Por que é importante deixar a criança se
arriscar nas brincadeiras
Você é do time que
deixa seu filho escalar, subir em árvore, correr, andar de bicicleta ou faz
mais o tipo que, se pudesse, embalaria a criança em plástico-bolha 24 horas por
dia para evitar que ela se machuque? Bem, você também pode ser de um jeito às vezes
e, dali a pouco, mudar de opinião, ou, o que seria ideal: ter um equilíbrio
entre os dois extremos. Mas sabemos que, na prática, não é fácil.
Um estudo, feito pela
Universidade Deakin, na Austrália, com mais de 600 pais, mostrou que 78% deles
não deixam que as crianças se arrisquem ao brincar e colocam muitos limites em
atividades como subir em árvores, pedalar em descidas e brincar de “lutinha”,
por exemplo. Como resultado, de acordo com a pesquisa, as crianças não são tão
fisicamente ativas quanto deveriam para ter um bom desenvolvimento físico e
mental.
“Embora a maioria dos
pais reconheça os benefícios que os filhos têm ao se arriscar, muitos não
querem deixar que os pequenos se aventurem. Isso sugere um conflito sobre a
questão”, disse a psicóloga Alethea Jerebine, responsável pelo trabalho,
publicado no jornal Psychology of Sports and Exercise.
Segundo a
especialista, oferecer às crianças a oportunidade de experimentar os riscos as
ajuda a aprender o que elas podem ou não fazer, além de construir autoconfiança
e independência, assim como desenvolver a habilidade de gerenciar esses riscos
e de se manter em segurança. “Também sabemos que as crianças têm mais desafios
relacionados à saúde mental, especialmente depois da pandemia. Brincar ao ar
livre pode ser uma ótima maneira de estimular o bem-estar mental e o
desenvolvimento físico na infância”, afirma.
• A importância de brincar na natureza
Para o pediatra
Ricardo Ghelman, presidente do Núcleo de Medicina Integrativa da Criança e do
Adolescente da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), o medo reprime a
confiança básica que a criança tem em relação ao mundo.
Ter mais oportunidades
de se divertir em espaços abertos tem total conexão com a exploração da
natureza, que envolve justamente enfrentar o medo e ganhar segurança. “O
convívio com a natureza na infância, especialmente por meio do brincar livre,
ajuda a fomentar a criatividade, a iniciativa, a autoconfiança, a capacidade de
escolha, de tomar decisões e de resolver problemas, o que, por sua vez,
contribui para o desenvolvimento integral”, detalha.
Esse desenvolvimento
integral, segundo o pediatra, começa pela inteligência motora e sensorial que
seria como a “fundação da construção” na infância. Em seguida, vêm a
inteligência cognitiva e a inteligência emocional, que se alicerçam na
primeira. As brincadeiras e o tempo que os pequenos passam ao ar livre oferecem
condições positivas para que tudo isso aconteça de maneira saudável.
Os pais querem evitar
que as crianças corram perigo de errar, de se machucar, de se prejudicar, mas,
por mais tentativas que se faça, é simplesmente impossível - e nada saudável.
A psicóloga Cristina
Borsari, coordenadora do Departamento de Psicologia do Sabará Hospital Infantil
(SP), reforça que o aprendizado que vem das tomadas de decisão que acontecem
durante as brincadeiras é benéfica para o desenvolvimento infantil e, a curto
prazo, resulta em maior autonomia, autoconfiança e autoestima para as crianças.
“Já a longo prazo, essas características estarão implícitas em uma
personalidade mais segura, com mais capacidade de resiliência”, diz ela.
Isso significa que
crianças expostas a brincadeiras que envolvem certos riscos poderão aplicar
essas habilidades desenvolvidas em outras áreas da vida. “Tornam-se adultos
mais corajosos, que lidam melhor com questões relacionadas à frustração e a
mudanças de vida, como morar em outro país ou mudanças de empregos e
investimentos em novos projetos pessoais ou profissionais”, acrescenta.
• De onde vem tanto medo?
O estudo australiano
mostrou que boa parte dos pais conhecem todas essas vantagens e, ainda assim,
ficam receosos ao ver os filhos se arriscando e tendem a não permitir. Uma
coisa é saber que se arriscar é bom para o desenvolvimento emocional, mental e
cognitivo. Outra é vê-lo subindo em uma árvore grande ou correr por um local
desnivelado, imaginando os piores cenários, como uma perna quebrada, um dente
lascado ou a cabeça sangrando e o desespero para chegar ao pronto-socorro mais
próximo. Sim, pode acontecer.
Mas o pediatra Ghelman
lembra que ficar trancafiado dentro de casa também é arriscado. “Criança
limpinha, que não pode brincar na terra, com folhas, com água, com o ar, com
fogo (quando mais velha, ajudando a fazer uma fogueira, por exemplo), fica
muitas horas brincando na tela do celular e do computador também tem consequências, como uma tendência à
miopia, ao déficit de atenção e hiperatividade, à obesidade, alergias,
desequilíbrio emocional, falta de agilidade, entre outros”, enumera o
especialista.
Ou seja: se brincar do
lado de fora envolve alguns perigos, a “proteção” que prende a criança ao
quarto ou à sala envolve outros, que, dependendo da intensidade, podem até ser
mais graves.
