Luiz Marques: O papel dos preconceitos
Ninguém escapa da vida
corriqueira e das questões triviais que nos acompanham desde o momento em que
acordamos, fazemos o desjejum, saímos de casa e trocamos impressões com pessoas
sobre o tempo e o futebol. O dia a dia é a esfera onde os preconceitos cimentam
o habitus. A rigidez com que encaramos situações novas revelam nossos valores
diante de uma intervenção artística no metrô ou da triste mendicância nos
semáforos, com cartazes sobre a fome no país da agroexportação.
A ultrageneralização
acerca de quem confronta a normalidade é expressão do conformismo, na moral e
nos costumes, que retroalimenta os sentimentos discriminatórios e
desumanizantes na sociedade. Estereótipos formam o pensamento assimilado no
meio social, que tantos orgulham-se de assumir.
A discípula preferida
do filósofo Georg Lukács na Escola de Budapeste, Agnes Heller, considera que “a
ultrageneralização é inevitável na vida cotidiana”, conforme escreve na
coletânea sobre O cotidiano e a história. A dinâmica de atividades tão
heterogêneas nas metrópoles ajuda a impor a régua do tradicionalismo na
realidade líquida da pós-modernidade, por economia da psiquê. Os psicólogos, a
isso, atribuem uma sabedoria prática para misturar-se à multidão sem chamar a
atenção sobre si. A comodidade dita o pragmatismo para o senso comum, e o
pertencimento.
Porém, autorizada por
governos autoritários e totalitários, a moderação provisória cede à exaltação
da ignorância e da brutalidade como forma de demarcar uma posição cartesiana,
“clara e distinta”, para os que desafiam os padrões hegemônicos. Então, os cães
que guardam o status quo acham-se no direito de estipular os procedimentos
aceitáveis e punir os inaceitáveis, na exposição pública.
O sindicalista e
militante do Partido dos Trabalhadores (PT) de Foz do Iguaçu, Marcelo Arruda,
foi assassinado ao comemorar seu aniversário. Um bolsonarista reputou
ultrajante o festejo com uma decoração em homenagem a Luiz Inácio Lula da
Silva. O assassino investiu-se do poder atribuído: “Aqui é Bolsonaro”, rosnou.
Poderia ter latido: “Aqui é Rede Globo”. A arrogância gerou o luto.
Com a meteórica
ascensão da extrema direita, a atitude crítica própria das épocas dinâmicas
frente as segregações foi substituída no período estático (2018-2022) pelas
muitas invectivas verbais, que potencializaram os crimes de racismo,
feminicídio, homofobia e transfobia. As palavras, de acordo com a linguística,
colocam em ato o movimento seletivo contra a diversidade. O neofascismo com a
lei dos fortes, o neoliberalismo com a superexploração dos trabalhadores e o
neoconservadorismo com o supremacismo tradicionalista confluem na violência
simbólica dissimulada e, no limite, para a violência física. A lógica de
dominação e subordinação, assim, estimula os pequenos ditadores.
·
Etnocentrismo, meritocracia
O preconceito é o
julgamento prévio, inflexível e carregado de negatividade sobre um indivíduo ou
um grupo. O termo deriva do latim, prejudicium, prejuízo, mesmo em face do
contraditório fundado em fatos. Na ciência política, designa o julgamento
antecipado: cognitivamente regado por crenças; afetivamente crivado pela
antipatia e aversão; avaliativamente capaz de invocar (ou não) medidas
institucionais de proteção aos atingidos, a depender dos governantes. As
generalizações respaldam as rejeições raivosas. “Os imigrantes envenenam o
sangue do país”, diz Donald Trump, atiçando os Pit bulls. O preconceito não é
inato, é aprendido socialmente. Precisa ser contido ética e legalmente. A
denúncia das manifestações racistas aos órgãos judiciais contribui na redução
das ocorrências.
O etnocentrismo é a
ponta visível do colonialismo, a partir do ciclo de descobertas no século XVI.
Os colonizadores europeus sempre se viram na condição paradigmática de
civilizadores. Apelaram à noção de “perigo” para designar e assujeitar
indígenas e africanos escravizados. Como sua cultura determinava o que era
correto e verdadeiro, por óbvio, o mal ficou do lado de fora do continente. As
categorias étnicas e raciais são construções sociais reatualizadas pelo
populismo direitista. O temor da competição econômica confere sensatez à
discriminação, no imaginário do conspiracionismo.
A meritocracia na
sociedade burguesa fixa os parâmetros da inteligência e da competência para
ultrapassar os critérios caducos do ancien régime, baseados no nascimento, na
riqueza e nos títulos nobiliárquicos. O postulado da educação, visto como
alavanca à mobilidade, conduziria indivíduos a uma posição mais elevada na
hierarquia, segundo a fábula do alpinismo social – um mito. Os múltiplos
condicionamentos ao desempenho escolar reproduzem a estratificação e
obstaculizam a transcendência das deformações familiares, não compensadas pelo
poder público. O círculo confina as alternativas ao alcance dos
subalternizados. O regime meritocrático é uma adaptação sistêmica.
