Desenvolvimento de novas terapias para
transtornos mentais esbarra na própria complexidade das condições
Nos últimos anos, a
saúde mental assumiu um lugar de preocupação para diferentes atores do sistema
de saúde – de gestores públicos ao RH de empresas. Isso porque estimativas da
Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que uma em cada oito pessoas vive com algum transtorno mental, totalizando quase 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo – a
pandemia tratou de evidenciar ainda mais esse problema, desencadeando um
aumento de 25% nos casos ansiedade e depressão, segundo a entidade.Mas, ao
contrário de áreas da medicina como oncologia e doenças raras, que vivem um
boom de novas soluções e tratamentos, as terapias para transtornos mentais não
têm experimentado o mesmo nível de desenvolvimento.
A baixa
disponibilidade de fármacos para o tratamento de transtornos psiquiátricos na
comparação com outras condições foi destacada no “Plano de Ação Integral de Saúde Mental 2013-2030” produzido pela OMS. Embora reconheça a necessidade de explorar
abordagens não farmacológicas, a entidade admite que essa lacuna impacta o
tratamento adequado e o acesso à saúde daqueles pacientes que seriam
beneficiados pelo uso de medicações.
“Nos últimos 15, 20
anos, tivemos pouca coisa realmente nova. Não que tenhamos parado de tentar,
mas o desenvolvimento de uma nova substância é complexo e custoso”, argumenta
Mario Rodrigues Louzã Neto, psiquiatra e coordenador do Programa Esquizofrenia do
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo
(HCFMUSP).
A carência de inovação
no desenvolvimento de novas classes de medicamentos psiquiátricos foi rotulado
até mesmo como um período de “abstinência” em artigo publicado em 2022 na renomada revista
científica Science. A publicação aponta que um dos principais motivos para o
aparente desinteresse de investimento em pesquisas de novas moléculas com foco
na psiquiatria é a complexidade por trás da fisiopatologia dos transtornos. “A
linguagem da doença psiquiátrica são os sintomas, a linguagem da farmacologia
são as moléculas e, neste momento, não temos nenhum material que traduza esses
sintomas em moléculas e que possa nos ajudar a combinar o medicamento certo com
o paciente certo”, diz o texto.
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Descoberta de genes e biomarcadores
Em outras áreas da
medicina, a descoberta de biomarcadores para determinadas condições de saúde
tem ajudado a ciência a desenvolver moléculas com atuações específicas. Na
psiquiatria, de acordo com um artigo de revisão publicado
na revista Front Psychiatry, diversos estudos nos últimos anos têm associado
uma gama de genes a diversos transtornos psiquiátricos. No entanto, ainda não
se sabe o papel exato de cada gene nos quadros psiquiátricos, uma vez que a
natureza de tais condições é multifatorial e inclui fatores biopsicossociais.
“O cérebro é um órgão
muito complexo, que vai se construindo ao longo do tempo e é extremamente
plástico. Isso faz com que seja um órgão muito sujeito ao ambiente”, detalha
Louzã Neto. “Na esquizofrenia, por exemplo, calculamos que há cerca de 300
genes envolvidos e cada microgene dá uma pequena chance de risco maior para
esquizofrenia, mas ele sozinho não é capaz disso. Por isso, às vezes, pessoas
que viveram exatamente as mesmas situações, desenvolvem condições diferentes,
ou uma desenvolve e a outra, não.”
A evolução tecnológica
em outras áreas, como os exames de imagem, que estão processando resoluções
cada vez maior, tem contribuído na busca por novos entendimentos. Contudo,
ainda há uma limitação do que é possível interpretar a partir dos resultados.
Isso porque o campo observado é limitado; além disso, não é possível ignorar
que, mesmo ao observar uma área específica do cérebro, as conexões neuronais
envolvidas na manifestação de um transtorno mental são inúmeras.
