Por que educação pública não deve ser
privatizada
Narrativa sobre
ineficiência de setor público é estratégica para validar a entrada no ensino do
setor privado, que possui agenda própria e interesses estratégicos nessa
atuação.SP deve lançar em novembro leilão para privatizar gestão de 33 escolas:
Esse é o título de uma matéria do UOL, escrita pela Ana Paula Bimbati. Quem me
enviou foi um professor do meu mestrado em políticas públicas na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele havia comentado sobre o assunto e
honestamente me pegou de surpresa.
Já deixo bem claro a
minha opinião: não vejo com bons olhos essa iniciativa. Não tenho absolutamente
nada contra a parceria público-privada (PPP) e acredito que o saldo pode ser
positivo em muitas situações, mas tenho enormes ressalvas com esse tipo de parceria
na educação.
Qual o objetivo do
plano? Segundo a própria secretaria paulista seria “liberar a direção da escola
de tarefas burocráticas, permitindo maior dedicação às questões pedagógicas”.
Lindo, né? E, de fato, nasceu de uma problemática real que já relatei na coluna.
Por que então estou problematizando? Bom, por que a solução precisa
obrigatoriamente envolver o setor privado?
No Brasil, há uma
narrativa de que o Estado é ineficiente, sempre corrupto e cheio de
profissionais “mamando nas tetas do governo”. Não sou ingênuo ou excessivamente
idealista: há sim corrupção e profissionais não qualificados – como também
ocorre no setor privado. Agora é de uma maldade sem tamanho generalizar e
colocar todo o sistema e profissionais na mesma caixa. Temos instituições
públicas de referência internacional e profissionais do setor altamente
qualificados, éticos e comprometidos.
Morro de vergonha
quando ouço os autointitulados liberais dizendo que o melhor dos cenários é
Estado zero e que é assim nas maiores nações do mundo. Quem disse isso? A
literatura econômica mostra justamente o contrário. Quase todos os maiores
países do mundo têm tanta ou ainda mais participação do Estado do que o Brasil,
inclusive os Estados Unidos. E outra: até os mais liberais economistas da
história sempre sinalizaram que a educação deveria ser responsabilidade do
Estado.
Setor privado nem
sempre é solução
O problema está na
gestão. Meu professor tem nos provocado bastante sobre isso: Por que não se
fala sobre capacitar os profissionais do setor público e investir no que já
existe? Por que a solução está sempre no setor privado?
Bom, aqui o “buraco é
mais embaixo”. A narrativa de que o setor público é ineficiente e de que a
solução está no setor privado integra uma estratégia que visa enfraquecer o
primeiro e abrir margem para a entrada do segundo – este com agenda própria e
quase nunca coesa com a que o Estado deveria assumir.
São Paulo não é o
único com esse início de uma possível privatização em vigor. O Paraná começou
em 2022, e atualmente testa o modelo de gestão privada em duas escolas. É
coincidência? Não. Os dois têm em comum o secretário Renato Feder, que atuou no
estado sulista antes de assumir a mesma posição no estado de maior importância
econômica do Brasil.
Essa relação das
secretarias de educação com o setor privado não é nova. Li um artigo de 2018 da
Teise Garcia, professora no curso de pedagogia da Universidade de São Paulo,
intitulado A gestão escolar no contexto da privatização da educação básica. Ela
já identificava presença de atores privados na gestão educacional no período
entre 2005-2015.
Quem está por trás de
tudo isso? Bom, no geral, grandes fundações. Há uns dois anos, falei com um
professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) que contou que há um evento
anual do qual participam todos os secretários de educação do Brasil, cuja organização
foi muitas vezes patrocinada por grandes fundações. Quem está por trás de uma
delas é simplesmente um dos homens mais ricos do Brasil. Olhem o poder de
entrada: simplesmente em todas as secretarias de educação do país e podem, como
já acontece, influenciar o currículo e decisões de políticas públicas
envolvendo a educação básica.
• Cuidado seletivo
Sou fundador de um
projeto social nacional de educação que auxilia jovens da rede pública com o
ingresso no ensino superior. É 100% sem fins lucrativos e composto
integralmente por voluntários universitários. Já visitei colégios de dez
estados para divulgar nosso trabalho e em alguns tive uma dificuldade
incrivelmente absurda para visitar os colégios, mesmo via secretarias.
Eu ficava meio
desapontado, mas no fundo até admirava a proteção para com as escolas e
consequentemente para com os estudantes. Mas quando descobri sobre essa
estreita ligação do setor privado com as secretarias, eu me senti bastante
ingênuo. Essa resistência e bloqueio são bastante seletivos. Há muita
resistência quando se trata de projetos sociais e pequenas ONGs, mas os grandes
“tubarões” por trás de grandes fundações encontram um caminho totalmente aberto
em muitas das secretarias de educação do Brasil.
Temo que, se esse
avanço do setor privado nas secretarias continuar, ficaremos diante de um
cenário sem volta. O interesse do setor não é apenas no subsídio governamental,
mas também no acesso aos alunos – tanto político quanto monetário. Afinal, são
milhões de clientes em potencial e milhares de possíveis líderes em potencial
que futuramente podem ocupar cargos políticos e votar a favor de agendas das
fundações que investiram neles.
