terça-feira, 30 de abril de 2024

Mesmo depois do fim da ditadura, SNI espionou políticos e jornalistas nos governos Sarney e Collor

Conhecido como “Senhor Diretas”, por ter liderado há exatos 40 anos o histórico movimento por eleições populares para presidente, Ulysses Guimarães continuou a ser vigiado pelo Serviço de Nacional de Informações (SNI), principal máquina de espionagem implantada pela ditadura militar, mesmo após a redemocratização do país. 

Um processo de espionagem que se estendeu do governo de José Sarney (1985-1990) para além da data de extinção do órgão, em março de 1990, tão logo Fernando Collor de Mello (1990-1992) assumiu a Presidência da República. Grande articulador da Constituição de 1988, o ex-presidente da Assembleia Constituinte e da Câmara não era alvo isolado. Parlamentares dos mais diversos partidos e jornalistas que cobriam política em Brasília naquele período também foram monitorados pelo SNI

É o que revelam documentos que constam do Arquivo Nacional obtidos pelo Congresso em Foco. Conversas entre jornalistas e congressistas ou outras autoridades eram registradas e reunidas em relatório pelo serviço de informações, criado pelo governo militar em 1964 para assessorar o presidente da República e o Conselho de Segurança Nacional. As apurações dos jornalistas credenciados eram usadas, na prática, para revelar os bastidores políticos, aquilo que se dizia nos corredores do Congresso, mas que nem sempre saía estampado nas páginas dos jornais.

·        “Sorrateiro e ardiloso”

Um dos relatórios atribuía a “jornalistas credenciados” no Congresso a informação de que Ulysses fazia “um trabalho sorrateiro e ardiloso” – eram essas as palavras utilizadas – para desgastar o governo de Fernando Collor com o propósito de antecipar a implantação do parlamentarismo no Brasil e ascender, assim, ao posto de primeiro-ministro. O plano nunca se confirmou, nem há indícios de que o parlamentar tenha tramado dessa forma. O documento foi registrado em junho de 1990 nos arquivos do SNI, três meses após o órgão ser extinto por Collor.

O documento detalha a suposta tática e depois informa – novamente atribuindo informações a “jornalistas credenciados” – que Ulysses havia desistido da estratégia ao constatar que o plano Brasil Novo, mais conhecido como Plano Collor, de estabilização da inflação, começava a alavancar a popularidade do então presidente, deixando-o menos suscetível às investidas do Congresso. Collor começou o mandato sem base parlamentar e adotando uma série de medidas impopulares, como o confisco da poupança no dia seguinte à posse do presidente.

·        Lista de jornalistas

Brasília, novembro de 1989. Enquanto 82 milhões de eleitores brasileiros voltavam às urnas para a primeira eleição presidencial direta desde o golpe militar de 1964, mais de 300 jornalistas que cobriam as atividades da Câmara, do Senado e do Palácio do Planalto estavam sujeitos à mira do Serviço Nacional de Informações (SNI), principal braço de espionagem da ditadura.

Quatro anos após a redemocratização, os relatórios produzidos pelo SNI em relação aos jornalistas credenciados nas três casas mantinham o alvo preferencial dos militares:  a esquerda. Documento do SNI guardado no Arquivo Nacional listava o nome de todos os jornalistas e veículos de comunicação devidamente registrados nos comitês de imprensa do Planalto e do Congresso. Não há registro do que foi feito, na prática, com esse material.

Os arquivos eram tratados como confidenciais. A leitura dos documentos não permite concluir se o SNI contava com agentes próprios infiltrados nos comitês de imprensa da Câmara e do Senado, ou se o órgão era abastecido com informações repassadas por repórteres informantes. Uma certeza, porém, salta aos olhos. Para o Serviço Nacional de Informações, os inimigos ainda eram os mesmos do período da ditadura (1964-1985): a esquerda, os jornalistas e o comunismo.

·        Controle das comunicações

Embora a relação reunisse profissionais dos mais variados espectros ideológicos, a preocupação do serviço de espionagem recaía sobre o “controle das comunicações” pela esquerda. É o que atesta o relatório de 10 de novembro de 1989 intitulado “Esquerdas controlam matéria jornalística no Congresso Nacional”.

