Existe democracia onde há misoginia?
A tentativa de
deslegitimação da atuação feminina na política institucional não é novidade e
se manifesta de inúmeras formas. Afetos são mobilizados com frequência quando
se fala da participação de mulheres na política, seja na correlação ao
descontrole, a falta de racionalidade, a emocionalidade exacerbada, e devido a
esses fatores, mulheres são associadas ao espaço privado, destinadas ao
trabalho reprodutivo e de cuidado com os demais. O que naturaliza e reitera um
estado de subserviência feminina ou uma suposta falta de aptidão para ocuparem
tradicionais posições de poder.
Os últimos dois
processos eleitorais no Brasil foram marcados por um ínfimo aumento de
parlamentares mulheres. Nas eleições de 2018, a bancada feminina passou de 9%
para 15% do montante de parlamentares – ainda que os estados do Maranhão,
Sergipe e Amazonas não tenham eleito nenhuma mulher –, o aumento geral é
significativo, tendo em vista o histórico de estagnação nos 9% desde a
redemocratização do país. Nas eleições de 2022, houve um crescimento de 3,2%,
passando para 18,2% a representatividade feminina no Congresso. Apesar do
avanço, ainda que tímido, chamamos atenção para o fato de que a maioria das
eleitas são de partidos posicionados na extrema e centro direita. Então, até
que ponto essa presença pode ser entendida como um avanço?
A ampliação da base
antifeminista evidencia que, apesar da luta sistemática dos movimentos
feministas brasileiros nas últimas décadas, o conservadorismo e o autoritarismo
nunca deixaram de estar fortemente presentes na sociedade. No entanto, nos
últimos anos temos visto na América Latina uma ampliação do rechaço às pautas
feministas manifestando-se com maior intensidade no debate público. Essa
contra-ofensiva aos recentes governos de centro esquerda se instalou com uma
velocidade que, às vezes, excede o tempo da reflexão e se tornou um problema
complexo para a reflexão analítica.
• Mulheres como motor de resistência
Na contemporaneidade,
observa-se o emprego do autoritarismo como uma tática para cooptar mulheres,
incentivando sua participação na esfera política institucional, a fim de
fortalecer narrativas que sustentem os papéis sociais estabelecidos pelo
patriarcado. Tal fenômeno torna-se evidente ao constatar que o Partido Liberal
(PL), liderado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, possui a segunda maior
representação feminina na Câmara Federal. Entretanto, é importante ressaltar
que essa bancada, abertamente antifeminista, busca a apropriação do conceito de
representatividade feminina, rejeitando todas as narrativas que não estejam
alinhadas às expectativas sociais tradicionais e às moralidades defendidas pela
extrema direita.
A ascensão de
parlamentares vinculadas à extrema direita e os confrontos decorrentes desse
grupo podem ser compreendidos como uma forma de “politização reativa”,
resultante do aumento das discussões, políticas públicas e leis que abordam os
direitos e a vida das mulheres nas últimas décadas, impulsionando uma reação
contra o avanço das agendas feministas.
No entanto, esse
contexto não é recebido de forma passiva. À medida que a ofensiva reacionária
foi e tem avançado, movimentos feministas demonstraram o papel central das
mulheres como motor da resistência. Um exemplo marcante foi a histórica
manifestação do movimento #ELENÃO durante as eleições presidenciais de 2018,
quando Jair Bolsonaro (PL) disputava o segundo turno com Fernando Haddad (PT).
Essa manifestação foi considerada a maior mobilização de mulheres na história
do Brasil, com protestos ocorrendo em cerca de 114 cidades, incluindo Nova
York, Lisboa, Paris e Londres, evidenciando sua dimensão global. A manifestação
começou devido às declarações degradantes proferidas por Bolsonaro em relação
às mulheres, mas acabou abarcando uma gama diversificada de pautas, como a
defesa da democracia, dos direitos humanos e, principalmente, a oposição a
posturas e narrativas associadas ao neofascismo.
Embora tenha vencido
as eleições em 2018, nunca houve uma manifestação dessa magnitude contra um
candidato e tudo o que ele representava, destacando como a luta das mulheres
ressoa com inúmeras outras lutas, conforme afirmado por Verónica Gago (2020).
