AUTORITARISMO: Chega de cravos vermelhos?
Em 25 de abril de
1974, um movimento militar liderava uma marcha política em Portugal. Parafraseado
as palavras do capitão Salgueiro Maia, naquela noite solene, foram acabar com o
Estado a que tinham chegado, os restos do Estado Novo fundado por António de
Oliveira Salazar em 1933. Aquele dia ficou marcado como o estopim da Revolução
dos Cravos, que ganhou esse nome em referência às tradicionais flores ibéricas
vermelhas que adornaram os fuzis militares naquela marcha contra o longo fascismo português.
Até o dia 25 de
novembro de 1975, Portugal viveu o chamado Processo Revolucionário em Curso
(PRC), em que as esquerdas dominaram a política nacional e implantaram uma
série de reformas que rumavam ao socialismo, alicerçadas nos “ideais de Abril”.
Após esse dia, o país se assentou politicamente no que se tornou o período
democrático atual, com o convívio também com a direita política (não a
extrema-direita). Essa atual república teve múltiplos primeiros-ministros
(chefes de governo) socialistas, mas também conservadores da Aliança
Democrática (AD) e alguns poucos independentes, no seu período
inicial.
Meio século depois
dessa revolução, que fundou a história mais recente de Portugal, alguns novos
vínculos com o Brasil marcam o país hoje. Entre eles estão uma renovada
xenofobia contra o grande contingente de brasileiros que marchou para Portugal
na última década e o estranho lavajatismo do Ministério
Público português, que levou a um abrupto e questionável fim do governo
socialista de António Costa, cuja administração durou de 2015 até 2 de abril
deste ano. Por fim, outro paralelo com o Brasil é o retorno da direita ao poder
com o atual governo de Luís Montenegro, da AD, com o congresso português
contando pela primeira vez com uma expressiva extrema-direita, o partido
Chega.
Até o momento,
Montenegro não governa com o apoio da extrema-direita e por isso se mantém
como um primeiro-ministro de minoria parlamentária. Seu movimento provavelmente
se explica por ter observado, na vizinha Espanha, a intentona de Alberto Núñez Feijóo,
da tradicional direita do Partido Popular (PP), ser derrotada amargamente após
ganhar a maior bancada no parlamento. Feijóo foi impedido de governar porque
não conseguiu uma maioria com o partido extremista Vox, e, por causa da aliança com a extrema-direita, teve as portas
fechadas por todas as outras forças políticas do país. No entanto, assim como
fez Feijóo, Montenegro incluiu umas tantas pautas da extrema-direita no seu
governo, para não ser derrubado e catalisar apoio de massas que anseiam por
votar na nova onda extremista.
Para além das
caricaturas já exploradas de Marcus Santos, brasileiro negro que foi eleito
pelo Chega em Portugal e defende uma pauta anti-imigração repleta de nuances
discursivas racistas, o intuito da reflexão deste artigo é conversar com as
bases de formação do fascismo na atualidade, buscando entender o que se passa
em Portugal, na Europa e no mundo. Para isso, uso de base os trabalhos do
catedrático professor de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, Fernando Rosas.
·
Para além da Era dos
Fascismos – a questão contemporânea
Rosas é um dos mais
importantes intelectuais globais no estudo do fascismo, não apenas como
movimento político, mas também como governo em seus regimes ao longo do século
XX. Entre tantas importantes obras do historiador português, a mais recente, de
2019, foi publicada somente em 2023 no Brasil pela Tinta da China, e
chama-se Salazar e os Fascismos. Trata-se de um ensaio, segundo o
autor, embora tenha bases de pesquisa historiográfica, em que Rosas faz um
esforço de História Comparada para explicar o Salazarismo em Portugal.
Para além de explicar
as bases do fascismo do século XX, o autor nos brinda com um capítulo final em
que discute “Os Desafios do Presente”. Utilizando-se da famosa frase da
obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx, Rosas inicia seu pensamento relembrando o que o
intelectual alemão cravou no pensamento contemporâneo: “Hegel observa em uma de
suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história
do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a
primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
A partir daí, Rosas
relembra que o que hoje chamamos de fascismo não é exatamente o que foi o
fascismo da Europa do início do século XX. Contudo, paralelismos existem a
ponto de se debater até onde podemos falar de fascismo hoje. No começo do
século XX, os extremismos desse tipo se forjaram das crises do capitalismo
liberal, já contínuas e com seu grande crash em 1929. Rosas
relembra: “de forma idêntica ao período entre as guerras do século passado, o
capitalismo conhece, desde os finais dos anos 70 do século XX, uma prolongada
crise sistêmica, de que a grande depressão de 2008/09 não foi senão o seu abalo
mais profundo e recente.”