“Ou seja, toda a notícia que é veiculada através da imprensa escrita e televisada tem a interferência do grupo. Tais profissionais de imprensa citam como exemplo um jornal (não foi dito o nome) dirigido pelo jornalista José Tarcisio Saboia Holanda (Correio Braziliense) – considerado entre seus pares como conservador – que está publicando matéria de facções esquerdistas”, diz o texto de abertura do relatório. Um dos jornalistas mais conhecedores do Congresso, Tarcisio faleceu em 2020.

·        “Infiltração esquerdista”

No trecho seguinte, chamado de “Infiltração na área jornalística dentro do Congresso Nacional e Palácio do Planalto”, o relatório destaca que “um grupo de jornalistas credenciados, tidos como esquerdistas, estariam filtrando, de acordo com suas conveniências político-ideológicas, todas as notícias que são veiculadas pela imprensa escrita e televisada naquela Casa”.

O grupo estaria influenciando, ainda conforme o documento, até veículos considerados conservadores. O arquivo recomenda, então: “Obter a relação de jornalistas credenciados no Congresso Nacional e Palácio do Planalto”. Em seguida, os nomes são apresentados, com os devidos veículos e telefones, sem qualquer distinção entre quem seria de esquerda ou não. O arquivo se refere aos credenciados entre 1987 e 1988, ou seja, que participaram da cobertura jornalística da Assembleia Nacional Constituinte.

Essa visão transparece em vários registros. Um deles, inserido no sistema do SNI em dezembro de 1989, levou o sugestivo título “Esquerdas controlam matéria jornalística no Congresso Nacional”.  O documento reunia também listas com os nomes de todos os jornalistas e veículos credenciados na Câmara, no Senado e no Palácio do Planalto.

“Um grupo de jornalistas credenciados no Congresso Nacional, tidos como de ‘esquerda’, estariam filtrando, de acordo com suas conveniências político-ideológicas, todas as notícias que são veiculadas pela imprensa escrita e televisada, naquela Casa”, descreve trecho do relatório. O texto prossegue: “Segundo declarações de jornalistas credenciados no Congresso Nacional, ‘as esquerdas’ contam com um fator fundamental naquela Casa Legislativa: ‘o controle das comunicações’, ou seja, toda a notícia que é veiculada através da imprensa escrita e televisada tem a interferência do grupo”.

Com o monitoramento de jornalistas no Congresso, o SNI buscava informações privilegiadas obtidas por profissionais de imprensa no livre exercício de suas funções devidamente credenciados pela Câmara e pelo Senado. Nos arquivos, há relatos de conversas informais entre parlamentares e jornalistas, quebra de confidencialidade de entrevistas concedidas sob condição de anonimato (o chamado off, no jargão jornalístico), informações repassadas por representantes de governos estrangeiros, alguns deles de países comunistas.

·        Chutes

Um dos jornalistas relacionados à época, Hélio Doyle contesta a informação de que havia controle por parte das “esquerdas” da cobertura política no Congresso. “Qualquer um que fosse a favor da democracia era enquadrado pelo SNI como esquerdista. Havia gente das mais variadas correntes, muitos de direita”, diz Doyle, que presidiu o Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal ainda no período da ditadura, período em que foi preso pelos militares.

“Havia muitos chutes. Eles faziam deduções: se você era amigo de alguém que era ligado a um partido ou movimento de esquerda, já era rotulado como integrante daquele grupo também”, explica Hélio, professor da Universidade de Brasília, com passagem por diversas redações e ex-diretor da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Como mostrou o Congresso em Foco nessa quinta-feira (25), o SNI continuou o serviço de espionagem mesmo após o final da ditadura, nos governos José Sarney (1985-1990) e Fernando Collor de Mello (1990-1992), conforme revelam documentos registrados no Arquivo Nacional.

Conversas entre jornalistas e congressistas ou outras autoridades eram registradas e reunidas em relatório pelo serviço de informações, criado pelo governo militar em 1964 para assessorar o presidente da República e o Conselho de Segurança Nacional. As apurações dos jornalistas credenciados eram usadas, na prática, para revelar os bastidores políticos, aquilo que se dizia nos corredores do Congresso, mas que nem sempre saía estampado nas páginas dos jornais.

Entre os políticos monitorados pelo SNI, estava o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP), acusado em um dos documentos de tramar contra Collor para antecipar a implantação do parlamentarismo no país e, assim, alçar ao cargo de primeiro-ministro.

·        Sarney nega; Collor se cala

Procurado pelo Congresso em Foco, o ex-presidente José Sarney e o porta-voz de seu governo, Fernando César Mesquita, negaram ter conhecimento da produção desse tipo de trabalho do SNI em sua gestão. 

