segunda-feira, 29 de abril de 2024

Silas Ramos: Vitórias simbólicas, derrotas estratégicas

A relação com o tempo é intrigante, a cada escala que utilizados para auferi-lo, para, como uma câmera, capturá-lo, torna-se possível ter diante de nós novos elementos que constituem uma narrativa daquilo que se observa. Ao mesmo tempo, temos de saber que o controle do tempo escapa da nossa capacidade, que as grandes mudanças históricas, se por um lado, exigem nossa agência e nossa ousadia, por outro, a contingência, os desafios não esperam estarmos preparados para enfrentá-los, as guerras não esperam os exércitos estarem à postos para se iniciarem. O tempo certamente não colabora com a classe trabalhadora e para isso, é necessária a inteligência, a disciplina e o entusiasmo dos lutadores populares.

Se por um lado, ainda ressoam os ecos do 8 de janeiro e a extrema direita segue viva e operante no congresso, na mídia e mesmo nas ruas, atuando agora de forma muito mais planejada, calculada e fundamentada em uma estratégia para a tomada do poder, isso não deve ser colocado como uma justificativa para que as esquerdas, na sua pluralidade de partidos, movimentos sociais e organizações sindicais se afastem das suas responsabilidades históricas, em promover derrotas táticas ao neoliberalismo e pavimentar o caminho para conquistas estratégicas para a classe trabalhadora em sua pluralidade, tomando como ponto de partida, a construção de uma derrota tática aos militares e aos grupos dominantes do país, o que exige uma postura consequente e vontade política das forças políticas hegemônicas da esquerda.

Há cerca de um ano, citei como desafios emergenciais a serem enfrentados naquele momento, a carestia, a fome e o desemprego como elementos centrais da política do governo. Muito embora o governo não tenha feito aquilo que para mim seria o ideal, ou seja, a implementação de um programa radical de reforma agrária, temos de reconhecer importantes avanços, como o fortalecimento do Ministério do Desenvolvimento agrário, do Programa de Aquisição de Alimentos e outras inúmeras iniciativas que ligam o desafio de combate à insegurança alimentar com o fortalecimento da agricultura familiar e dos movimentos populares do campo, nesse sentido também é intransponível que destaquemos a importante contingência histórica que ainda é colocada.

Entretanto, é necessário observar que do ponto de vista estratégico, ainda há muito há ser feito, e ao que tudo indica, há notoriamente uma tendência muito grande entre conciliação e apaziguamento dentro do governo, que não poderia ser melhor sintetizada pelo seu slogan “União e Reconstrução”, para não dizer, entre a submissão e a permissividade, em permitir que os atores nefastos permeiam postos do governo e por que não, busquem implodi-lo, como tem ficado cada vez mais evidente com as investigações, relatos e depoimentos sobre o 8 de janeiro e seus desdobramentos.

Ainda assim, diversos setores do campo democrático-popular parecem engajar suas energias hoje na chamada “reconstrução” da malha institucional do país e assim buscarem reviver a política dos “pactos”, seja com o centrão, com os representantes da indústria ou com o capital financeiro. Ocorre que, ao passo que se por um lado, setores das elites demonstram-se dispostos a esses pactos, na mesma medida, operam sempre na lógica de seu programa máximo, pressionando para que este governo, representante das forças populares e dirigido por um partido que se gestou nas lutas do povo, implemente, em sua plenitude, a agenda neoliberal demarcada pela austeridade, pela contenção de gastos sociais e pelas privatizações contínuas.

Ressalte-se ainda que a lógica de fortalecimento da democracia e das instituições não toma em consideração o caráter estruturante da política brasileira, seu traço autocrático, como muito bem formulado pelo sociólogo e histórico militante fundador do Partido dos Trabalhadores, Florestan Fernandes. Na lógica autocrática, o domínio das elites forjadas pela transição do modo de produção escravista ao republicanismo, é incompatível com a plenitude da vida democrática, com a universalidade dos direitos humanos, trata-se, portanto, de um modelo de “democracia” extremamente restrito, e em que a estrutura institucional se volta, sobretudo, a transferência de capitais aos grandes monopólios oriundos dos centros capitalistas.

Em nossa análise a reivindicação pela reconstrução democrática pode indicar dois vícios das esquerdas, em primeiro momento, pela própria “ingenuidade”, resultante da ausência de um horizonte estratégico de conquista do poder pelas massas populares e que se reflete no oportunismo das grandes direções em firmar pactos momentâneos com as elites que as garantam posições privilegiadas na estrutura institucional e promover melhorias momentâneas, mas não estruturantes, ao subproletariado, e, em segundo plano, o próprio reflexo da presença do liberalismo dentro das esquerdas, que exige portanto, um combate político e ideológico incessante dentro do governo e das organizações de classe, fazendo assim que a luta de classes se dê em diversas arenas, inclusive no seio do movimento popular.

