O que os guerreiros de terracota revelam
sobre cotidiano da China Antiga
Eles não falam. Não se
mexem. Mas os enigmáticos guerreiros chineses de terracota são excelentes na
arte de contar histórias.
Durante a escavação de
um poço na região central da China, 50 anos atrás, um grupo de agricultores
descobriu acidentalmente o monumental conjunto de estátuas.
Desde então, as
figuras de argila em tamanho real vêm revelando detalhes impressionantes sobre
os soldados de Qin – o Estado feudal que unificou a China no ano 221 a.C., sob
o governo do primeiro imperador do país, Qin Shi Huang.
Os guerreiros foram
descobertos em fossos enterrados a nordeste da cidade de Xian, perto do túmulo
do imperador.
E seu exame detalhado
mostra como era a vida na antiga dinastia Qin, desde as roupas que as pessoas
vestiam até os locais de origem dos soldados do exército.
Certamente, não são os
sapatos a primeira coisa que chama a atenção nessas esculturas com 2,2 mil anos
de idade, portando armas reais e dispostas em formação militar para proteger o
imperador na vida após a morte.
Mas uma análise
preliminar dos seus calçados demonstrou que esses humildes acessórios podem ter
desempenhado papel fundamental no exército de Qin, contribuindo para sua
capacidade de conseguir uma vitória após a outra.
A análise ainda
aguarda o escrutínio de outros cientistas ou sua publicação em revistas
científicas.
Mas dois pesquisadores
chineses, responsáveis pelo estudo, analisaram os sapatos de um arqueiro
ajoelhado – a única espécie de guerreiros de terracota escavada até agora que
revela a sola dos seus sapatos.
Eles fizeram uma cópia
do calçado, usando os mesmos métodos e materiais de fabricação de sapatos
usados pelo povo Qin na época da elaboração dos guerreiros de Xian.
O estudo comparou os
sapatos reproduzidos com dois pares de calçados modernos com múltiplas camadas.
A conclusão foi que as
réplicas eram extremamente flexíveis e permitiam que seus usuários caminhassem
de forma "mais confortável, estável e eficiente".
As solas dos calçados
também exibiram melhores propriedades antideslizantes em condições úmidas.
Seus "processos
de produção únicos e magníficas técnicas artísticas eram impressionantes",
segundo Cha Na, um dos autores do estudo e estudante de graduação da Faculdade
de Engenharia e Ciências da Biomassa da Universidade de Sichuan em Chengdu, na
China.
O que mais surpreendeu
Cha foi a sola dos sapatos, conhecida como sola de "mil camadas". Ela
é composta de diversas camadas de folhas de rami coladas, costuradas e
comprimidas entre si.
"Quando tive nas
mãos as réplicas modernas dos calçados que podem ter sido usados por soldados
Qin há mais de 2 mil anos, fiquei profundamente impressionado com o seu
requinte", afirma Cha.
"Pude observar
claramente os pontos que foram pressionados através das solas de 'mil camadas'
e organizadamente alinhados. As solas eram extremamente macias, confortáveis e
podiam ser dobradas com muita facilidade."
A sola dos calçados do
guerreiro ajoelhado foi dividida em três seções, cada qual com diferentes
números de pontos. A seção do antepé tinha os padrões mais densos, seguida pelo
calcanhar e, por fim, pelo meio do pé.
Este mesmo design foi
adotado nas réplicas elaboradas pelos pesquisadores. Eles afirmam que este
detalhe se baseava nas necessidades dos pés humanos e pretendia fornecer
"conforto, apoio e durabilidade ideais".
O tecido absorvente
utilizado na sola também teria ajudado os solados em condições úmidas,
fornecendo um calçado antiderrapante que teria permitido que eles se movessem
com agilidade sobre terrenos de difícil acesso.
"As solas dos
sapatos são pequenas, mas elas desempenham papel fundamental para [nos ajudar
a] compreender estilos de vida, técnicas de produção e culturas antigas",
afirma Cha.
• Cores vivas e contrastantes
As roupas dos
guerreiros são igualmente fabulosas. Suas cores eram brilhantes.
Quando foram criados
originalmente, os guerreiros de terracota foram pintados com tons brilhantes de
vermelho, roxo e verde. Acredita-se que fossem as mesmas cores das roupas
usadas pelos próprios soldados Qin.
Em muitos casos, a
tinta não sobreviveu aos séculos de incêndios e enchentes enfrentados pelos
guerreiros de Xian. Mas alguns deles foram desenterrados com sua coloração
original, em grande parte ainda intacta.
Muitos desses
guerreiros de terracota recém-desenterrados tinham características faciais,
cabelos e roupas em cores vivas.
Mas a exposição ao
ambiente fez com que a tinta dos guerreiros se desidratasse e descascasse em
questão de minutos, deixando apenas a argila nua.
Um estudo de 2019
concluiu que os pigmentos eram originalmente misturados com diversos
aglutinantes à base de proteínas, como colas de origem animal, leite e ovos,
antes dos soldados serem pintados. Sua função era ajudar a fixar a tinta.
O estudo também
concluiu que diferentes esculturas recebiam diferentes aglutinantes. Isso
indica que os pintores provavelmente encontravam os materiais localmente ou
usavam seus próprios costumes durante o processo de produção.
