A misteriosa origem da palavra
'abracadabra' e seus vários usos ao longo da história
"Abracadabra"
é uma palavra curiosa.
Talvez você não se
lembre precisamente de quando a terá ouvido pela primeira vez, mas
provavelmente foi durante a infância.
Alguém pode tê-la
apresentado como uma palavra mágica, quando você começava a aprender o que é
a magia.
Logo se entendia que
pronunciar essa palavra gera algo inesperado – coisas aparecem ou desaparecem,
mudam de forma ou cor ou se movem sozinhas.
Esta não é uma palavra
de uso cotidiano. Mas, mesmo assim, ela se fixa na mente de inúmeras crianças
em todo o mundo.
"Abracadabra"
faz parte do vocabulário de tantos idiomas que já se afirmou que ela é mais
antiga do que a Torre de Babel da Bíblia.
Mas o que certamente
ninguém contou é o seu significado... Porque ninguém sabe com certeza.
O Dicionário Houaiss
da Língua Portuguesa, por exemplo, registra que "abracadabra" é uma
"palavra cabalística a que os antigos atribuíam a virtude de curar
moléstias". Mas não informa o seu significado exato.
E esta não é a única
questão. O Dicionário Oxford da Língua Inglesa, desde sua primeira edição, em
1884, indica que a palavra "abracadabra" tem origem
"desconhecida".
Mas isso não evitou
que especialistas tentassem decifrar o mistério, elaborando diversas teorias ao
longo dos séculos.
·
Bíblia, divindade,
constelação
Diversas conjecturas
consideram que a palavra "abracadabra" teve origem no início da
tradição judaico-cristã.
Esta palavra esotérica
pode ter se derivado da frase hebraico-aramaica avra gavra. Ela se
refere às palavras proferidas por Deus no sexto dia da criação, segundo o
Antigo Testamento: "Criarei o homem."
Mas esta é apenas uma
dentre diversas possibilidades.
Outra teoria defende
que a palavra talvez provenha do aramaico avra c'dabrah ("acredito
com a palavra") ou do hebraico abra kedobar ("aconteceu
conforme anunciado").
Trata-se de "uma
máxima talmúdica que expressa a crença de que a pessoa que fala tem o poder de
fazer com que o mundo exista", segundo o rabino americano Alan Lew
(1943-2009) no seu livro This Is Real and You Are Completely Unprepared ("Isso
é real e você está completamente despreparado", em tradução livre).
Ou seja, o mero ato de
pronunciar a palavra ou nomear alguma coisa pode instigar a sua criação.
Outros especialistas
também acreditam que "abracadabra" venha do aramaico e do hebraico,
mas eles consideram que seu significado é totalmente diferente – por exemplo,
"desaparece como esta palavra" (abhadda kedkabhra) ou
"lança o teu raio até a morte" (abreq ad habra).
Existem outras buscas
pelo significado, seguindo a hipótese de que "abracadabra" provenha
dessas línguas semíticas. Mas também há teorias que se aventuram por caminhos
diferentes.
Entre as muitas
hipóteses mencionadas pelo professor americano Craig Conley no seu livro Magic
Words: A Dictionary ("Palavras mágicas: um dicionário", em
tradução livre), uma delas defende que "abracadabra" era a divindade
suprema dos assírios.
Outra afirma que seria
uma corruptela do nome do pai
da álgebra, o matemático árabe do século 9º Abu
Abdullah abu Jafar Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi.
Já o astrônomo britânico
Samson Arnold Mackey (1765-1843) garantiu em 1822 que "abracadabra" é
uma frase formulada pelos antigos astrônomos para descrever a constelação de
Touro.
Existem ainda outras
hipóteses, mas o debate não chega a um consenso. Afinal, como explica o
Dicionário Oxford, "não foram encontrados documentos que respaldem nenhuma
das diversas conjecturas".
Mas o fato de que
"abracadabra" tenha passado a ser "ininteligível para os
herdeiros da tradição, frequentemente desconhecedores do seu sentido e idioma
original" – como destacou o acadêmico Joshua Trachtenberg (1904-1959) –
acabou se tornando uma virtude.
"Existe tão pouca
necessidade de que a palavra mágica tenha algum sentido inteligível que, na
maioria das vezes, ela é considerada eficaz por ser estranha e sem significado,
sendo particularmente preferidas palavras incompreensíveis em idiomas estrangeiros",
escreveu o acadêmico Benno Jacob (1862-1945) no livro Im Namen Gottes ("Em
nome de Deus", em tradução livre).
Por isso, exótica e
sem significado, mas talvez mais poderosa justamente por este motivo,
"abracadabra" marca sua presença na história há séculos. E sempre se
esperou muito desta palavra.