Como já temos discutido, a estratégia democrático popular precisa ter como eixo de gravitação da sua política o rompimento, ou ao menos, a prática política intencionada à romper com os três complexos de contradição que caracterizam a posição dependente e subordinada do Brasil na economia política mundial, o monopólio da terra, ligado intimamente ao caráter racial da formação social brasileira, que só pode ser superado com uma radical reforma agrária; a superexploração do trabalho, que tem como ponto de partida para sua superação e a redução da jornada de trabalho e por último, a crise urbana como síntese que tem a cidade do capitalismo, concentrando todas as suas contradições – riqueza e espoliação – em sua manifestação física e que também encontra como seu caminho para superação uma reforma urbana radical que supere o altíssimo déficit habitacional.

Sem clareza desses polos gravitacionais do capitalismo dependente brasileiro, não é possível sequer cogitar transformações no longo prazo na estrutura econômica brasileira, e sem o rompimento com a tutela militar que também sustenta o caráter autocrático da malha institucional, nenhuma dessas mudanças poderão de fato se materializar.

O encabeçamento de um programa radical exige tanto a firmeza ideológica, quanto a própria vontade política dos governantes em implantá-las, assim como, é parte essencial de um processo de transformações sociais consequentes, a capacidade das direções em estabelecerem análises corretas da realidade, que melhor serão feitas colocando em cena a luta de classes como termômetro do avanço das forças progressistas, bem como o caráter autocrático do Estado brasileiro e seus limites para a processualidade dessas transformações.

Do contrário, os erros significam derrotas estratégicas, não somente para as organizações, mas para todo o povo trabalhador, os povos originários, a juventude e as mulheres, são esses os grupos que ainda “pagam a conta” e sustentam diariamente o peso da derrota e dos retrocessos que sucederam o golpe de 2016, que certamente não foram remediados pelo tempo e que, caso a esperteza dos dirigentes não sirva para capturar o tempo e nessa janela que é oferecida, promover um salto qualitativo na luta de classes, permaneceremos no dilema que o século XXI tem imposto à esquerda : vitórias simbólicas, derrotas estratégicas.

 

¨      A delinquência digital

 

Uma proposta de juristas que muda o Código Civil pode vir a mexer com o que tem sido uma verdadeira terra sem lei das redes sociais. Na prática, as alterações sugeridas em parte responsabilizam as chamadas bigs techs pelos conteúdos publicados, algo que há muito se discute sem efeito prático – e que ganhou ainda mais relevância depois do episódio envolvendo a rede social X (antigo Twitter) de Elon Musk.

O assunto, naturalmente, mexe com interesses de corporações gigantes e envolve muito dinheiro.

O trabalho dos especialistas, que versa sobre uma variedade de temas, se dedica a uma atualização de regras, mas estabelece também o que classifica como Direito Civil Digital, incluindo regras de privacidade, proteção de dados e liberdade de informação.

Algo elementar, mas que vem até hoje sendo tratado como inexistente nesse ambiente. Será uma evolução e tanto que as plataformas digitais, onde impera uma quase algazarra de publicações sem punições, sejam responsabilizadas civil e administrativamente pelo ambiente que controlam.

Em outras palavras, a partir da reformulação do Código, todos os provedores e usuários deverão responder por danos a terceiros.

Os juristas querem que as empresas ainda façam, periodicamente, avaliações de riscos sistêmicos, prevenindo danos e ameaças potenciais. Isso inclui impactos em processos eleitorais, em segurança pública e de saúde (com fake news que desacreditam informações científicas), difusão de conteúdos ilícitos, de calúnias e difamações.

Todo meio de comunicação convencional já está automaticamente sujeito a esses balizadores, mas por um descaso inexplicável as redes seguem à margem de tais ditames. Essa situação se torna ainda mais grave com o avanço acelerado da Inteligência Artificial, cuja tecnologia, em muitos casos, pode vir a ser usada para criar falsas narrativas e iludir os internautas.

Falta transparência nas interações previstas a partir do advento da IA e o Código Civil quer mudar isso.

O ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, que elogia a iniciativa, aponta em tom de ironia que todos, antes do advento das redes sociais, “éramos felizes e não sabíamos”.

Para ele, a reformulação do Código nesse aspecto é uma necessidade premente, que não pode demorar mais. Há, decerto, uma verdadeira epidemia de ataques a reputações e luta de classes, política e social, que se instaurou no terreno digital, rumo à deterioração da humanidade. Essa escalada precisa parar.

As plataformas, em boa parte, parecem estar à serviço da mentira e das manipulações de toda natureza. É crescente o uso desse instrumento para uma guerra suja de narrativas que vem deturpando valores e princípios. Tome-se, como exemplo, o próprio caso das disputas eleitorais.

Por meio da internet, até mesmo resultados de votos vêm sendo distorcidos, como ocorreu nos EUA recentemente, via influência e interferência da Rússia.

A rede, que tem como fundamento original, conectar pessoas e armazenar conhecimento, passou a ser tida como arma de combate. Tem algo de muito podre em andamento na constelação digital e esse mal precisa ser tratado. Como o tráfego na rede, em significativa parte, é gerado por robôs, a alavancagem e a disseminação das chamadas fake news viraram um câncer, que precisa ser extirpado o quanto antes.

 

Fonte: A Terra é Redonda/IstoÉ

 

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