“O presidente nunca recebeu esse tipo de relatório e nem tinha conhecimento de que eram feitos. E nunca concordaria com esse tipo de absurdo. Palavra dele e minha”, respondeu Fernando César. Homem de total confiança do ex-presidente, o jornalista foi porta-voz e secretário de Imprensa de Sarney. Também procurado, Fernando Collor não se manifestou sobre o assunto.

Em 1987, um relatório antecipava que o Jornal do Brasil, um dos principais diários do país na época, preparava reportagem sobre a “ingerência” de Roseana Sarney, filha do então presidente, e seu marido, Jorge Murad, “nos assuntos do Executivo”.

“Procurará, ainda, mostrar que tais ingerências só servem para desmoralizar a figura do presidente Sarney, fazendo com que perca sua autoridade e autonomia, junto a políticos e a sociedade, colocando-o como um dependente de seus familiares”, diz trecho do documento, que antecipava a data de publicação da reportagem e relatava conversas dos jornalistas envolvidos na reportagem. 

“Segundo tais jornalistas, a matéria faz parte da estratégia de um grupo de peemedebistas que pretende afastar Roseana e Jorge Murad do Palácio do Planalto, por acreditar que ambos têm mais influência sobre o presidente que o PMDB”, acrescenta. O relatório foi registrado em setembro de 1987, mas fazia referência a uma reportagem que seria publicada em maio do mesmo ano. Provavelmente, o documento foi registrado cerca de cinco meses após a “apuração”.

·        Sigilo quebrado

O SNI também descrevia conversas reservadas entre parlamentares e jornalistas, quebrando o princípio norteador do sigilo da fonte. Em documento registrado em fevereiro de 1988, é feito um alerta sobre uma possível campanha de desmoralização do presidente José Sarney. 

“O deputado federal Alberico Cordeiro da Silva (PMDB-AL), em conversa com jornalistas credenciados junto ao Congresso Nacional, afirmou que chegou ao seu conhecimento que alguns parlamentares – não citou quais e de que partidos políticos – estariam fazendo levantamento de bens e renda dos familiares do presidente da República, José Sarney, com o intuito de desmoralizar o presidente e fazer pressões políticas. Tal levantamento, segundo Alberico Cordeiro, seria divulgado através da imprensa em caráter nacional.”

De acordo com outro relatório, de setembro de 1988, semanas antes da promulgação da Constituição Federal, lideranças do governo relataram a jornalistas, sob condição de anonimato, que o governo estava “completamente sem comando” no Congresso. Segundo as fontes citadas – uma delas, líder do governo à época -, Sarney não orientou o que o governo queria  na votação do segundo turno do texto constitucional. Faltava, conforme o relato atribuído a esses parlamentares em conversas com jornalistas, uma assessoria competente ao presidente.

·        Relatórios após a extinção

A extinção do SNI foi uma das promessas de campanha de Collor, cumprida em seu primeiro dia de mandato. Mesmo com a dissolução do órgão em março de 1990, e a criação da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), relatórios continuaram a ser produzidos e atribuídos ao Serviço Nacional de Informações.

A informação foi confirmada ao Congresso em Foco pelo Arquivo Nacional. “A SAE manteve o quadro de servidores e a sede física do antigo SNI”, explica o órgão por meio de sua assessoria. “E na leitura dos documentos que a SAE produziu é possível perceber que algumas atividades e formas de trabalhar do antigo SNI permaneceram”, esclarece. Segundo o Arquivo, não há como informar se os documentos produzidos entre 1985 e 1990 foram repassados aos presidentes da República.

·        Arquivo confidencial

Congresso em Foco teve acesso a cerca de 30 relatórios produzidos entre 1985 e 1990 que evidenciam a espionagem de políticos e jornalistas na Câmara e no Senado pelo SNI. Segundo o Arquivo Nacional, todos estes documentos eram caracterizados como Arquivo Cronológico de Entrada (ACE), sistema adotado obrigatoriamente por todas as agências do órgão.

Mesmo diante do conteúdo sensível, o manual do SNI não previa que os documentos fossem enquadrados como “ultrassecretos”, cujo sigilo pode ser de até 25 anos após a publicação. Eram classificados, porém, como “sigilosos”, “confidenciais” ou “secretos”.

