas na tentativa de golpe
no 8 de Janeiro.
Um alimenta o outro. A
autorização social para a violência nas favelas e periferias está na origem dos
discursos que depois vão legitimar o autoritarismo político e os ataques ao
processo eleitoral.
Porque afinal, em
ambos os casos, o que está em jogo, como disse a cientista política Ana Penido
em texto recente, são os
“instrumentos (humanos e materiais) de violência de Estado” e a dificuldade
histórica de se estabelecer qualquer tipo de controle político sobre
eles.
A Frente Ampla que se
constituiu em 2022 para derrotar Bolsonaro nas eleições teve como eixo
fundamental a defesa da democracia.
Contudo, já está
evidente que muitos setores da sociedade que se mobilizam para defender a
realização de eleições não acham que uma operação policial que deixa mais de 50
mortos é também um problema para nossa democracia.
Evidenciar o efeito
bumerangue e as conexões entre esses dois pontos, e combatê-los como dois lados
de uma mesma moeda, é a única forma que temos de tentar quebrar definitivamente
os ciclos de violência de Estado e autoritarismo que têm marcado a história do
Brasil.
Fonte: Por Lucas
Pedretti, em The Intercept
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