O procurador que foi Uber por 4 meses em
Salvador: 'Não tive sensação de ser meu próprio chefe'
A relação do motorista
de aplicativo com a plataforma é um vínculo de emprego? Ou ele é um trabalhador
independente que contrata a tecnologia dessas empresas?
Para enxergar de outro
ângulo essa questão — motivo de disputas no mundo todo —, o procurador do
Ministério Público do Trabalho Ilan Fonseca tirou uma licença de quatro meses
para ser motorista de Uber nas ruas de Salvador.
Antes de ser
procurador, ele já havia sido advogado e auditor fiscal do trabalho. Mas sentiu
que faltava uma peça para se aprofundar na discussão sobre os trabalhadores de
aplicativo: viver o cotidiano de um motorista de aplicativo.
Queria experimentar,
entre outros pontos, como é a comunicação das plataformas com os motoristas e
quanto poder de decisão eles realmente têm.
"Não tive, em
nenhuma ocasião, a sensação de ser meu próprio chefe", resume Fonseca, em
referência a um termo muito usado pela Uber e por motoristas.
Fonseca ficou
"logado" (disponível para trabalho) na Uber por mais de 350 horas de
dezembro de 2021 a março de 2022.
A experiência, parte
de seu doutorado, virou o livro Dirigindo Uber - A Subordinação Jurídica na
Atividade de um Motorista de Aplicativo, publicado neste ano.
Após ter feito 350
corridas e terminado com avaliação de 4,98 estrelas, Fonseca concluiu que a
"subordinação do motorista" à plataforma "é muito mais intensa
do que a gente imagina".
Ele reconhece que fez
o trabalho de motorista sem depender disso para pagar as contas — e que,
"na qualidade de homem branco, enfrentou menos dificuldades do que
enfrentaria se fosse mulher ou negro".
Procurada pela BBC
News Brasil, a Uber criticou a pesquisa de Fonseca e respondeu que "os
motoristas parceiros não são empregados e nem prestam serviço à Uber".
Afirmou que são
"profissionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação
de viagens oferecida pela empresa por meio do aplicativo".
A assessoria de
imprensa da 99, outra empresa de aplicativo de transporte de passageiros e bens
também citada pelo pesquisador, foi procurada pela reportagem, mas informou que
não comentaria.
O pesquisador fez um
longo planejamento para se tornar motorista — que envolveu as discussões no
doutorado, pedido de licença no MPT e a inclusão da observação de que exerce
atividade remunerada na carteira de habilitação.
Fonseca diz que, com
tudo pronto e prestes a começar sua experiência, veio então uma grande
ansiedade na espera pela primeira corrida.
"Quando você está
no carro, liga o aplicativo e aguarda a primeira chamada, fica muito tenso. Não
sabe quem vai ser o passageiro — se vai ser uma pessoa educada, se estará
exposto à violência", lembra, em entrevista à BBC News Brasil.
Na primeira viagem,
correu tudo bem: foi um trajeto curto, e a comunicação com o passageiro foi
protocolar.
Ali, ele diz que
percebeu de cara que é "quase impossível" o motorista não tentar ler
o contexto ou a aparência dos passageiros — e conta que a primeira passageira
parecia estar saindo de casa e indo para o restaurante onde trabalha.
Mas situações menos
confortáveis aconteceriam em corridas seguintes.
"Fui pegar a
encomenda de uma passageira em um restaurante: uma panela de caranguejos
vivos", lembra, sobre um pedido no Uber Flash (modalidade de entrega de
itens, sem passageiro).
Fonseca imaginou que
seria para uma turista que estava passando férias com a família em uma casa
alugada em Salvador.
"Eu fui com esse
caranguejo lá atrás (do carro)... No caminho, eles ficavam batendo as patinhas,
tac, tac, tac", diz.
"Mas o pior não
foi nada disso: eu aprendi que [levar] frutos do mar e peixe não dá certo,
porque o carro fica com cheiro muito forte, e aí os passageiros seguintes vão
reclamando muito."
A cada corrida,
Fonseca buscava não perder de vista o objetivo da sua pesquisa e observava cada
uma das comunicações da Uber com o motorista por meio do aplicativo.
Conforme fez mais
viagens e ganhou mais experiência, ele diz que passou a sentir que a atividade
era algo "extremamente viciante", semelhante a um jogo.
"Sabia que meu
foco era pesquisar, mas ficava extremamente viciado no ato de dirigir, ganhar
dinheiro e conhecer mais as possibilidades do aplicativo. Ter recompensas
imediatas é muito gratificante", diz.