O Arquivo Nacional explica ainda que a unidade de arquivamento do ACE permitia reunir em um mesmo dossiê documentos pertinentes a um mesmo assunto ou pessoa, produzidos ou recebidos pelo Serviço. Um documento principal era escolhido entre os componentes, e os demais eram referenciados para servir de base.  

Os documentos, no entanto, poderiam ser produzidos por outros órgãos do Sistema Nacional de Informações (Sisni), de acordo com o Arquivo Nacional. Entre esses órgãos, unidades de inteligência das Forças Armadas – o Cenimar (Marinha) e, mais tarde, o CIE (Exército) e o Cisa (Aeronáutica) – e da Polícia Federal; Assessorias de Segurança e Informações (ASIs), instaladas em universidades, fundações e empresas públicas; e Divisões de Segurança e Informações (DSIs), instaladas em cada ministério civil e órgãos vinculados.

O ACE principal continha um indicativo numérico, nome ou sigla do órgão de origem, data, assunto e difusão. A consulta  à base de dados do Sistema de Arquivamento e Recuperação de Documentos Para Informações, no entanto, era competência exclusiva do Serviço Nacional de Informações e das Agências Regionais, a despeito da possibilidade da origem ser de outro órgão. 

“O ACE era identificado pela letra-código da agência, pelo número que correspondia à ordem de entrada do processo nas Subseções de Pesquisa e Arquivo das Agências, dentro de uma sequência numérica crescente”, explica o Arquivo Nacional, “independente do ano em que fosse constituído, acrescido do dígito verificador e de dois algarismos relativos à dezena do ano de sua elaboração”, explica o Arquivo Nacional.

·        Do SNI à Abin

O SNI foi sucedido pelo Departamento de Inteligência da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República. O departamento foi elevado à condição de Subsecretaria de Inteligência pelo presidente Itamar Franco. Em 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso, a SAE virou a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que ainda hoje existe. O órgão foi envolvido em um escândalo de espionagem no governo Jair Bolsonaro. Segundo a Polícia Federal, a Abin foi usada por sua antiga cúpula para espionar jornalistas, adversários e até aliados do ex-presidente.

O Arquivo Nacional explica ainda que a unidade de arquivamento do ACE permitia reunir em um mesmo dossiê documentos pertinentes a um mesmo assunto ou pessoa, produzidos ou recebidos pelo Serviço. Um documento principal era escolhido entre os componentes, e os demais eram referenciados para servir de base. 

Criado no primeiro ano da ditadura militar, em 1964, o SNI era uma das principais máquinas de espionagem e perseguição do regime que se estendeu até 1985. De acordo com o Arquivo Nacional, os documentos atribuídos pelo SNI poderiam ser produzidos por outros órgãos do Sistema Nacional de Informações (Sisni). Entre esses órgãos, unidades de inteligência das Forças Armadas – o Cenimar (Marinha), o CIE (Exército) e o Cisa (Aeronáutica) – e da Polícia Federal; Assessorias de Segurança e Informações (ASIs), instaladas em universidades, fundações e empresas públicas; e Divisões de Segurança e Informações (DSIs), instaladas em cada ministério civil e órgãos vinculados.

A consulta  à base de dados do Sistema de Arquivamento e Recuperação de Documentos Para Informações, no entanto, era competência exclusiva do Serviço Nacional de Informações e das agências regionais, a despeito da possibilidade da origem ser de outro órgão.

·        Indignação

Após a publicação desta reportagem, a jornalista Bertha Pellegrino, cujo nome aparece na lista de credenciados no Congresso e no Planalto entre 1985 e 1990, enviou nota em que manifesta sua indignação com o monitoramento feito pelo SNI. Veja a íntegra da nota:

“É com indignação que recebi a notícia de que eu e tantos jornalistas fomos monitorados pelo SNI nos anos de 1985 e 1990, época em que exerci as funções de setorista de política da TV Manchete no Palácio do Planalto/Congresso Nacional e, em 1989, diretora da TV Globo MT, em Brasília.

Ao longo dos meus 40 anos como jornalista, sempre prezei pela isenção, honestidade, ética, comprometimento e, nesse período, não foi diferente. Descobrir, dessa forma, que tive minha vida profissional – e quem sabe até pessoal – vigiada por agentes do Estado me assusta.

A liberdade jornalística é um pilar fundamental da democracia e qualquer tentativa que busque ou tenha buscado sufoca-la é inaceitável.

Deixo registrado a minha indignação com essa lamentável prática.”

 

Fonte: Congresso em Foco

                                               

 

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