O fundo aplicado sobre
a argila cozida antes da pintura era produzido com seiva de árvore processada e
altamente sensível a alterações de umidade. Por isso, ele seca e descasca
facilmente, levando com ele a tinta.
Mas cientistas e
especialistas em preservação vêm desenvolvendo formas de conservar os padrões
policromáticos.
Exames químicos e
microscópicos da tinta encontrada em outros guerreiros também forneceram novas
indicações sobre sua provável aparência antes de serem enterrados.
Reconstruções baseadas
nessa pesquisa parecem indicar que a moda na era Qin, pelo menos no que se
referia ao exército, eram as cores contrastantes.
Todas as classes de
guerreiros vestiam conjuntos de roupas com combinações de cores chamativas,
segundo Yuan Zhongyi, um dos primeiros arqueólogos enviados para o local das
escavações, em 1974.
Chamado de "o pai
dos guerreiros de terracota" pela imprensa chinesa, Yuan descreveu em
detalhes as cores das roupas dos guerreiros em um estudo publicado em 2001.
Ele conta que foi
encontrado um general vestindo um longo casaco interno vermelho, um sobretudo
longo roxo escuro e calças de tom verde-rosado.
Ele usava ainda uma
coroa marrom, sapatos pretos e uma armadura multicolorida presa por cordões
vermelhos.
Outro guerreiro
ajoelhado vestia um longo sobretudo verde com colarinho e pulsos vermelhos,
calças azuis cobertas com protetores de pernas roxos, uma faixa vermelha na
cabeça e sapatos de tom preto acastanhado, segundo Yuan.
O pesquisador menciona
duas cartas escritas por soldados Qin, encontradas em um antigo túmulo que hoje
faz parte da província de Hubei, na região central da China.
As duas cartas,
entalhadas em tiras de bambu, mostram que os dois soldados eram irmãos. Eles
pediam à sua família que mandasse dinheiro e roupas.
Entre os mais de dez
tons encontrados pelos arqueólogos nas esculturas, o roxo é o mais enigmático,
já que é uma tintura sintética de produção complexa.
Pesquisadores
indicaram que os monges taoistas descobriram acidentalmente o pigmento da
"púrpura chinesa" ao produzir jade artificial com vidro.
O mesmo ocorreu com o
"azul chinês", um pigmento relacionado que também foi descoberto nos
guerreiros de terracota.
Eles acreditam que os
monges faziam experiências, misturando bário com diversos minerais contendo
cobre.
As pesquisas de Yuan
indicam que o roxo era uma das quatro cores mais populares das roupas do povo
Qin, ao lado do verde, vermelho e azul.
Não existem registros
históricos da existência dos guerreiros de terracota.
Isso significa que
eles passaram mais de dois milênios esquecidos na necrópole de Qin Shi Huang.
Mas existem indicações
de que o exército de 7 mil soldados de argila pode ter sido elaborado com base
em pessoas reais como modelos.
Um estudo examinou as
orelhas de 30 estátuas e encontrou "variações consideráveis" dos seus
formatos.
Os pesquisadores
chegaram ao ponto de afirmar que "não há duas orelhas exatamente
iguais".
Em 2022, um grupo de
pesquisadores comparou as características faciais de 58 guerreiros com 29
grupos étnicos chineses modernos, como os mongóis, Jingpo e Xibo. Eles
concluíram que as características dos guerreiros de Xian "relembram
muito" as dos povos chineses contemporâneos.
Os pesquisadores
afirmam que esta conclusão indica que as estátuas foram baseadas em retratos
reais. E o estudo também revelou que as esculturas se parecem mais com pessoas
do norte e do oeste da China.
A arqueóloga Li
Xiuzhen, do University College de Londres, participou dos dois estudos. Ela
afirma que o povo Qin se originou na parte ocidental da China.
Parte do seu exército
foi formada por integrantes do povo Rong, composto por diversas tribos nômades
que viviam no noroeste do país, que havia sido conquistado pelos Qin.
Os Rong lutaram pelos
Qin e venceram seis Estados rivais, segundo Li.
"Por isso, muitos
guerreiros de terracota tinham as características faciais do povo Rong",
explica ela.
Estas descobertas
reforçam a ideia de que o vasto mausoléu do exército de Xian foi criado para
reproduzir as forças armadas que serviram ao imperador Qin durante sua vida e
protegê-lo após a morte.
A enorme quantidade de
armas de bronze descoberta nos fossos com os guerreiros, incluindo 40 mil
pontas de flechas, é mais um ponto que sustenta esta teoria.
Até agora, foram
escavados apenas cerca de 2 mil guerreiros de terracota, mas outros são
descobertos todos os anos. Os arqueólogos chineses acreditam que pode levar um
longo tempo para escavar todos os guerreiros de Xian.
E, à medida que eles
são retirados dos seus túmulos, seus segredos continuam a revelar novas
indicações da vida na China Antiga da dinastia Qin.
O que já ficou claro é
que o conhecimento e as técnicas usadas na sua criação são tão admiráveis
quanto a força militar que eles representam.
"Nossas pesquisas
demonstraram mais uma vez que as pessoas que elaboraram os guerreiros de
terracota não eram apenas trabalhadores, mas artistas que criavam suas obras
com base na realidade", conclui Li.
Fonte: BBC Innovation.
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