As transformações da
vida moderna e do estilo de vida também impactam nesse comportamento das
famílias. “A atual geração de crianças é provavelmente a última com avós que
tiveram contato e experiências diretas na natureza”, lembra Ghelman. “Portanto,
os pais e cuidadores se sentem muito mais seguros em deixar as crianças em
espaços fechados”, diz ele.
A psicóloga Cristina
concorda. “Os pais, sem dúvida, estão mais receosos de que os filhos corram
riscos nas brincadeiras, tentam superproteger e educar na previsibilidade.
Talvez seja uma geração que já vem de menos brincadeiras ao ar livre, na rua, e
que, então, replica esses cuidados para que os filhos não sofram com machucados
ou quedas”, afirma.
“Adultos que cresceram
superprotegidos tendem a replicar esse modelo. Por outro lado, pais que
passaram por algum tipo de desamparo afetivo em sua infância também podem ser
mais protetores com os filhos”, diz ela. Segundo a especialista, há situações
em que é importante que os pais identifiquem seus medos e conflitos, se
necessário, com psicoterapia, para então ressignificar esses sentimentos e ter
um comportamento e formas de cuidado mais assertivas com os filhos, quebrando
ciclos e evitando projetar neles os próprios traumas.
• Proteger sem prender
Cuidar da segurança
das crianças é papel dos pais e não é um fator que pode ser colocado em segundo
plano. Ao mesmo tempo, já deu para notar que protegê-los de tudo não é uma
opção - pelo menos, não uma opção saudável. O Grupo de Trabalho em Saúde e Natureza,
da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), desenvolveu um Manual de Orientação
sobre os Benefícios da Natureza no Desenvolvimento de Crianças e Adolescentes.
Um dos autores do guia
é o pediatra Ricardo Ghelman e uma das dicas do material é justamente
reconhecer que crianças e adolescentes são capazes e competentes. “Aprenda a
avaliar as habilidades do seu filho em assumir riscos durante o brincar não
estruturado em ambientes ao ar livre, e ajude-o a perceber as consequências do
que ainda não é capaz de fazer”, diz o texto. “Ao mesmo tempo, incentive-o
gradativamente a ir além do que já é capaz, permitindo que ele assuma os riscos
com os quais se sente confortável, desenvolvendo sua capacidade de julgamento e
autorregulação”, recomendam os especialistas.
Na prática, é
importante estimular as brincadeiras ao lado de fora, sobretudo com a
participação de outras crianças, com idades variadas. “A segurança é
conquistada com o exemplo e, nesse sentido, brincar em grupo, com crianças de
várias idades, facilita muito o aprendizado corporal, que é baseado na imitação
e nos alertas de cuidado. É um ‘sim’ com cautela e estímulo ao desenvolvimento,
em vez de um ‘não’ baseado no medo e nos traumas”, diferencia Ghelman.
O diálogo entre os
pais e as crianças, ou seja, a maneira como esse “sim” ou esse “não” serão
ditos, também faz toda a diferença. Em vez de repetir para o seu filho,
enquanto ele brinca de escalar uma parede, por exemplo, “cuidado, você vai
cair!”, é mais eficiente oferecer um apoio prático, como: “pense onde você vai
colocar a mão no próximo movimento” ou “aquele galho pode ser muito fininho
para você apoiar o pé, que tal tentar naquele outro, maior?”. Se a criança está
correndo, em vez de “pare com isso, você vai cair”, tente “fique de olho para
não tropeçar naquelas pedras”.
“O desejo da criança
precisa ser ouvido e as preocupações dos pais também”, orienta a psicóloga
Cristina. “Explique o que pode acontecer e, caso a brincadeira seja autorizada,
planejem juntos, observem o brinquedo, o corpo, o tamanho e os riscos. Não se pode
amedrontar a criança, mas alertá-la sobre as possibilidades, de maneira
honesta, transparente, em tom de voz tranquilo”, diz ela. Se houver alguma
queda, um pequeno acidente, em vez de “Está vendo? Eu não te avisei?”, acolha
seu filho com afeto e colo. Depois do susto e do momento mais acalorado, vocês
podem conversar sobre maneiras de evitar que aquilo aconteça novamente.
• Impeditivos da vida contemporânea
Um dos grandes
desafios é a falta de tempo das famílias, em que os pais, em geral, trabalham
por muitas horas ao dia, e também a ausência de espaços verdes de qualidade,
sobretudo nas cidades grandes. O pediatra Ghelman lembra que atualmente, 85% da
população brasileira vive nos centros urbanos. A cidade de São Paulo, por
exemplo, tem 2,6 m² de área verde por habitante, sendo que a Organização das
Nações Unidas (ONU) recomenda 12 m². “As crianças brasileiras passam, em média,
5h35m em frente à TV, só perdendo para as crianças norte-americanas”, aponta.
Por isso, sempre que
possível, reserve um tempo para levar seu filho para brincar em parquinhos e
praças perto de casa. Para quem mora em condomínio e tem essa possibilidade,
vale a área comum, como o playground. Aos finais de semana ou quando tiver disponibilidade,
priorize passeios em parques maiores, viagens para espaços de natureza, como a
praia, o campo e as montanhas. Em algumas cidades, há, inclusive, aplicativos
como o GPS Natureza, que localizam os parques mais próximos, facilitando a
diversão.
Fonte: Bebê OnLine
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