·
Poder transcendental
Muito antes de fazer
coelhos saírem de cartolas, "abracadabra" era usada com fins muito
diferentes, como espantar os demônios e a morte, além de enfrentar doenças.
Seu primeiro uso
conhecido aparece nos fragmentos que chegaram até nós do Liber
medicinalis, do século 3º d.C., também conhecido como De Medicina
Praecepta Saluberrima.
Seu autor é Sereno
Samônico. Não se sabe muito a seu respeito, mas ele foi médico do imperador
romano Caracala (188-217) e era considerado sábio.
Entre diversos outros
tratamentos, remédios e antídotos, seu livro menciona um para "a febre
mortal que os gregos chamavam de hemitritaion".
"A palavra nunca
foi traduzida para o latim, seja porque a natureza do idioma não o permite ou
porque os pais, acreditando que traduzi-la seria prejudicial para seus filhos,
não quiseram dar a ela um nome", escreveu Samônico.
O médico se referia à
doença conhecida hoje como malária, que devastou a Roma Antiga. Para curá-la, ele recomendava o
seguinte:
"Escreva em uma
folha [de papiro] a palavra ABRACADABRA, repita-a omitindo a última letra, de
forma que faltem cada vez mais letras individuais em cada linha [...] até que
fique uma única letra como o vértice de um cone. Lembre-se de fixá-la ao pescoço
com um fio de linho."
A ideia era que a
doença iria desaparecer aos poucos, como a palavra "abracadabra".
Samônico também
receitava untar o corpo com gordura de leão ou usar a pele de um gato doméstico
adornada com joias para se proteger contra essa febre.
Mas o que permaneceu
foi o uso da curiosa palavra, que deixou seus rastros por diversos lugares e
culturas.
Ela aparece, por
exemplo, gravada em algumas das pedras de Abraxas, que os basilidianos –
membros da seita gnóstica do século 2º fundada por Basílides de Alexandria –
usavam como talismãs.
"Abracadabra"
era parte de uma fórmula mágica para invocar a ajuda de espíritos benevolentes
para combater doenças e ter boa sorte.
A palavra também
aparece na "Árvore do Conhecimento" (Etz ha-Da'at), um pequeno
códice escrito por Eliseu ben Gad de Ancona, na Itália, no século 16.
O primeiro
encantamento incluído no livro é uma "cura celestial" para
"todos os tipos de febre". Ele começa dizendo:
"Av avr avra
avrak avraka avrakal avrakala avrakal avraka avrak avra avr av"
Como destaca Zsofi
Buda no blog da Biblioteca Britânica, é fácil descobrir neste feitiço a palavra
mágica "abracadabra".
Na Inglaterra, como em
muitos outros lugares, "abracadabra" continuava oferecendo esperanças
de cura ainda no século 18.
A palavra é destacada
no livro Um Diário do Ano da Peste (Ed. Artes e Ofícios,
2002), escrito em 1722 pelo autor de Robinson Crusoé, Daniel Defoe (1660-1731).
O autor lamenta que as
pessoas acreditassem em fraudes "como se a peste
[bubônica] não fosse mais do que uma espécie de
possessão de um espírito maligno", recorrendo a superstições para
afastá-lo.
Entre essas
superstições, estavam "papéis amarrados com tantos nós; e certas palavras
ou figuras neles escritas, particularmente a palavra 'abracadabra', em forma de
triângulo ou pirâmide".
As pessoas que
confiavam nos talismãs continuavam seguindo as instruções fornecidas séculos
antes por Sereno Samônico. Elas os usavam por nove dias e depois os
descartavam, atirando-os sobre o ombro esquerdo antes do amanhecer em um riacho
que fluísse de oeste para leste. Tudo em vão.
"Quantos pobres
foram depois levados em carros funerários e atirados em fossas comuns com esses
pingentes infernais pendurados no pescoço", escreveu Defoe.
Havia também quem
carregasse amuletos com a pirâmide voltada para cima, para atrair boa sorte.
No início do século
19, com o surgimento da obsessão britânica pelo espiritismo, o famoso ocultista
inglês Aleister Crowley (1875-1947) decidiu se apropriar da palavra mágica.
Ele reconstruiu
"abracadabra" por meio de uma reformulação cabalística que a
transformou em "abrahadabra", na sua obra O Livro da Lei,
que define os princípios básicos da sua nova religião, chamada Thelema.
Para ele,
"abracadabra" é "a Palavra do Éon, que significa a Grande Obra
cumprida".
Naquela época, a
palavra já estava perdendo seu suposto poder de cura. Mas, ao mesmo tempo, já
adquiria outro significado, quando foi incorporada pelos mágicos aos seus
repertórios.
Foi assim que, a
partir das primeiras décadas do século 19, "abracadabra" se
transformou, como num passe de mágica, no encantamento que conhecemos hoje,
desde a infância.
Fonte: BBC News Mundo
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