Dessas crises
nasceram, também, as respostas das revoluções socialistas do início do século
XX. No entanto, como também recorda Rosas, com o fim do socialismo real no
mundo, não há nada que pareça fazer frente ao neoliberalismo corroído senão
esse neofascismo rampante. A partir desse ponto, questiona-se como os últimos
cinco anos, desde que Rosas escreveu sua obra, cimentam mais ainda esse
problema. Mesmo com alguns governos com novas políticas contrárias aos ideais
do neoliberalismo se mostrando com melhores resultados econômicos e sociais
atualmente, isso não parece mais fazer diferença para frear o avanço dos
fanatismos fascistizantes que os antagonizam.
Milei faz um governo
atroz na Argentina, seguindo as cartilhas neoliberais, fazendo com que o nível
da pobreza de um dos países que historicamente tem a maior classe média da
América Latina chegasse, em janeiro, a 57,4% da população. Ainda assim, seus apoiadores
parecem firmes. Sob o governo do socialista Pedro Sánchez, a Espanha tem
indicativos econômicos raros na Europa atual, crescendo acima da média
continental em 2023 (o país cresceu 2,5% e a Zona do Euro apenas 0,4%).
Portugal acompanhou seu vizinho, crescendo 2,3%. Ambos fizeram isso enquanto a
tão potente Alemanha vê sua economia regredir (caiu 0,3%). Isso também parece
não importar para os extremistas que querem derrubar o governo socialista na
Espanha e tampouco impediu a manobra estranha que derrubou António Costa em
Portugal e abriu as alas para o retorno do neoliberalismo de
Montenegro.
Joe Biden termina seu
mandato com os EUA na melhor situação de emprego dos últimos 50 anos, e isso
tampouco parece fazer a menor diferença para a sua iminente derrota para Donald
Trump no fim deste ano. Lula apresentou números melhores que as previsões do
FMI para o Brasil em 2023 (como tantas vezes já mencionou em discursos), ainda
assim falam como se a economia do país fosse um caos. A realidade parece não
importar para os fanáticos do Bolsonarismo. Teríamos perdido a janela da
oportunidade para curar as crises econômicas de modo a enfraquecer os ascensos
neofascistas?
REPRESENTATIVIDADE
E SUBVERSÃO POLÍTICA
Rosas explica, como já
vimos em consenso entre tantos autores, como a quantidade gigantesca de
prejudicados pelo neoliberalismo desde os anos 80 se viu órfã de quem pudesse
representar suas angústias na política atual, com as esquerdas destruídas pela
década de Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Sem ter a quem recorrer, essas
massas foram atraídas pelo populismo fascistizante, que, por sua vez, empurrou
as direitas tradicionais dos países a se unirem a ele, como descreve o
intelectual português. Agora, esses movimentos tinham bases populares, que a
direita tradicional nunca teve. É mais um paralelo com o que houve na gestação
da Era dos Fascismos do início do século XX. O mundo definitivamente demorou
para ter a coragem de abandonar o neoliberalismo e ainda hoje são pouquíssimos
os governos progressistas que efetivamente o fazem.
Rosas aponta também
que até o momento em que escrevia (em 2019), não parecia que a ordem neoliberal
estava disposta a implodir os Estados democráticos de direito em nome da
fascistização. Segundo ele, especialmente porque não havia uma ameaça real de
revolução, por parte do campo da esquerda, a este sistema econômico. Se
chegamos a um ponto onde parece que algumas esquerdas pelo mundo vão tentar
questionar a cartilha neoliberal econômica, ainda que delicadamente, isso
poderia estar mudando?
A transnacionalidade
da macroeconomia atual também pode ser um fator que contribui para o aumento
dos extremismos, já que os Estados-Nação, responsáveis pela democracia, são
cada vez mais reféns de cenários que não podem alterar. Segundo Rosas, isso
gestou na Europa uma nova onda de nacionalismos xenófobos e racistas que se
aproveita do sentimento de impotência das populações, e que parece não se frear
pelo Velho Continente, mesmo cinco anos depois dos escritos do professor
português.