O médico psiquiatra
Alfredo Maluf Neto, coordenador da Psiquiatria do Hospital Israelita Albert
Einstein, pontua que, no geral, a psicofarmacologia consiste em quatro classes
de medicamentos: antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos e estabilizadores
de humor. Hoje, segundo ele, já é comum ver um uso mais diversificado dessas
classes entre diferentes condições psiquiátricas justamente pelo avanço da
ciência. “Tudo isso é baseado em novos entendimentos, graças ao avanço de
tecnologias como ressonância magnética, o que nos permite também novas
abordagens terapêuticas utilizando os medicamentos já existentes.”
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Substâncias psicoativas como terapias para transtornos mentais
Uma tendência que vem
sendo observada nos últimos anos é o retorno à pesquisa sobre o efeito de
substâncias psicoativas no tratamento de transtornos mentais. Dos anos 1990 em
diante, o interesse voltou a crescer, muito graças ao trabalho desenvolvido pelo Centro Johns Hopkins para Pesquisa
Psicodélica e da Consciência, como
salientou outro artigo publicado
na revista Frontiers in Psychology.
Nos últimos anos, por
exemplo, o centro publicou diversos estudos apontando
resultados positivos do uso da psilocibina, encontrada em uma classe de
cogumelos alucinógenos, no tratamento de transtornos como depressão de difícil
tratamento, ansiedade e abuso de substâncias. Em 2024, a Food and Drugs
Administration (FDA), agência reguladora americana concedeu a designação de
terapia inovadora para um análogo à psilocibina.
Outro exemplo é a
ketamina, substância muito conhecida pela medicina por ser utilizada como
anestésico desde a década de 1960, mas que ganhou força recentemente após
disseminação de uso para transtornos mentais nos Estados Unidos. No Brasil, o
uso do medicamento também tem se popularizado nos consultórios psiquiátricos
após a aprovação pela Anvisa, em 2020, do cloridrato de escetamina, terapia
desenvolvida a partir da ketamina com aplicação intranasal.
Para Louzã, o avanço
das substâncias psicoativas como um todo é interessante, mas deve ser avaliado
com cautela e com foco na produção de um volume maior de evidências
científicas. “Precisamos investigar mais, produzir estudos de qualidade antes
de podermos de fato indicar essa abordagem. É uma área em aberto para se
investigar com seriedade, não é uma coisa assim tão trivial.”
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Psiquiatria de precisão como aliada do acesso
Além do investimento
em pesquisas relacionadas ao desenvolvimento de novas intervenções
medicamentosas para o tratamento de doenças psiquiátricas, o futuro da
psicofarmacologia passa também pelos esforços redobrados para alcançar a era da
precisão através da genômica. “O futuro é a genética e esse olhar para uma
psiquiatria de precisão. Temos que nos dedicar para ampliar cada vez mais essa
compreensão, para que seja possível praticar essa medicina personalizada também
na psiquiatria. Isso levanta algumas discussões éticas, bioéticas, mas temos
que olhar para essa direção”, defende Maluf.
Aprimorar e repensar
os métodos e critérios de diagnóstico é outro ponto de destaque. A psiquiatria
social, que traz um olhar mais transversal para o paciente a partir do contexto
em que este indivíduo está inserido, também deve ganhar destaque e moldar a
maneira como os transtornos mentais são abordados e tratados.
“No Brasil mesmo nós
temos um desafio muito grande de acesso psiquiátrico, porque somos um país com
muitas iniquidades sociais. Às vezes, não há psiquiatra disponível na Unidade
Básica de Saúde (UBS), então a pessoa precisa ter acesso a um médico da família
que, por sua vez, deve estar preparado para fazer esse acolhimento”, avalia o
coordenador de psiquiatria do Einstein.
Segundo ele, é preciso
olhar para os nossos problemas sociais a partir de uma perspectiva de prevenção
e dialogar sobre temas como violência, abuso de substâncias e bullying. “Tudo
isso, quando não conversado, tende a se transformar em adoecimento mental.”
¨ Os passos do Brasil para tornar saúde mental uma pauta
prioritária
A saúde mental, que
por muito tempo foi cercada de tabu, virou um dos principais temas de debate na
sociedade. Mas apesar das inúmeras iniciativas nos últimos anos que buscam
melhorar o cenário, diversos estudos ainda alertam para um aumento. Em 2023,
um relatório da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) chegou a afirmar que a pauta deveria estar no topo
da agenda política pós-Covid-19. E, no Brasil, levantamento da Ipsos indicou que cinco em cada dez
brasileiros acreditam que a saúde mental é o principal problema do país em
termos de bem-estar da população.