"Quando você
trabalha muitas horas, pensa: fiz esse sacrifício, mas hoje bati um recorde.
Isso dá uma sensação tão boa — e vem acompanhada de vários emojis da empresa,
de que você atingiu uma marca, e mostra seu desempenho da semana no gráfico."
• O que atrai os motoristas?
Para entender os
aspectos que mais atraem os motoristas, Fonseca diz ser necessário entender o
histórico desses trabalhadores.
Na realidade que
encontrou, o procurador diz que os motoristas eram principalmente pessoas que
perderam empregos formais e, sem conseguir se recolocar, usaram as verbas
rescisórias para comprar um carro, geralmente financiado, e "começaram a
trabalhar para um ou dois aplicativos".
Fonseca relata ter
observado o "reconhecimento social" que o carro dá. "É como se
você atingisse um novo patamar, ao deixar de ser um trabalhador de uma loja
para ser alguém agora que é pretensamente autônomo e tem um automóvel."
Segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), trabalhadores por aplicativo são
principalmente homens (mais de 81% do total). Quase metade das pessoas que
trabalham nestas plataformas tinha de 25 a 39 anos.
A maioria dos
trabalhadores de app têm ensino médio completo ou superior incompleto (mais de
61%), uma proporção maior do que entre a população de trabalhadores fora das
plataformas, de 43%.
O "dinheiro na
mão" é outro grande atrativo para os motoristas, segundo Fonseca.
"Eles acordam de
manhã, vão para o posto de gasolina, e botam uma quantia determinada — R$ 100,
R$ 150. E aí pensam: quando esse combustível acabar, quanto eu vou ter feito ao
final do dia?", conta.
"Ele coloca esse
combustível no cartão de crédito e vai pagar isso daqui a 30 dias. O dinheiro
que a plataforma vai oferecer vem no dia, depois que você faz 25
corridas."
Outro fator que
Fonseca lista como atrativo é a larga possibilidade de fazer "hora
extra".
"Há relatos de
quem trabalha 20 horas", diz ele, em referência a motoristas que dirigem
por mais de uma plataforma, já que há um tempo limite na direção.
"Aí você pensa:
'que loucura, não faz sentido'. Faz todo sentido quando você está endividado e
tem boleto para pagar. Esses momentos são dramáticos para eles, quando precisam
trabalhar 15 horas, 18 horas por dia. O fim do mês vai chegando e então eles
enxergam isso como uma grande vantagem."
Fonseca chegou a
trabalhar por 12 horas ao volante e diz que ficou extremamente cansado, com
dores na coluna, visão turva e desidratado.
"A garrafa de
água de 500 ml que sempre levo comigo não deu conta do recado. Alguns
motoristas, mais precavidos, já andam com garrafas de 2 litros no interior do
veículo", relata ele no livro.
"No fim do
expediente, minha capacidade de concentração não está boa e vejo lanternas e
faróis dos veículos misturarem-se com as múltiplas placas de trânsito."
Naquele dia, ele fez
seu recorde de corridas, 23 ao todo, e teve um faturamento de R$ 301,24.
A possibilidade de
fazer "intervalos" na jornada de trabalho — para levar um filho ou um
familiar em algum compromisso, por exemplo — também é vista como uma vantagem.
Fonseca compara que,
geralmente, "somente profissões mais intelectualizadas, no teletrabalho,
têm essa possibilidade de interromper" a jornada.
"É isso que eles
não querem perder. Só que eles imaginam que a dinâmica de trabalho que a Uber
oferece vai ser para sempre", diz.
"Os motoristas
acham que já têm direito garantido — esse pagamento por produtividade —, mas a
prerrogativa das plataformas é tão grande que, a qualquer momento, isso pode
ser alterado."
Em nota à reportagem,
a Uber diz que "o método de 'pesquisa' utilizado pelo autor carece do
mínimo rigor científico necessário para que pudesse tentar representar a
realidade dos motoristas parceiros da Uber no Brasil".
"Além do trabalho
ser baseado apenas em sua experiência individual, sem nenhum desenho de
amostragem para retratar o universo nem de cálculo probabilístico, os
resultados apresentados partem de interpretações arbitrárias e são
influenciados por concepções ideológicas sobre o modelo de funcionamento das
plataformas e sobre a natureza da relação entre elas e os parceiros", diz
a empresa.
• 'Uber é uma mãe'?
A pesquisa de Fonseca
é uma etnografia, modelo em que o pesquisador atua como parte do grupo
pesquisado, ao mesmo tempo que o observa.
