AMAZÔNIA: Infraestrutura da destruição
Uma estrada de ferro
atravessando a maior floresta do mundo poderia ser apenas um projeto do século
passado, quando a borracha alimentava o mercado europeu. O ouro branco que
escorria dos troncos das árvores amazônicas modificou toda a dinâmica territorial
do Rio Madeira ao Tapajós. Diz-se que o número de trabalhadores mortos na
construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré equivale aos dormentes
assentados, concedendo o título de ferrovia do diabo. Não houve registro das
mortes de indígenas. Não há dados exatos quanto aos impactos sobre a floresta.
Nenhum cientista poderia prever a crise climática que estava por vir.
Infraestrutura para
destruição. É como podem ser chamados os projetos pensados para a Amazônia, há
séculos, e que se atualizam com a Ferrovia EF-170, conhecida como Ferrogrão, e
com os empreendimentos portuários identificados no oeste paraense, nos municípios
de Santarém, Rurópolis e Itaituba pelo estudo, Portos no Tapajós, lançado no
dia 24 de abril e elaborado por Terra de Direitos,
O que muda é a
mercadoria: ontem borracha, hoje energia, minério, soja. O objetivo da
Ferrogrão é a exportação de grãos para os mercados europeu e asiático. E o que
denunciam os povos é que esse fluxo é uma via de mão dupla: o trem que vai
carregado de soja e milho também é o trem que vem trazendo todo tipo de veneno
para ser utilizado extensivamente na produção desses grãos, e bombardeado sobre
os territórios originários e tradicionais, sobre os cursos de água, e as
cidades que os rodeiam.
A Aliança
#FerrogrãoNão, composta por povos indígenas do Pará e Mato Grosso, movimentos
populares, organizações sociais nacionais e internacionais, tem reivindicado ao
governo federal o cancelamento da ferrovia de mais de 900 quilômetros de
extensão, que pretende ligar o município de Sinop (MT) ao Complexo Portuário de
Miritituba (PA), cortando áreas de preservação permanente e territórios
indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais, deixando um rastro
de destruição em nome do “desenvolvimento” e “expansão do agronegócio”.
Alguns podem se
perguntar: então essas pessoas são contra o desenvolvimento da Amazônia? Não. O
problema das grandes obras de logística e infraestrutura pensadas para a região
é que elas jamais foram feitas para as pessoas da Amazônia.
A Ferrogrão entrou no
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) 3, lançado pelo governo federal em
2023, no eixo “Transporte Eficiente e Sustentável”. No entanto, não abrange o
transporte de passageiros. A obra destinada a transportar commodities foi incluída
na modalidade “estudos de novas concessões”. Isso quer dizer que mesmo com as
diversas denúncias dos impactos socioambientais de empreendimentos deste porte
para o governo Lula, não há sinalizações significativas de abandono ou
desestímulo pelo poder público a projetos do capital internacional.
A intenção de
construir a Ferrogrão não se diferencia de outros projetos sustentados pelo
discurso de necessidade de desenvolvimento ou progresso, mas que deixa de
considerar o potencial endógeno da floresta (em pé) e das dinâmicas
tradicionais das comunidades residentes na região, deixando para estas apenas
os danos e a destruição.
No centro de projetos
de logística pensados para a Amazônia – dos quais fazem parte a ferrovia e os
inúmeros portos às margens do Rio Tapajós, no oeste do Pará – há sempre alguma
mercadoria que deve ser saqueada e escoada, da forma mais lucrativa possível –
ou seja, a baixos custos para as empresas transnacionais, com danos
irreparáveis para as gentes e para a natureza.
Se é a Ferrogrão –
pelo transporte ferroviário – a via de conexão do agronegócio entre
Centro-oeste do Brasil ao Norte do país, são os portos do Rio Tapajós que, ao
conectar o Brasil com o mundo, estabelecem e concretizam a trama das
commodities operada pelas transnacionais.
PORTOS NO TAPAJÓS
As empresas Amaggi,
ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus atuam na Amazônia brasileira, e vêm
movimentando barcaças carregadas de soja desde a década de 1990 pelo Rio
Tapajós. O crescimento acelerado de empreendimentos dobrou: passando de 20
portos até 2013, para 41 após a edição da Lei de Portos (Lei n 12.815) – um
aumento de 105%.
A maioria deles se
concentra em Itaituba, onde fica o distrito de Miritituba, previsto como ponto
final da Ferrogrão. Essas mesmas empresas são as financiadoras do projeto da
ferrovia, com a realização de estudos para viabilizar a concessão.
Na plataforma online
Portos no Tapajós é possível observar como estão distribuídos os portos no
Tapajós – assim como outros projetos como a Ferrogrão, a BR-163 e hidrelétricas
– que se concentram em direção ao Oeste do Pará, fixando-se nas proximidades de
centenas de comunidades tradicionais.
EMPRESAS
TRANSNACIONAIS E FALHAS NO LICENCIAMENTO AMBIENTAL ESTÃO NO CERNE DO PROBLEMA
HÁ ANOS
A instalação de portos
voltados ao agronegócio no Tapajós teve como marco a construção do terminal
portuário da Cargill. Eleita como a pior empresa do mundo pela Mighty Earth em
2019, a Cargill Agrícola S.A chegou à Santarém, em 2003, em um processo marcado
por fraudes no licenciamento ambiental e violações de direitos humanos e
socioambientais.