A pauta ganha destaque
inclusive em Brasília, com mais projetos voltados para o tema. João
Mendes, coordenador de Desinstitucionalização e Direitos Humanos do
Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (DESMAD/MS) do Ministério
da Saúde, disse ao Futuro da Saúde que a nova gestão tem tratado o tema como
prioridade: “Existe ao menos um serviço de saúde mental em 75% dos municípios
elegíveis para serviços especializados. A retomada da política de saúde mental,
a partir de 2023, está impulsionando a expansão e a interiorização dos
serviços, mas ainda há alguns vazios assistenciais.”
O DESMAD integra a
Secretaria da Atenção Especializada do Ministério da Saúde e ficou responsável
pela retomada da habilitação de novos serviços e por iniciar estudos para a
recomposição do custeio dessas atividades. Desde sua posse no início de
2023, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, trouxe em seu discurso que o cuidado
com saúde mental seria um dos assuntos mais importantes de sua gestão no curto
prazo.
De lá para cá algumas
ações avançaram, como a reabertura do sistema de habilitação de serviços do
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que havia sido interrompido em 2019, a
recomposição orçamentária da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a respectiva
inclusão no novo Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), além da retomada
da Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada pela última vez em 2010.
A pauta também é
defendida pelo deputado federal Leo Prates (PDT-BA) que assumiu a coordenadoria
de Atenção Primária da Frente Parlamentar Mista pela Promoção da
Saúde Mental que trabalha na criação de uma agenda
prioritária sobre o tema no Congresso. Conforme o parlamentar, “as
decisões de ampliar os CAPS mostram que há uma preocupação da atual gestão em
priorizar o cuidado da saúde mental na pauta de saúde pública”.
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Participação social na Política Nacional de
Saúde Mental
Embora a saúde mental
esteja em pauta, sobretudo após os efeitos da pandemia, para Filipe Asth,
doutor em Políticas Públicas e secretário executivo da Frente Parlamentar Mista
para Promoção da Saúde Mental pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde
(IEPS), essa temática é capturada pelo viés do diagnóstico, pautada a partir da
doença, sem considerar especificidades individuais e de contexto:
“Entendemos que
não dá pra falar em saúde mental sem falar em direitos humanos e
condições sociais básicas, como emprego e acesso à cultura e lazer. É urgente
ampliar a discussão nessa direção. Saúde é mais do que reduzir
vulnerabilidades.”
O IEPS tem trabalhado
para a construção de políticas públicas sobre o tema mais alinhadas às
necessidades da população. Em 2023, Asth foi convidado para exercer a
Secretaria Executiva da Frente Parlamentar, ficando responsável pela
articulação entre os parlamentares, construção e implementação da Agenda
Legislativa e pela elaboração de produções técnicas que subsidiam as decisões
em relação aos assuntos debatidos. Além disso, o IEPS subsidia ações de
comunicação e realização de eventos, tais como o lançamento da Frente, reuniões
de planejamento estratégico e com o Conselho Consultivo.
Quem também atua neste
cenário é o Instituto Cactus, que busca qualificar o debate em torno de
políticas públicas de saúde mental. Nesse sentido, trabalha para dar mais
centralidade ao tema tanto no Congresso Nacional quanto na Esplanada dos
Ministérios. A instituição participou das discussões iniciais de
construção e desenho da Frente Parlamentar junto ao gabinete da Deputada Tabata
Amaral (PSB/SP) e, atualmente, é membro do Conselho Consultivo.
Para Silvia Molinar,
secretária-executiva do Cactus, o diálogo é positivo não apenas por
sensibilizar os parlamentares sobre a importância do tema e dar mais voz para a
pauta, mas também para a sociedade como um todo, uma vez que as iniciativas ali
apoiadas, se aprovadas, podem gerar impacto real para a população.