Por fim, há uma
questão midiática, como demonstra Rosas: “neste quadro, a concentração da mídia
e das redes sociais sob o controle de um punhado de multinacionais tem um duplo
efeito perverso: tende inevitavelmente para a restrição do pluralismo informativo
e da liberdade de expressão, por um lado; e, por outro, à atomização das
relações sociais por via informática, à transformação de cada um em objeto
fácil de manipulação centralizada e generalizada, à exacerbação de novas
modalidades de ignorância, iliteracia e desmobilização cívica”.
Outra vez há de se
apontar que o intelectual português resumiu perfeitamente o cenário
desfavorável, sendo que as consequências de cada um destes fatores são ainda
mais perceptíveis hoje, cinco anos depois. Ficando apenas no caso brasileiro:
o olavismo saiu da internet e se tornou o cânon intelectual do
Bolsonarismo atual, defendendo falácias científicas e ideais francamente
perigosos agora também nas ruas e no Congresso Nacional; a atomização das
pessoas no mundo online fortaleceu os núcleos de ódio contra minorias a ponto
de dar origem, por exemplo, ao movimento red pill, dedicado
exclusivamente a ser um baluarte masculino antifeminista; o pluralismo das
redes sumiu entre as ondas de bots já abertamente neonazistas,
alimentados pela nova onda de “liberdade de expressão” de figuras como Elon Musk.
Um novo passo foi dado
desde os escritos de Rosas: Musk já se colocou como ator político
transnacional, comprando brigas com o Estado brasileiro em nome de defender o
projeto extremista de Bolsonaro e frear os movimentos de regulamentação das
redes sociais, que minaram suas possibilidades midiáticas quando ocorreram
recentemente na União Europeia (UE).
“É certo que a
polarização tende, também, a facilitar e reforçar o campo das esquerdas”, é um
contraponto válido já apontado pelo estudioso português. Contudo, ele mesmo
rebate que esse contragolpe está se mostrando lento e muito fragmentado. Hoje,
provavelmente é justo dizer que está mais unido e forte do que há cinco anos,
com uma corrente antifascista cada vez mais visível pelo planeta, ainda que não
com a força que deveria ter frente aos horrores do avanço da extrema-direita,
alimentada pelas guerras no Leste Europeu e no Oriente Médio.
Rosas finaliza suas
reflexões recordando que não quer terminar numa nota pessimista. Acredito que
estes cinco anos deram algumas notas otimistas que devemos ressaltar. Só no
campo da política, temos as vitórias eleitorais de Biden, Lula, Sánchez e
Donald Tusk (na Polônia), para citar alguns exemplos. Não são vitórias
decisivas em nenhum destes países, mas são, no mínimo, freios ao avanço
neofascista. A regulamentação das mídias sociais na UE é outra importante razão
para comemorar. Não é fácil imaginar que estes pequenos lampejos de otimismo
possam fazer frente à onda de motivos para temermos o futuro, mas talvez sejam
os últimos respiros de esperança para mantermos ao menos um ideal de não
abandonar a condição antifascista nas disputas travadas neste momento.
Portugal, 50 anos
depois da sua Revolução pela liberdade e contra o fascismo, se encontra agora
pouco solícito aos brasileiros, o que entristece quem já viu naquele país uma
recepção positiva de valores socialistas importantes para a Europa e até para o
Brasil. Resta esperar e trabalhar para que, na efeméride de 60 anos, uma visita
à Coimbra do Choupal (que este autor tanto gostou de fazer há
alguns anos) possa acontecer em um país não mais envenenado pela xenofobia e
pelo ódio. Afinal, se os portugueses lerem a obra de Rosas, terão em vista
ótimos motivos para não engrandecer o passado fascista do país.
Ø “Papelão” de Ventura e fascistas na rua nos 50 anos da Revolução
dos Cravos
Portugal viu-se
envolto numa grande festa nos últimos dias, que teve como ponto máximo esta
quinta-feira, 25 de abril, data que marca dos 50 anos da Revolução dos Cravos, o levante militar conduzido por oficiais intermediários do
exército que derrubou a ditadura salazarista que perdurou 41 anos, na longínqua
primavera de 1974. Dia muito aguardado, de tanto significado acabou mesmo por
ter comemorações à altura. Mas o país vive um momento tenso e nem tudo foram
flores, ou melhor, cravos.