No ano seguinte, em 2019, o movimento feminista mais uma vez demonstrou sua
força e resistência por meio da Marcha das Margaridas, que reuniu mais de 100
mil mulheres em Brasília. Essa marcha reafirmou a luta pelos direitos das
mulheres do campo, das florestas, dos quilombos, das águas, bem como a defesa
das práticas agroecológicas e o combate à violência de gênero, entre muitas
outras pautas desmanteladas rapidamente durante
o governo Bolsonaro.
O fato é que as
mulheres não abandonaram as ruas e não foram facilmente silenciadas, apesar de
todas as tentativas de deslegitimar a agenda feminista e de mobilizar
estratégias para excluir sua presença na política institucional ou organizada.
Isso evidencia a força da coletividade. Afinal, o corpo revela-se como uma
composição de afetos, recursos e possibilidades que não são individuais, mas se
singularizam, pois atravessam o corpo de cada indivíduo na medida em que cada
corpo nunca é apenas um, mas está sempre conectado a outros corpos e outras
forças também não humana, como defende Gago.
• #ELASFICAM? A perseguição às deputadas
progressistas
No dia 14 de junho de
2023, uma representação coletiva foi apresentada ao Conselho de Ética e Decoro
Parlamentar, pela primeira vez nos últimos vinte anos, solicitando a cassação
dos mandatos de seis parlamentares brasileiras. Segundo o Partido Liberal (PL),
as acusadas de quebra de decoro são: Célia Xakriabá (PSOL-MG), Sâmia Bomfim
(PSOL-SP), Taliria Petrone (PSOL-RJ), Erika Kokay (PT-DF), Fernanda Melchionna
(PSOL-RS) e Juliana Cardoso (PT-SP). Posteriormente, a representação coletiva
foi transformada em seis processos distintos que estão atualmente em andamento.
Essas parlamentares
são acusadas de protestarem durante a votação do Projeto de Lei do Marco
Temporal (PL 490/07), que estabelece limites para a demarcação de terras
indígenas ocupadas pelos povos originários antes de 5 de outubro de 1988. É
importante ressaltar que o Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira
(PL), recebeu o pedido de cassação com um tempo recorde de apenas 4 horas, o
que sugere a possibilidade de interesses por trás dessa eventual cassação dos
mandatos das parlamentares em questão.
As parlamentares
destacam que há um tratamento desigual às suas manifestações em comparação aos
colegas, já que nenhum homem de esquerda ou centro esquerda teve seu nome
associado às manifestações contrárias ao marco temporal – ainda que o houvesse
feito. O que demonstra que estão vivenciando mais uma manifestação da violência
política de gênero que quer encaixar suas atuações políticas como inadequadas.
É importante mencionar
que a Lei Nº 14.192, de 4 de agosto de 2021, define como violência política
contra a mulher qualquer ação, conduta ou omissão visando impedir, obstaculizar
ou restringir seus direitos políticos. A lei garante os direitos de participação
política das mulheres, proibindo a discriminação e a desigualdade de tratamento
com base no sexo ou raça no acesso às instâncias de representação política e no
exercício de funções públicas.
Já são conhecidos por
nós os traços da misoginia na política institucional ao rechaçar a atuação
feminina (progressista), agravada por marcadores sociais como raça, classe,
sexualidade e etc.. Não é a primeira vez que as mulheres são vítimas de
discursos de ódio, pois diariamente, enfrentam inúmeros desafios para exercerem
suas atividades profissionais, e no campo político não é diferente. Ao
combaterem projetos políticos da extrema direita, tornam-se alvos preferenciais
da narrativa moral neoconservadora. São sistematicamente associadas a pautas
como a interrupção da gravidez, disseminação de fake news sobre ideologia de
gênero, sexualização infantil, entre outras, sendo obrigadas a refutar essas
acusações repetidamente.
Diante disso,
questionamos: o que é punível, as agentes políticas que expressam suas vozes
contra as opressões diárias ou o silenciamento dessas vozes? Para contestar a
conduta da representação aberta contra essas políticas, a Frente Parlamentar
Feminista e Antirracista lançou a campanha contra a violência política de
gênero e raça no Brasil na Câmara dos Deputados, em Brasília. A campanha é
representada nas redes sociais com a hashtag #ElasFicam e tem mobilizado
ativistas, intelectuais e artistas, reafirmando o óbvio que precisa ser dito:
lutar não é um crime!