Um dos aspectos da
pesquisa envolveu participar de conversas em pontos de encontro de motoristas
de Uber, como nas proximidades do aeroporto de Salvador, para entender os
principais temas discutidos por eles.
Fonseca diz que
observou, em diversas ocasiões, que "motoristas da Uber e da 99 chamam
essas plataformas de mãe".
"Uma pessoa
provedora, que tem hierarquia sobre você. Isso diz um pouco sobre o nível de
gratidão que eles têm por uma empresa ter os acolhido num momento de
desemprego", diz o procurador.
"Essa empresa,
mesmo sendo pouquíssimo transparente e explorando, do ponto de vista técnico,
esses trabalhadores, é quem garante o sustento deles."
No entanto, diz
Fonseca, os motoristas "sabem que a mãe nem sempre é justa — quando tem
mais de um filho, por exemplo".
"Então, falam o
seguinte: um filho é o motorista e o outro é o passageiro. Na dúvida, sempre
escolhe os passageiros, porque é quem paga para ela, e ela repassa para o
segundo filho", diz.
"Eles enxergam
esta plataforma também como alguém muito severa, que aplica punições, e que
eles não conseguem entender os motivos — os bloqueios temporários ou
definitivos, as advertências."
Fonseca diz que as
empresas, em geral, não são vistas pelos trabalhadores como empregadores.
"Eles têm muita
insatisfação, mas eles não canalizam essa insatisfação para a empresa. Aí é que
vem a mágica do negócio", afirma.
"A vantagem do
aplicativo, da tecnologia, é criar essa camada que acaba funcionando como um
filtro: o erro que prejudica o valor da corrida é do aplicativo, do algoritmo,
isso não foi feito de forma deliberada pela empresa."
Ao mesmo tempo em que
a plataforma é vista como mãe, o Estado é visto de forma negativa por estes
profissionais em geral.
"Os motoristas,
em geral, enxergam o Estado também como um inimigo — que ajuda muito pouco, que
quer cobrar impostos deles, impor multas de trânsito, cobrar taxa de
licenciamento", diz.
E os passageiros, onde
ficam nessa equação?
Atuando do lado dos
motoristas, Fonseca diz ter observado um conflito entre eles e passageiros que,
segundo ele, "é muito estimulado pela Uber".
De forma geral,
Fonseca afirma ter sentido "muito pouca empatia dos passageiros em relação
aos motoristas".
"O passageiro,
quando tem problema no aplicativo, não imputa a responsabilidade à Uber, imputa
ao motorista", comenta.
"Quando estava
rodando, vi que tem situações em que o aplicativo te manda para o lugar errado,
que trava, e ficam passageiro e motorista ali no escuro – e o passageiro fica
achando que aquele bug foi causado por esperteza do motorista."
Por outro lado, os
passageiros "quase nunca dão gorjetas, são autoritários, são
descomprometidos com as regras da plataforma", diz Fonseca.
• 'Mistérios do aplicativo'
O que mais Fonseca
ouviu nas rodas de conversa de colegas motoristas?
"Boa parte do
tempo deles é dedicado a decifrar esse mistério que é o algoritmo, o
aplicativo", diz.
"Ficam
especulando como o direcionamento da corrida vai: se a Uber prefere quem está
mais perto, quem tem nota mais alta..."
O debate, diz ele,
muitas vezes se dá sobre os aspectos que determinam o valor de uma viagem.
Fonseca considera que há um "obscurantismo" sobre o cálculo do
pagamento por cada corrida.
"Quanto mais a
Uber esconde essa informação, mais vulnerabiliza o trabalhador — mais
suscetível ele fica de continuar aceitando corridas", diz.
"A Uber paga aqui
no Brasil entre R$ 1 e R$ 1,30 por quilômetro rodado. Mas o cálculo é só esse?
Não, porque ela paga o km no momento em que o passageiro está dentro do seu
automóvel", diz.
"Para te pegar na
sua casa, tenho que fazer um deslocamento. E, depois que te deixar no destino,
dificilmente vou ficar lá porque pode não ser um lugar seguro, pode ser um
lugar péssimo para novas corridas."
Ao argumentar que os
motoristas têm custos que são pouco lembrados nos cálculos, ele lista, ainda, a
variação do preço do combustível, gastos do automóvel, como IPVA,
licenciamento, despesas com uso de pneu, manutenção, seguro do automóvel.
"Hoje no Brasil a
gasolina tá entre R$ 5 e 6 por litro, mas quando rodei (2022) teve um período
que estava R$ 10. A realidade fática do motorista de aplicativo é super
complexa e muda de semana a semana", afirma.