Também vivendo uma
onda de extrema direita, como boa parte das sociedades ocidentais, a nação
ibérica viu crescer essa franja radical nos últimos anos e se chocou ao
testemunhar a explosão de representação do partido Chega, de perfil autoritário
e reacionário, na última eleição legislativa, realizada há menos de dois meses,
quando a agremiação saltou de 12 deputados para 50, num universo de 230
parlamentares na Assembleia da República.
E foi lá mesmo, na
Assembleia da República, que os ecos da extrema direita se fizeram ouvir. André
Ventura, o líder do Chega, protagonizou um show de horrores na sessão solene em comemoração aos 50 anos do 25 de Abril, tradicionalmente realizada no imponente edifício que sedia o
poder Legislativo. Mesmo com alguns discursos de líderes partidários contendo
críticas e um pouco acima do tom para uma data tão formal, as palavras e a
verborragia bufa de Ventura roubaram a cena.
Admirador e entusiasta
do fenômeno bolsonarista, assim como fã assumido do líder da extrema direita
brasileira, Jair Bolsonaro, o “comandante” da legenda fascista berrava como um
gorila. Gesticulando de maneira agressiva, Ventura não respeitou a liturgia
exigida num evento tão sóbrio, despejando impropérios e ataques diretamente da
tribuna da Assembleia da República para os partidos adversários e, sobretudo,
endereçados ao presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, sentado a
poucos metros acima dele.
“O senhor presidente
da República traiu os portugueses quando diz que temos de ser culpados e
responsabilizados pela nossa história, que temos de indenizar outros países
pela história que temos conosco”, vociferou aos gritos Ventura, referindo-se a
uma declaração do chefe de Estado na qual ele posicionou-se a favor de reparar
financeiramente povos e nações que foram explorados e colonizados por Portuga.
As grosserias, no
melhor estilo bolsonarista, lembrando os discursos desconexos e deploráveis dos
parlamentares radicais da extrema direita brasileira no Congresso Nacional, não
pararam por aí.
“[O senhor] tem de
respeitar os portugueses antes de tudo, porque o senhor presidente da República
foi eleito pelos portugueses, não foi pelos guineenses, pelos brasileiros,
pelos timorenses”, disparou, em claro tom xenofóbico.
Sobre o tal
“pagamento” citado por Rebelo, o extremista luso, sempre aplaudido de forma
incivilizada e esfuziante por seus 49 companheiros de bancada, ainda se
vangloriou da exploração imposta pelos portugueses a vários povos de todos os
continentes da Terra.
“Pagar o quê? Pagar a
quem? Se nós levamos mundos ao mundo inteiro. Se hoje em todo o mundo se elogia
a pátria e o mundo da língua portuguesa”, acrescentou o homem que gosta de ser
referido como “o Bolsonaro português”. Ainda houve tempo para dizer, reafirmando
seu orgulho colonialista, que “ama a história deste país” e que “o senhor
presidente também deveria amar a história deste país”.
·
Fascistas na rua, com
toda naturalidade
Por volta das 16h no
horário local, dois grupos assumidamente fascistas literalmente marcharam pela
Rua do Arsenal em direção ao Terreiro do Paço. O primeiro, mais numeroso, era
formado por aproximadamente 120 radicais de ultradireita que gritavam cânticos
xenofóbicos e carregavam cartazes com insultos contra estrangeiros, onde
podia-se ver símbolos e insígnias inequivocamente em referência ao fascismo.
É de se imaginar que a
patota tenha fama de violenta, visto que o contingente de extremistas era
acompanhado por 11 furgões da Unidade Especial de Polícia, compostas por
agentes do EIR (Equipe de Intervenção Rápida), espécie de Bope da Polícia de
Segurança Pública (PSP), fortemente armados e com os rostos cobertos por
capuzes. Já o segundo grupo era pequeno, mais caricato, já que seguravam
estandartes no estilo medieval, sendo também acompanhado por policiais.
Fonte: Por Daniel
Azevedo Muñoz no Le Monde/Fórum
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