Desde o início das
operações da transnacional até os dias atuais, os reflexos nos territórios do
Tapajós são a redução das áreas de pesca artesanal, a insegurança alimentar, a
contaminação das águas e peixes, o aumento da prostituição de mulheres e exploração
sexual de crianças e adolescentes e os impactos à saúde humana decorrentes do
uso de agrotóxicos nas plantações. Como apontado em estudos anteriores de Terra
de Direitos sobre os portos da empresa em Santarém e Itaituba.
Isso porque os Portos
da Cargill não serviram apenas para escoar a produção que já existia, mas
impulsionaram a expansão da monocultura de grãos na região. Alguns desses
impactos já estão sendo novamente percebidos com o anúncio da Ferrogrão, como:
desmatamento, grilagem de terras e especulação imobiliária, com a expulsão de
povos e comunidades tradicionais de seus territórios.
Com a ampliação da
infraestrutura para escoamento de produção com rota para o mercado exterior com
baixo o custo, possuir fazendas de monocultivo na região resulta em alta
rentabilidade.
O avanço da
infraestrutura da cadeia da soja e milho acontece concomitantemente com o
aumento do desmatamento, de queimadas e à expansão da monocultura. Dados que
podem ser observados em pesquisa pelo site Portos no Tapajós, que tem esses
números registrados de 2003 a 2021.
O estudo “Portos e
Licenciamento Ambiental no Tapajós: irregularidades e violação de direitos”,
que é parte do portal Portos no Tapajós, revela que metade das instalações
portuárias nos municípios de Santarém, Itaituba e Rurópolis atropelou as regras
do processo de licenciamento ambiental.
O estudo identificou
um total de 41 portos nos três munícipios até outubro de 2023 (período de
coleta de dados). Desses, 27 estão em operação no momento e apenas 5 possuem a
documentação completa do processo de licenciamento ambiental.
Essas lacunas precisam
ser assumidas e, devidamente, investigadas pelo órgão licenciador responsável
por realizar e conceder as licenças: a Secretaria de Meio Ambiente e
Sustentabilidade do Pará (Semas).
Parece incoerente que
o estado que se apresenta como protagonista dos debates ambientais e climáticos
continue renovando licenças ambientais com indícios de irregularidades e
violações de direitos. A pouca transparência pública de documentos que deveriam
estar disponíveis a toda a sociedade de acordo a Lei de Acesso à Informação
(Lei n. 12.52) também depõe contra o estado do Pará.
O licenciamento
ambiental é um instrumento de garantia de direitos socioambientais e que deve
ter início sempre que forem pautados projetos com potencial poluidor ou
degradador da natureza. E essa natureza tem gente.
Sem os ritos
necessários e sem o amplo comprometimento e transparência do Estado e empresas
para mensurar, avaliar e reparar o potencial de degradação dos portos, as
falhas nas etapas de licenciamento ambiental seguiram violando não somente
determinações jurídicas brasileiras, mas tendo efeitos devastadores ao meio
ambiente, o clima, e à vida de povos tradicionais.
Os portos construídos
e ainda previstos para a região do Tapajós vêm demonstrando que os interesses
das transnacionais se sobrepõem aos de milhares de pessoas que vivem na
região.
O projeto da Ferrogrão
está sendo concebido como a espinha dorsal da rede logística que favorece
diretamente as empresas ligadas ao agronegócio, em detrimento dos direitos de
povos e comunidades tradicionais à terra e ao território e à consulta e consentimento
prévio, livre, informado e de boa-fé. O curioso é que essas empresas somente
existem e operam porque séculos atrás outras pessoas que falavam as mesmas
línguas estrangeiras invadiram estas terras e roubaram da natureza amazônica o
ouro, a borracha, as vidas indígenas. Eis a gênesis da acumulação da riqueza do
norte global.
Com todo esse cenário,
o que se coloca para reflexão e, principalmente, para posicionamento do Estado
é algo que povos e comunidades tradicionais têm anunciado com insistência há
anos: é urgente construir um outro projeto de sociedade.
No Acampamento Terra
Livre deste ano, encerrado em 26 de abril, milhares de povos indígenas
denunciaram a Ferrogrão e cobraram pela demarcação de seus territórios. Um
grande caminhão com o nome das principais empresas transnacionais do
agronegócio brasileiro representou o projeto da Ferrogrão como um “Trem da
destruição”. Enquanto isso, em outros espaços, ribeirinhos, trabalhadores
rurais e quilombolas se somam às vozes indígenas por esse outro projeto de
sociedade. Um projeto dos povos da Amazônia para e com a Amazônia
É a defesa de uma
saída alternativa para problemas urgentes, como da crise climática, que só pode
ser aceita com reestruturação de modelos de desenvolvimento e sem anúncios
políticos “verdes” vazios.
Fonte: Por Bruna Balbi
- assessora jurídica popular da Terra de Direitos e Lanna Paula Ramos -
jornalista da Terra de Direitos, para o Le Monde
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