Por que um ingrediente do veneno utilizado
na Guerra do Vietnã é aplicado na agricultura familiar brasileira?
No domingo, 14 de
abril, o programa Fantástico, da TV Globo, colocou no ar uma reportagem de
autoria do jornalista Paulo Renato Soares, denunciando a aplicação do
agrotóxico agente laranja, nas fazendas do pecuarista Claudecy Oliveira Lemes,
do município de Barão de Melgaço, em Mato Grosso. Conforme a reportagem,
agrotóxicos com a substância 2,4-D foram jogados sobre uma camada de floresta
do Pantanal, em área de 80 mil hectares, equivalente à cidade de Campinas.
A reportagem informa
também que o fazendeiro tem R$5,2 bilhões em autuações, desde 2019, por danos
ao bioma. Além de destruir a floresta, ele expulsou dezenas de famílias para
apropriar-se de uma área de 80 mil hectares. O desfolhante foi aplicado para transformar
a área em campos de pastagem para a criação de gado.
Os investigadores
encontraram em uma das fazendas notas fiscais que comprovam a compra de 240
toneladas de capim, de espécie exótica para substituir a área desmatada, outro
problema para a biodiversidade. Conforme Jean Carlos Ferreira, fiscal da
Secretaria do Meio Ambiente de Mato Grosso, ouvido pelo repórter no local da
autuação, “quando ele joga diretamente do avião, além de matar essas árvores,
influencia também diretamente na fauna, principalmente na água”.
Durante três anos
foram lançados sobre a área 25 agrotóxicos diferentes, dentre eles o 2,4 – D.
Essa é a mesma substância desfolhante encontrada no agente laranja, veneno
usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã (1959-1976), para tentar vencer
o inimigo que se escondia sob as árvores. O jornalista entrevista o professor
Vanderlei Pignati, da UFMT, que afirma que o herbicida é bastante estável e é
levado pelos ventos a uns 20 ou 30 km contaminando tudo. A secretaria do Meio
Ambiente do Mato Grosso, Mauren Lazzaretti, também ouvida pela reportagem,
declarou que houve uma mudança no protocolo de medidas impostas ao infrator,
que passou a arcar também com a reparação dos danos ambientais. Outras fontes,
como polícia, promotora de justiça e perito, mencionaram os danos à flora e à
saúde das pessoas, além da questão legal. O jornalista tentou falar com o
pecuarista, mas ele não quis dar entrevista.
A reportagem com 10
minutos e 41 segundos denuncia um problema ambiental grave, no entanto, poderia
ter abordado com mais profundidade os danos do 2, 4 – D. A substância lançada
sobre o Vietnã, junto com o 2, 4, 5- T, continua provocando doenças, como câncer
e o nascimento de crianças com anomalias devido à sua periculosidade.
De acordo com os
pesquisadores Gurgel, Guedes e Friedrich, nos dois primeiros anos do governo
Bolsonaro, foram liberados 997 agrotóxicos. Entre 2019 e 2020, a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) finalizou a avaliação de ingredientes
ativos de agrotóxicos mais utilizados no Brasil 2-4 D e o glifosato, além da
abamectina, tiram e paraquate.
Conforme os
pesquisadores, foi constituída uma Força Tarefa composta por representantes das
empresas agroquímicas que atuaram na divulgação de informações que atestam a segurança dos
produtos, desqualificando a produção científica que apontava os riscos das
substâncias. Além disso, o grupo fazia pressão para interferir nas decisões do
governo e do legislativo. Tal procedimento não é novidade, pois ocorre desde a
aprovação da Lei 7802, Lei dos Agrotóxicos, promulgada em 1989 e que incomodou
muito a indústria agroquímica e seus prepostos no congresso e no governo em
diferentes épocas.
A Anvisa concluiu pela
não proibição tanto do glifosato como 2,4-D, além da abamectina e tiram.
Manteve a proibição somente do paraquate. No entanto, conforme estudos
acadêmicos, o 2,4-D é possivelmente cancerígeno, está relacionado ao
desenvolvimento do Linfoma não Hodgkin (LNH), sarcomas, câncer de cólon e
leucemia. Também “pode alterar o desempenho sexual e a fertilidade, exercer
efeitos tóxicos no feto e em lactentes e interferir no desenvolvimento motor,
comportamental, intelectual, reprodutivo, hormonal ou imunológico, provocando
aborto ou morte nos primeiros meses de vida”, de acordo com Gurgel et al. no
artigo Flexibilização da regulação de agrotóxicos enquanto oportunidade para a
(necro)política brasileira: avanços do agronegócio e retrocessos para a saúde e
o ambiente. Outro aspecto apontado pela literatura é que pode produzir
dioxinas, que são classificadas como poluentes orgânicos persistentes,
reconhecidas por causarem câncer e outros problemas.
O engenheiro agrônomo
Jacques Lüderitz Saldanha, curador de conteúdo do site Nosso Futuro Roubado,
lembra do caso das parreiras na região
da Campanha Gaúcha, que ficaram prejudicadas pelo uso de um herbicida na soja.
Tal herbicida é o 2,4-D, empregado como substituto ao glifosato/roundup, que já
não mata as ‘super-ervas’. Saldanha questiona: “Está-se acompanhando os efeitos
em termos de saúde de toda a população que consome soja e outros vegetais do
agronegócio?”. O site informa sobre como ficou o Vietnã e sua
sociobiodiversidade após a guerra, assim como as medidas compensatórias
realizadas pelos Estados Unidos. Porém, isso devolve a vida ou a saúde das
pessoas? E a biodiversidade?
Voltando à ação da
Anvisa, percebe-se que o princípio da precaução não foi acionado pela agência,
que deveria considerá-lo, caso sua finalidade seja mesmo “promover a proteção
da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo
de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos
ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados,
bem como o controle de portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados”.
(Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999). A reportagem poderia ter apontado
alguns desses problemas e questionado sobre quais estudos foram considerados
para a liberação do produto. A finalidade do jornalismo, além de informar
corretamente a população para que essa possa exercer sua cidadania, é fazer a
vigilância dos poderes.
Fonte: Por Isabelle
Rieger e Ilza M. Tourinho Girardi, no Observatório da Imprensa
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