"E aí vêm os
fatores de risco: se bater o carro, se tomar multa. Tem tantas variáveis que é
uma temeridade o governo colocar um valor fixo no projeto de lei, de R$
32."
No projeto enviado
pelo governo ao Congresso, ao qual Fonseca se refere, a previsão é de um
pagamento mínimo de R$ 32,09 por hora de trabalho, a chamada remuneração (R$
8,02/hora) e a cobertura de custos (R$ 24,07/hora), destinada a compensar
despesas como uso do celular, combustível, manutenção do veículo, dentre
outras.
Para começar a valer,
a proposta ainda precisa ser aprovada pelos parlamentares, que também podem
alterá-la.
A BBC News Brasil
procurou a Uber para confirmar o valor de R$ 1 e R$ 1,30 por quilômetro rodado
percebido por Fonseca.
A empresa respondeu
que não há valores fixos por quilômetro e que o pagamento oferecido "leva
em consideração itens como a estimativa de tempo e de distância da viagem,
tempo e distância do percurso até o usuário, condições de trânsito, existência
de ganho adicional por aumento da demanda (preço dinâmico), modalidade (UberX,
Comfort etc.), entre outros".
A Uber afirmou que
"os ganhos na plataforma da Uber são bem particulares para cada motorista
parceiro".
Disse, ainda, que os
fatores que influenciam o cálculo de uma viagem são "sempre exibidos no
celular do motorista parceiro para que possa decidir se vai aceitar ou recusar
a solicitação".
De acordo com a
empresa, "quando há uma demanda maior em determinado local, o aplicativo
exibe aos parceiros um mapa de concentração de solicitações, assim como informa
as tendências históricas de ganhos para ajudá-los a tomar decisões informadas,
com o máximo de transparência, sobre as suas possibilidades de ganhos".
Fonseca diz que, em
conversas com motoristas experientes em Salvador, eles dizem que seguem algumas
"regras" para entender o que vale a pena.
Por exemplo,
"você não pode se deslocar mais do que 1,2 km para pegar um passageiro,
corridas em que o valor mínimo pago ao motorista seja inferior a R$ 10 não
valem a pena, e corridas que paguem mais ou menos R$ 2 por quilômetro, em valor
líquido para eles, vale a pena".
No entanto, Fonseca
alerta que percebeu que há outros fatores que têm que ser levados em conta,
como se o destino é um lugar "problemático" para encontrar outra
corrida.
Também "tem que
saber se aquele preço dinâmico vale a pena para ele pegar algumas horas de
trânsito para chegar naquele lugar", diz.
Na prática, Fonseca
diz que encontrou mais dúvidas do que certezas. "É uma pergunta dificílima
(saber o que vale a pena)", diz.
"Se você
encontrar um pesquisador que conseguiu chegar a uma regra do que vale a pena,
me mande porque eu sou muito interessado nisso."
Dados do IBGE
divulgados em 2023 apontaram que motoristas e motoboys que trabalham por meio
de aplicativos recebem valores menores por hora — e trabalham, em média, mais
horas por semana — do que colegas que atuam fora das plataformas.
O mesmo levantamento
mostrou que motoristas de aplicativos recebem, em média, R$ 11,80 por hora
trabalhada.
• 'Contrato em pedaços'
Fonseca diz que a Uber
tem um "contrato em pedaços" com os motoristas — além dos documentos
iniciais, há também mensagens por email ou pelo aplicativo enviados
frequentemente aos motoristas, relata o procurador.
"Esse 'contrato
em pedaços' contempla normas obrigatórias que vão surgindo aos poucos para os
motoristas", diz.
Fonseca fala em
"doses homeopáticas" de informações relacionadas ao contrato e diz
que isso "fragiliza, ainda mais, o conhecimento dos empregados sobre as
informações necessárias acerca de suas condições de trabalho".
Ele dá como exemplo as
mensagens com atualizações de condutas proibidas.
Depois da experiência,
a conclusão do pesquisador é de que existe uma subordinação do motorista em
relação à plataforma e que ela é "muito mais intensa do que a gente
imagina".
"Além de todas as
obrigações que um motorista de aplicativo deve seguir, os deveres dos
trabalhadores da plataforma vêm também expressos em mensagens individualizadas
diárias enviadas através do aplicativo, explicitando-se que o descumprimento
dessas regras implica desativação e desligamento, diz.