Porém, para que o tema
ganhe relevância, os recursos orçamentários são importantes, ao mesmo tempo que
são um obstáculo, pontua Filipe Asth: “O principal desafio é a limitação do
orçamento, que é central para a implementação dos serviços da RAPS, para que
seja, de fato, promovido o acolhimento em saúde necessário nas políticas de
saúde mental”. Dados da OPAS apontam que, na região da América Latina e no
Caribe, os recursos destinados à saúde mental representam, em média, apenas 2%
do orçamento total de saúde.
Segundo João Mendes, o
Ministério da Saúde recompôs o orçamento da política de saúde mental:
“Comparado com 2022, este ano há previsão de investimento de novos R$ 425
milhões anuais no custeio da RAPS. Esse recurso é referente à soma em que, por
um lado, ocorreu a recomposição orçamentária de 27% no custeio dos serviços
existentes e, por outro lado, ocorreu habilitação de novos serviços que
passaram a ser custeados com orçamento federal”, explica.
O coordenador
do DESMAD disse ainda que há previsão de investir mais de R$ 400
milhões até o final do PAC 3 e que essas ações “fortalecem a RAPS tanto com a
expansão do número de serviços quanto com a otimização das estruturas
existentes”.
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Ações nacionais em prol da saúde mental
Aprovado no fim de
2023, a Política Nacional de Assistência Psicossocial nas Comunidades
Escolares foi instituída em 16 de janeiro pela
Lei nº 14.819/2024. A iniciativa do Senador Alessandro Vieira (MDB/SE),
que contou com o apoio técnico do Instituto Cactus e do IEPS, visa estabelecer
princípios e diretrizes para a construção de ambientes escolares mais
saudáveis, com mecanismos estruturais para a promoção da saúde mental de toda a
comunidade. O texto propõe uma atuação integrada entre diversos setores,
organizando e potencializando o que já existe: o Programa Saúde na Escola
(PSE), principal executor da política, a RAPS e o Sistema Único de Assistência
Social (SUAS).
Especialistas ouvidos
pela reportagem dizem que a aprovação da política foi uma resposta importante
às situações de violência extrema ocorridas no contexto das escolas brasileiras
nos últimos tempos. “Os episódios chamaram a atenção da sociedade exigindo
atitudes de todas as esferas governamentais e não governamentais”,
defende Filipe Asth.
O próximo passo é a
implementação da Lei, que será uma tarefa desafiadora de articulação entre os
Ministérios da Saúde e da Educação para potencializar os caminhos já existentes
para o acolhimento da comunidade escolar. Para Silvia Molinar, é necessário
pensar na regulamentação e na execução da proposta, além de definir as
atividades: “Este processo deve considerar as particularidades de cada
território para não definir regras que inviabilizem a implementação por parte
dos estados – a etapa seguinte do ciclo de políticas públicas”.
O deputado federal Léo
Prates (PDT-BA) explica que, juntamente com a Frente Parlamentar para Promoção
da Saúde Mental, pretende apoiar as decisões do Comissão Intergestores
Tripartite em um ambiente de cooperação mútua na promoção dos cuidados aos pacientes,
além de sugerir políticas públicas que enriqueçam o debate:
“Esse plano, cuja
divulgação caberá às escolas, deverá conter a descrição das ações e atividades
a serem desenvolvidas no ano letivo, com metas; a estratégia de execução dessas
ações e atividades, com previsão de equipes; e a distribuição e o detalhamento
de competências dos atores envolvidos na consecução do plano”, diz.
Além disso, o
parlamentar acredita ser importante conscientizar a sociedade de que há
alternativas terapêuticas em curso que ajudam no tratamento de transtornos
mentais, baseadas no acolhimento e na atenção, que podem substituir as
internações. “A criação de fóruns de debate entre profissionais de saúde e
gestores públicos é um dos primeiros passos para dar luz ao assunto”,
comenta.
Mais recentemente,
outra ação, via lei 14.831, instituiu o Certificado Empresa Promotora da Saúde
Mental. O projeto visa a contribuir para os
esforços do país na promoção da saúde mental ao valorizar e reconhecer as
empresas que executam ações na área.
Fonte: Futuro da Saúde
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