É importante ressaltar
também que nenhuma parlamentar de direita ou extrema direita se manifestou em
defesa das deputadas progressistas acusadas. Isso contrasta, por exemplo, com a
situação em que Joice Hasselmann, ex-deputada federal, sofreu violência política
de gênero ao se distanciar do bolsonarismo, recebendo repúdio e solidariedade
de diversos setores políticos feministas. Essa postura diferenciada demonstra
uma política que prioriza a construção de alianças, levando em consideração as
diferenças e conflitos, mas que tem como ponto de partida a luta contra o
patriarcado. É importante compreender que são projetos políticos com
finalidades completamente distintas.
Não descartamos a
necessidade de divergências, pelo contrário. Em uma perspectiva agonística,
como defende Chantal Mouffe em Agonística: pensar o mundo politicamente [sem
tradução em Português], o conflito é uma premissa inerente ao jogo político e
por isso ao invés de buscar uma neutralização de diferenças, é preciso
encontrar uma forma de democracia que reconheça e canalize os antagonismos de
maneira produtiva.
Compartilhando a
leitura de Chantal Mouffe, partimos do entendimento de que a democracia deve
reconhecer a pluralidade de interesses e visões de mundo que compõem a
sociedade. Para isso, é necessário a fomentação de espaços políticos onde as
diferentes perspectivas possam ser expressas, contestadas e negociadas de
maneira respeitosa, legítima e confrontativa. O conflito deve, assim, ser
expresso de maneira legítima e dentro dos limites do respeito mútuo – não
tolerando violência e discursos de ódio.
Um pré-requisito para
a validação do processo democrático é partir do pressuposto de que os
opositores políticos serão encarados como adversários legítimos e não como
inimigos. Mas o que fazer quando uma parcela da população (feminina) enfrenta
diversas barreiras, acessa o campo político formal e não obtém o reconhecimento
de suas agências como pares legítimos para atuar nesse espaço?
O encerramento do
diálogo com os movimentos de mulheres e a desumanização das militantes
feministas fazem parte do projeto político da extrema direita. Em outros
termos, interpretamos que a estratégia do neoconservadorismo através de seus
discursos violentos, é justamente contornar as formas de tratamento respeitoso
(ainda que conflitivo) entre os pares –
agentes políticos. Portanto, nos questionamos se essas assimetrias no espaço do
poder, acentuadas pela deslegitimação constante das mulheres progressistas na
Câmara Legislativa brasileira, não devem ser entendidas como uma afronta direta
aos princípios democráticos.
• Existe democracia onde há misogenia
Não muito distante, em
2016 com a interrupção do mandato de Dilma Rousseff (PT) a democracia no país
entrou em processo de erosão, uma vez que por circunstância dos interesses de
elites políticas e financeiras, foi retirada do poder a única mulher que ocupou
o cargo Executivo Nacional. Não é de espantar que também se trate de uma mulher
progressista. Áurea Carolina, Carol Iara, Duda Salabert, Erika Hilton, Isa
Penna, Marielle Franco, Marina Silva, Manuela D’Ávila, Maria do Rosário, Mônica
Seixas, Natália Bonavides, Sônia Guajajara, e tantas outras, todas essas
políticas de grande projeção têm em comum o fato de em algum momento terem suas
agências questionadas, seja por violência política material ou simbólica.
Agora, soma-se Célia
Xakriabá, Sâmia Bomfim, Taliria Petrone, Erika Kokay, Fernanda Melchionna e
Juliana Cardoso que estão prestes a terem seus mandatos julgados por uma
bancada majoritariamente masculina (20 homens e apenas uma mulher) e de centro
direita ou extrema direita. O que está em risco não é somente a atuação de
nossas parlamentares, mas sim, a presença ativa de mulheres comprometidas com
uma visão de mundo mais igualitária, combativa, que problematiza as
desigualdades sociais. O que está em questão é a possibilidade do ser, agir e
participar das mulheres no jogo político. Ou seja, o que está em jogo é o
sistema democrático e a participação de seus cidadãos e cidadãs em plena
condições de igualdade.
Por isso, lutemos.
Elas ficam e a
democracia também.
Fonte: Por Jéssica
Melo Rivetti e Camila Galetti, para Jacobin Brasil
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