Espiritualidade: Visões de quase morte
O cérebro normalmente
se desliga entre 20 e 30 segundos depois que o coração para de funcionar,
afirmam os especialistas. Mas os resultados de um estudo de quatro anos,
envolvendo 2.060 casos de parada cardíaca ocorridos em 15 hospitais no Reino
Unido, nos Estados Unidos e na Áustria, mostrou algo diferente. A equipe da
Universidade de Southampton (Inglaterra) que liderou a pesquisa, a maior do
gênero já realizada, descobriu que quase 40% dos sobreviventes desses casos
descreveram algum tipo de “consciência” em momentos em que, de acordo com a
teoria, estavam clinicamente mortos.
Para os cientistas
responsáveis pelo estudo denominado Aware (sigla em inglês para Awareness
During Resuscitation – “Consciência Durante a Ressuscitação”), divulgado em
outubro de 2014 na revista Resuscitation, da fundação Conselho de Ressuscitação
Europeu, o material coletado contém evidências de que uma parte significativa
dos pacientes vivenciou eventos reais por até três minutos além do suposto
instante da morte cerebral, e alguns daqueles reanimados conseguiram
descrevê-los com riqueza de detalhes.
• Exploração objetiva
“Contrariamente à
percepção, a morte não é um momento específico, mas um processo potencialmente
reversível que ocorre depois que qualquer doença ou acidente grave leva o
coração, os pulmões e o cérebro a parar de funcionar”, observa o médico inglês
Sam Parnia, professor assistente de medicina e diretor do centro de
ressuscitação da Universidade Estadual de Nova York, e que atuava como
pesquisador honorário na Universidade de Southampton quando liderou o estudo.
“Se são feitas
tentativas para reverter esse processo, ele pode ser referido como ‘ataque
cardíaco’. Entretanto, se essas tentativas não conseguem sucesso, ele é chamado
de ‘morte’”, diz Parnia. “Nesse estudo, queríamos ir além do conceito de
experiência de quase morte, emocionalmente carregado, mas pobremente definido,
para explorar objetivamente o que acontece quando morremos.”
Dos pacientes que
sobreviveram ao ataque cardíaco e puderam ser submetidos ao primeiro estágio de
entrevistas, 39% descreveram uma percepção de consciência, mas, curiosamente,
não tinham nenhuma lembrança nítida de eventos. O máximo que 20% dessas pessoas
conseguiam recordar era uma incomum sensação de tranquilidade. Cerca de 33%
delas declararam ter sentido o tempo desacelerar ou
ficar mais rápido.
Alguns pacientes relataram uma luz brilhante, um clarão dourado ou um Sol
resplandecendo. “Isso sugere que mais pessoas podem ter inicialmente atividade
mental (nesses momentos), mas perdem suas memórias depois de recuperar- se, por
causa dos efeitos de lesão cerebral ou de sedativos nos circuitos da memória”,
avalia Parnia.
• Descrições detalhadas
Dos 101 pacientes que
passaram por dois estágios diferentes de entrevistas, 45,5% afirmaram não ter
tido quaisquer recordações, memórias ou consciência dos momentos em que não
manifestavam vida. Mas 45,5% descreveram um leque de recordações não compatíveis
com experiências de quase morte, entre elas relatos de experiências
aterrorizantes e de perseguição. Já 7% tiveram experiências compatíveis com
defi nições tradicionais da experiência de quase morte e 2% superaram esse
nível, demonstrando plena consciência daqueles momentos e fazendo referências
explícitas sobre o que “viram” e “ouviram”, características típicas dos casos
definidos como “experiências fora do corpo”.
Os fenômenos chamados
popularmente de experiências de quase morte ou experiências fora do corpo são
comumente atribuídos a alucinações ou ilusões, ocorrendo tanto antes de o
coração parar quanto após ele ser ressuscitado. Mas um caso “muito verossímil”,
conforme Parnia descreveu ao jornal inglês Th e Telegraph, aponta claramente
para outra direção. Um assistente social de 57 anos, de Southampton, permaneceu
consciente após o suposto desligamento do cérebro e fez observações preciosas
para o estudo. Ele se lembra de ter deixado seu corpo e acompanhado as
tentativas de ressuscitá-lo no canto do quarto. Relatou ainda os procedimentos
da equipe médica que o socorreu. “O homem descreveu tudo que havia acontecido
no quarto, mas o que mais se destaca é que ele ouviu dois ‘bips’ de uma máquina
que emite um ruído a intervalos de três minutos”, diz Parnia. “Assim, pudemos
calcular quanto tempo durou a experiência. Ele parecia muito confi ável e tudo
o que disse que havia acontecido de fato aconteceu.”