Para consolo, esse
princípio se enquadra no artigo 6° da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789, pelo qual os cidadãos “podem ser igualmente admitidos a todas
as dignidades, postos e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outra distinção
que a de suas virtudes e inteligência”. Para sociólogos como Pierre Bourdieu ou
Jessé Souza, o axioma incontestável no plano formal da (falsa) igualdade de
oportunidades não passa de uma ideologia para justificar as desigualdades
existentes, tornando-as legítimas para os vencedores e os perdedores. As
capacidades são decididas no berço, que prenuncia os privilégios subsequentes.
Diferentemente Marx aponta para uma avaliação, não de mérito, mas de
atribuição: “A cada um segundo suas necessidades”.
·
Rebater falácias linguísticas
Ao contrário do que
supunham os iluministas, no século XVIII, os preconceitos não podem ser
eliminados simplesmente à luz da razão. O afeto do preconceito é a fé, não a
ratio. A fé liga-se à satisfação de um ente particular-individual, e não ao
genérico-humano que toca o desenvolvimento global da humanidade: a crise
climática ou a precarização neoliberal que separa 1% dos cidadãos de 99% de
subcidadãos, na espécie do Homo sapiens. A fé é feita pelo binômio do amor e do
ódio. O ódio se dirige às pessoas que não creem no mesmo caminho, no caso, a
redenção sem participação na luta de classes, situando-se em um patamar
inferior de confiança. A intolerância emocional é consequência da fé, tanto
maior quanto cresce o Estado-mínimo que deixa os pobres no abandono. A
literatura de autoajuda e o ombro amigo do pastor são compensações, onde sequer
Deus chega.
Os neopentecostais
dedicam-se à salvação atomizada, com uma teologia do domínio. A esquerda se
afigura o inimigo a ser batido, por priorizar a organização e a consciência
coletiva da comunidade. O extremismo fortalece os preconceitos de classe, raça
e gênero que restringem a autonomia para fazer escolhas e levam água para o
moinho da magia. A sociedade não existe; apenas os indivíduos e as famílias. Os
operários que se entregam a Silas Malafaia ou a Edir Macedo são manipulados, no
tabuleiro dos preconceitos.
Para rebater a
demagogia não basta a eloquência vazia. A recusa deve ser enérgica, tenaz, sem
o tom conciliador dos discursos da “terceira via”, afogada na maré de 2008. O
contexto beneficia o cassino financeiro dos juros altos, do Banco Central. A
desindustrialização retira os empregos com carteira assinada e enche os templos
no vale de lágrimas, das periferias.
Grandes personalidades
recuperaram a boa política para intervir, na contemporaneidade, com uma práxis
associada ao conceito de liberdade: Carolina Maria de Jesus, Salvador Allende,
Simone de Beauvoir, Mandela. A política entendida como uma vocação para a
liberdade, na exata proporção de sua implantação no campo social, exorciza os
preconceitos e incentiva as relações de igualdade. Ao revés, a política no
sentido experimentado pela extrema direita é incapaz de integrar os indivíduos
em um Estado de bem-estar social, pois sobrevive das exclusões inferidas na
cotidianidade e da degradação da convivialidade para garantir as iniquidades
ilegítimas e indecentes, a exemplo das anacrônicas monarquias de hoje. Nem o
modelo republicano conseguiu se universalizar, ainda.
O conservador-mor
Edmund Burke refutou o iluminismo com uma doutrina irracionalista e fez da
religião o alicerce da ordem moral e social, contra o ateísmo e o utopismo. A
tese do opositor da Revolução Francesa é que só a tradição e os preconceitos,
instrumentalizados por um projeto de poder, podem barrar as mudanças promovidas
pelo povo enquanto sujeito da história.
Cabe hoje à distopia
extremista de direita, com o aríete da necropolítica, esmagar todas as forças
progressistas, desmontar os direitos emancipatórios conquistados, cavar o fosso
intransponível entre classes, raças e gêneros, lucrar na sanha extrativista da
mineração em território Yanomami, cruzar o rio Amazonas a pé, matar o último
pássaro no ar empestado, vender água das geleiras polares nos Cafés de Marte.
Como no poema de
Cecília Meireles, Fadiga: “Era um coração de incertezas, / feito para não ser
feliz; / querendo sempre mais que a vida / – sem termo, limite, medida, / como
poucas vezes se quis”. Esse é o capitalismo com o coração do livre mercado,
extenuado demais para pedir bis.
Fonte: A Terra é
Redonda
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