Não quero incitar uma
teoria da conspiração e não estou dizendo que o setor privado é do mal ou que
os profissionais que o integram não têm nenhum tipo de boa intenção. Isso não é
verdade, assim como é errado dizer que todos do setor público são profissionais
ruins. Meu ponto é: os setores têm objetivos e naturezas diferentes.
Não podemos desejar
que o setor público tenha a mesma eficiência do setor privado sem a devida
adaptação. Precisamos proteger nossa educação pública, nossas secretarias e
sobretudo nossos alunos. Tive a oportunidade de conhecer alguns profissionais
de secretarias de educação altamente qualificados, assim como diretores de
colégios. O que devemos é investir neles, em valorização e em qualificação.
Em 10 anos, escolas estaduais do país
perderam um terço dos professores efetivos
As escolas estaduais
do Brasil perderam mais de um terço (36%) dos professores efetivos em dez anos.
A queda no número de docentes concursados se deve ao aumento da contratação de
temporários, que deveriam ser exceção, mas hoje já são a maioria dos que atuam
em sala de aula.
Os dados são de um
estudo da ONG Todos Pela Educação com informações do Censo Escolar e do Saeb
(Sistema de Avaliação da Educação Básica). O levantamento identificou que,
enquanto houve a redução de docentes efetivos, o número de temporários cresceu
55% em uma década.
Desde 2022, os
docentes temporários se tornaram maioria dos que atuam nas escolas estaduais do
Brasil. No ano passado, dos 668 mil professores dessas redes, 356 mil (51,6% do
total) tinham contratos temporários.
O estudo também
destaca que esse modelo de contratação faz com que os professores atuem
condições mais precárias, o que, consequentemente, prejudica o desempenho
escolar dos alunos.
"A contratação de
professores temporários é importante para garantir que os alunos tenham aula em
todas as disciplinas, quando houver faltas ou afastamento dos concursados. Mas
o que deveria ser uma exceção se tornou o mais frequente nas redes de ensino
por ser mais barato para os estados", diz Ivan Gontijo, gerente de
políticas educacionais do Todos Pela Educação.
Segundo a lei do Plano
Nacional de Educacional, as redes de ensino deveriam ter cerca de 10% dos
quadro de professores contratados de forma temporária para atuar nos casos de
afastamento dos efetivos. No entanto, os dados do Censo mostram que 15 das 27 unidades
da federação já trabalham mais com temporários do que concursados em Minas Gerais, por exemplo, eles são 80% dos docentes que atuam em sala de
aula.
As redes estaduais são
responsáveis por 30% das matrículas da educação básica do país. No ensino
médio, etapa com piores indicadores de qualidade no Brasil, elas concentram
83,6% dos estudantes.
A contratação de
temporários foi uma saída encontrada pelos governos estaduais para evitar maior
gasto com servidores e com previdência. "Estados com mais problemas
fiscais são os que mais têm recorrido a esse tipo de contratação", diz
Gontijo.
O estudo identificou
que, em média, os governos têm feito um concurso público para docente a cada
seis anos. Assim, eles têm mais professores efetivos se aposentando e os repõem
com temporários, com os quais não precisarão lidar com a Previdência.
"Há ainda casos
de gestores que preferem fazer contratos temporários por acreditar que são
docentes menos suscetíveis a fazer greve e que vão se empenhar mais em
apresentar bons resultados por medo de ter o contrato rescindido."
Os dados mostram ainda
que esse tipo de contratação não tem sido usada apenas para suprir uma demanda
pontual, mas para de fato compor o corpo docente fixo das redes. O estudo
identificou que quase metade (43,6%) dos temporários atua há pelo menos 11 anos
como professor.
"São
profissionais que estão há anos trabalhando nas escolas públicas, mas com
condições piores do que a dos efetivos. Eles têm salários menores, não têm
plano de carreira, costumam trabalhar em mais escolas e com mais turmas para
preencher o horário, muitas vezes não têm direito a plano de saúde ou
gratificações."
O estudo identificou
ainda que, em 15 estados, o salário dos temporários é menor do que o dos
efetivos, alcançando uma diferença de até 140%.
Como as condições de
trabalho dos temporários são mais precárias, os alunos que têm aula com esses
professores acabam tendo piores resultados educacionais. O estudo comparou as
notas dos alunos do 9º ano do ensino fundamental e do 3º ano do ensino médio de
acordo com o tipo de contratação dos professores.
Nas duas séries, os
alunos tiveram desempenho menor quando tiveram aula com professores
temporários. "Isso é um reflexo das más condições de trabalho. Os docentes
têm uma carga excessiva de trabalho e não conseguem criar vínculo com os
estudantes", diz Gontijo.
Uma das estratégias
avaliadas pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para enfrentar o alto
número de temporários na educação básica é a elaboração de um concurso nacional
e unificado para docentes.
"Essa seria uma
estratégia eficiente para ter concursos com mais frequência, já que os estados
não precisariam organizar os processos seletivos. Seria uma forma também de
qualificar a seleção no país todo", defende Gontijo.
Fonte: Deutsche
Welle/FolhaPress
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