• Estudo fascinante
Parnia e seus colegas
sublinham que, embora apenas 2% dos entrevistados tenham exibido uma ampla
consciência dos fatos posteriores à sua “morte”, os resultados obtidos
recomendam novas e mais aprofundadas pesquisas nessa área. Outros estudos
também são indicados para explorar se a consciência (implícita ou explícita)
pode conduzir os pacientes a resultados psicológicos adversos no longo prazo,
como o transtorno do estresse pós-traumático. “De maneira clara, a experiência
lembrada que cerca a morte merece agora uma investigação genuína mais
aprofundada e sem preconceito”, escrevem os cientistas.
Jerry Nolan,
editor-chefe da Resuscitation, acrescentou: “O dr. Parnia e seus colegas devem
ser parabenizados pela conclusão de um estudo fascinante que abrirá a porta
para pesquisas mais abrangentes sobre o que acontece quando morremos”.
Experiências de quase morte seriam uma
estratégia de sobrevivência?
As experiências de
quase morte (EQMs, ou NDE, na sigla em inglês) são conhecidas em todas as
partes do mundo, em várias épocas e em várias culturas. Essa universalidade
sugere que eles podem ter uma origem e um propósito biológicos. Mas exatamente
o que isso poderia ser era amplamente inexplorado.
Um novo estudo
conduzido em conjunto pela Universidade de Copenhague (Dinamarca) e pela
Universidade de Liège (Bélgica) mostra como as experiências de quase morte em
humanos podem ter surgido de mecanismos evolutivos. Um artigo sobre o trabalho
foi publicado na revista Brain Communications.
“Seguindo um protocolo
pré-registrado, investigamos a hipótese de que a tanatose é a origem evolutiva
das experiências de quase morte”, disse Daniel Kondziella, neurologista de
Rigshospitalet, Hospital Universitário de Copenhague.
Quando atacados por um
predador, como mecanismo de defesa de último recurso, os animais podem simular
a morte para aumentar suas chances de sobrevivência, a exemplo do gambá. Esse
fenômeno é denominado tanatose, também conhecido como simulação de morte ou
imobilidade tônica. “Como estratégia de sobrevivência”, acrescentou Kondziella,
“a tanatose é provavelmente tão antiga quanto a reação de lutar ou fugir.”
• Sobreposição
Charlotte Martial,
neuropsicóloga do Coma Science Group na Universidade de Liège, explicou:
“Primeiramente mostramos que a tanatose é uma estratégia de sobrevivência
altamente preservada que ocorre em todos os pontos de interseção principais em
um cladograma que varia de insetos a peixes, répteis, pássaros e mamíferos,
incluindo humanos. Mostramos então que humanos sob ataque de grandes animais,
como leões ou ursos-pardos, predadores humanos, como criminosos sexuais, e
predadores ‘modernos’, como carros em acidentes de trânsito, podem experimentar
tanatose e experiências de quase morte. Além disso, mostramos que a
fenomenologia e os efeitos da tanatose e das experiências de quase morte se
sobrepõem.”
Steven Laureys,
neurologista e chefe da unidade de pesquisa Giga Consciousness e do Centre du
Cerveau (Universidade de Liège e Centro Hospitalar da Universidade de Liège),
afirmou: “Neste artigo, construímos uma linha de evidências que sugere que a
tanatose é a base evolutiva das experiências de quase morte e que seu propósito
biológico compartilhado é o benefício da sobrevivência”.
Os autores propõem que
a aquisição da linguagem permitiu aos humanos transformar esses eventos de
simulação de morte relativamente estereotipada sob ataques predatórios em
percepções ricas que formam experiências de quase morte e se estendem a
situações não predatórias.
• Peça importante
“É digno de nota que
os mecanismos cerebrais propostos por trás da simulação de morte não são
diferentes daqueles que foram sugeridos para induzir experiências de quase
morte, incluindo a intrusão do sono de movimento rápido dos olhos na vigília”,
explicou Daniel Kondziella. “Isso fortalece ainda mais a ideia de que os
mecanismos evolutivos são uma peça importante de informação necessária para
desenvolver uma estrutura biológica completa para experiências de quase morte.”
Nenhum trabalho
anterior havia tentado fornecer tal base filogenética. “Esta também pode ser a
primeira vez que podemos atribuir um propósito biológico às experiências de
quase morte, o que seria o benefício da sobrevivência”, afirmou Steven Laureys.
Daniel Kondziella
acrescentou: “Afinal, as experiências de quase morte são, por definição,
eventos que sempre sobrevivem, sem exceção”.
Fonte: Revista Planeta
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