Ele aponta, por
exemplo, que os motoristas devem seguir regras indicadas pela Uber inclusive
sobre conversar ou não com o passageiro (na categoria Comfort, o passageiro
pode escolher a opção "prefiro viajar em silêncio").
O pesquisador diz que
a possibilidade de aplicação de punições pela plataforma evidencia a ausência
de autonomia dos motoristas, já que esse poder, segundo ele, não seria esperado
em um suposto cenário de trabalho autônomo.
Nesse contexto, o
procurador defende que a relação entre plataforma e motorista deveria ser
enquadrada nas leis trabalhistas já existentes no Brasil.
Fonseca critica o
projeto de lei que está no Congresso, porque "acaba, de certa forma,
legitimando padrão que foi imposto pela Uber e pela 99 no Brasil",
enquanto, na avaliação dele, esses trabalhadores precisariam de
"proteção", como um período de descanso anual, equivalente a férias
(confira detalhes do projeto aqui).
"A gente já tem
uma legislação no Brasil, desde 1943 (a CLT, Consolidação das Leis
Trabalhistas), que consegue dar conta desse tipo de trabalho", avalia o
procurador.
"A peculiaridade
deste trabalho é ser um salário por produtividade, com essa autonomia restrita
à liberdade de interromper o horário de trabalho para resolver alguma coisa
pessoal."
Questionado se leis de
décadas atrás são capazes de absorver necessidades trazidas por tecnologias
recentes, Fonseca responde que "o direito do trabalho tem a característica
de surgir justamente no momento de inovações tecnológicas".
"O direito do
trabalho a nível mundial surgiu com a Revolução Industrial, e há mais de 200
anos ele vem conseguindo dar conta disso", afirma Fonseca.
Ao seu ver, o
transporte por aplicativo é "um serviço tradicional de transporte
intermediado por um aplicativo, uma plataforma digital, mas com várias regras
de controle impostas".
"Acontece com o
motorista de aplicativo o que sempre aconteceu com vendedores externos, com
vendedores que recebem exclusivamente por comissão, com médicos que ganham
apenas por atendimento", comenta.
"É um fenômeno
que as instituições brasileiras sempre conseguiram acompanhar, e, hoje, o que a
gente precisa do Estado é de atuação, muito mais do que legislação."
Sobre o fato de a
ausência de um vínculo de emprego formal ser uma demanda inclusive de
representantes da categoria, Fonseca diz que, no direito do trabalho, "o
elemento da liberdade, o querer do trabalhador, não pode ser considerado para
caracterizar ou descaracterizar uma condição".
"É importante
ouvir esses trabalhadores. Hoje, eles não querem [ser enquadrados na] CLT,
porque eles imaginam que a CLT vai estrangular essa dinâmica de trabalho",
diz.
"O que não estão
percebendo é que pela leitura simples dos termos de uso da plataforma, isso
pode ser alterado a qualquer momento."
O procurador dá então
um exemplo sobre a discussão em torno do descanso anual remunerado que é
garantido ao trabalhador pela CLT.
"Se não quer
chamar de férias, de décimo terceiro, de direito trabalhista, pense no
seguinte: férias é um período de licença remunerada para recompor suas
energias, então, a pergunta poderia ser 'motoristas de aplicativo, vocês
gostariam de ter 30 dias por ano que não trabalhassem e ganhassem uma média dos
12 últimos meses trabalhados?'."
Fonseca reconhece ser
um ponto positivo do texto em debate o Congresso a proteção previdenciária
prevista na proposta.
Esse trecho indica que
trabalhadores devem recolher 7,5% sobre os valores referentes à remuneração e
os empregadores, 20%.
Segundo o IBGE, só
23,6% dos motoristas de app fazem contribuições à Previdência, o que significa
que mais de sete a cada dez estavam desprotegidos pelo Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS).
Além do projeto em
discussão no Congresso, há a expectativa de que o Supremo Tribunal Federal
decida se existe vínculo empregatício entre motoristas e plataformas de
aplicativos.
A Uber diz que
"os motoristas parceiros não são empregados e nem prestam serviço à
Uber".
"São
profissionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação de
viagens oferecida pela empresa por meio do aplicativo. Dessa forma, não há
subordinação na relação, pois a Uber não exerce controle sobre os motoristas,
que escolhem quando e como usar a tecnologia da empresa", diz a empresa
"Não existem
metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens, não existe
chefe para supervisionar o serviço, não há obrigação de exclusividade na
contratação da empresa e não existe controle ou determinação de cumprimento de
jornada mínima, por exemplo".
Fonte: BBC News Brasil
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